Tomás Vasques –
jornal i, opinião
O confronto de
Passos com o Tribunal Constitucional faz parte de uma estratégia de quem não
compreende o que é a democracia e o Estado de Direito
Numa tarde morna de
Abril de 2010, ali para os lados de Cascais, no primeiro discurso como
presidente do seu partido, no encerramento do congresso que o entronizou,
Passos Coelho concentrou as suas palavras na urgência de uma revisão
constitucional. O país que ele queria não se podia construir com a Constituição
em vigor - informou. "Nós temos de mexer na Constituição. Vamos rever a
Constituição e vamos fazê-lo depressa" - disse do alto da tribuna, fazendo
ecoar na sala uma estrondosa ovação. A crise europeia das "dívidas
soberanas" ainda não tinha entrado na narrativa política, nem um pedido de
resgate se adivinhava ainda. O que estava em causa, naquele discurso, mais do
que uma revisão constitucional, a qual sabia não ser possível concretizar, era
apontar uma clara proposta de alteração do regime democrático em que vivemos
desde a aprovação da Constituição de Abril de 1976. Só faltou, para ilustrar
capazmente o ambiente daquele congresso, o apelo a uma nova Vilafrancada, a
revolta dos absolutistas que revogou a Constituição liberal de 1822.
O confronto do
governo de Passos Coelho com o tribunal Constitucional, assumido desde a
primeira declaração de inconstitucionalidade, no orçamento de Estado de 2012,
não é acidental. É sistemático. Faz parte de uma estratégia de quem mal
compreende o que é a democracia e o Estado de Direito. E de quem procura o
desgaste daqueles a quem, na arquitectura do regime, foi conferida a
competência para fiscalizar a conformidade com a Lei, dos actos do governo. As
declarações de Passos Coelho, na semana passada, não são, por isso, de
estranhar. São recorrentes. Estas invectivas fazem parte do código genético
ideológico desta direcção do PSD. Só que desta vez, o barítono subiu o tom até
roçar a arruaça. Se o nosso rei absolutista, D. Miguel, usou contra os
defensores da Constituição de 1822
a expressão "pestilenta cáfila", Passos Coelho
não lhe ficou atrás nas suas diatribes contra os juízes do tribunal
Constitucional. E fê-lo, agora, da forma mais desbragada, sem usar do respeito
que usa nas relações com outros órgãos de soberania, nomeadamente o presidente
da República. Desta vez, Passos Coelho foi mais além, protagonizando um
folhetim que ainda não acabou, porque quis dar motivos para que se entendesse
que o "regular funcionamento das instituições democráticas" estava em causa. Os partidos do
governo "querem levar o mandato até ao fim", mas no estado em que o
maior partido da oposição se encontra, se lhes antecipassem as eleições para
Outubro deste ano, agradeciam. No entanto, o inquilino de Belém, zelando pela
sobrevivência da sua imagem de "velho do Restelo", não parece estar disponível
para lhe fazer a vontade, o que faz da afronta de Passos Coelho aos juízes do
constitucional um doloroso episódio gratuito.
Como se não
bastasse esta persistente delinquência anticonstitucional do governo, o maior
partido da oposição suspendeu ou hibernou para reiniciar a sessão lá para o
Natal, na melhor das hipóteses. Perante uma crise política interna, a qual
exigia uma rápida clarificação, com a marcação de eleições directas e um
congresso, o ainda secretário-geral dos socialistas enveredou por um caminho
dilatório e estouvadamente improvisado, cujas consequências podem ser
desastrosas para o PS.
Há quem pense que
os portugueses são gente de brandos costumes, e que nem Passos Coelho, nem
António José Seguro, dirigentes políticos que têm a inteligência de quem
aprendeu a ler nas páginas literárias dos jornais "povo livre" e
"acção socialista", conseguem subverter a "tranquilidade"
das últimas décadas: ora agora governo eu, ora agora governas tu. Pode não
acontecer, mas as condições para a tempestade perfeita estão a ser reunidas: a
implosão do xadrez partidário que moldou o nosso regime democrático.
Jurista - Escreve à
segunda-feira
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