segunda-feira, 9 de junho de 2014

Portugal: A TEMPESTADE PERFEITA



Tomás Vasques – jornal i, opinião

O confronto de Passos com o Tribunal Constitucional faz parte de uma estratégia de quem não compreende o que é a democracia e o Estado de Direito

Numa tarde morna de Abril de 2010, ali para os lados de Cascais, no primeiro discurso como presidente do seu partido, no encerramento do congresso que o entronizou, Passos Coelho concentrou as suas palavras na urgência de uma revisão constitucional. O país que ele queria não se podia construir com a Constituição em vigor - informou. "Nós temos de mexer na Constituição. Vamos rever a Constituição e vamos fazê-lo depressa" - disse do alto da tribuna, fazendo ecoar na sala uma estrondosa ovação. A crise europeia das "dívidas soberanas" ainda não tinha entrado na narrativa política, nem um pedido de resgate se adivinhava ainda. O que estava em causa, naquele discurso, mais do que uma revisão constitucional, a qual sabia não ser possível concretizar, era apontar uma clara proposta de alteração do regime democrático em que vivemos desde a aprovação da Constituição de Abril de 1976. Só faltou, para ilustrar capazmente o ambiente daquele congresso, o apelo a uma nova Vilafrancada, a revolta dos absolutistas que revogou a Constituição liberal de 1822.

O confronto do governo de Passos Coelho com o tribunal Constitucional, assumido desde a primeira declaração de inconstitucionalidade, no orçamento de Estado de 2012, não é acidental. É sistemático. Faz parte de uma estratégia de quem mal compreende o que é a democracia e o Estado de Direito. E de quem procura o desgaste daqueles a quem, na arquitectura do regime, foi conferida a competência para fiscalizar a conformidade com a Lei, dos actos do governo. As declarações de Passos Coelho, na semana passada, não são, por isso, de estranhar. São recorrentes. Estas invectivas fazem parte do código genético ideológico desta direcção do PSD. Só que desta vez, o barítono subiu o tom até roçar a arruaça. Se o nosso rei absolutista, D. Miguel, usou contra os defensores da Constituição de 1822 a expressão "pestilenta cáfila", Passos Coelho não lhe ficou atrás nas suas diatribes contra os juízes do tribunal Constitucional. E fê-lo, agora, da forma mais desbragada, sem usar do respeito que usa nas relações com outros órgãos de soberania, nomeadamente o presidente da República. Desta vez, Passos Coelho foi mais além, protagonizando um folhetim que ainda não acabou, porque quis dar motivos para que se entendesse que o "regular funcionamento das instituições democráticas" estava em causa. Os partidos do governo "querem levar o mandato até ao fim", mas no estado em que o maior partido da oposição se encontra, se lhes antecipassem as eleições para Outubro deste ano, agradeciam. No entanto, o inquilino de Belém, zelando pela sobrevivência da sua imagem de "velho do Restelo", não parece estar disponível para lhe fazer a vontade, o que faz da afronta de Passos Coelho aos juízes do constitucional um doloroso episódio gratuito.

Como se não bastasse esta persistente delinquência anticonstitucional do governo, o maior partido da oposição suspendeu ou hibernou para reiniciar a sessão lá para o Natal, na melhor das hipóteses. Perante uma crise política interna, a qual exigia uma rápida clarificação, com a marcação de eleições directas e um congresso, o ainda secretário-geral dos socialistas enveredou por um caminho dilatório e estouvadamente improvisado, cujas consequências podem ser desastrosas para o PS.

Há quem pense que os portugueses são gente de brandos costumes, e que nem Passos Coelho, nem António José Seguro, dirigentes políticos que têm a inteligência de quem aprendeu a ler nas páginas literárias dos jornais "povo livre" e "acção socialista", conseguem subverter a "tranquilidade" das últimas décadas: ora agora governo eu, ora agora governas tu. Pode não acontecer, mas as condições para a tempestade perfeita estão a ser reunidas: a implosão do xadrez partidário que moldou o nosso regime democrático.

Jurista - Escreve à segunda-feira

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