quinta-feira, 31 de julho de 2014

A FUGA NORTE-AMERICANA DA LÍBIA



Roger Godwin – Jornal de Angola, opinião

Numa altura em que o mundo centra as suas atenções nos conflitos da Ucrânia e na Faixa de Gaza, quase que passou despercebido o anúncio feito pelo secretário de Estado norte-americano, John Kerry, sobre a decisão tomada por Washington de fazer evacuar todo o seu pessoal diplomático, e respectivas famílias, que ainda se encontravam a funcionar na cidade de Trípoli, devastada capital da Líbia.

Este anúncio, meio envergonhado e feito numa situação em que os EUA voltam a estar debaixo de fogo devido às suas estratégias políticas que quase sempre culminam com o agravar dos conflitos onde intervêm, deixa a nu a clara evidência de que a diplomacia norte-americana está a ter enormes dificuldades em conciliar a sua influência negocial com as decisões erradamente tomadas pela Administração Obama.

No caso concreto da Líbia, foi a diplomacia dos EUA que, em 2011, mais contribuiu para o apoio que o então presidente de França, Nicolas Sarkozy, levou por diante com o objectivo de eliminar fisicamente o Presidente MuammarKadhaffi, uma das formas que encontrou para silenciar um potencial catalisador de problemas políticos resultantes das denúncias que corriam sobre quem havia financiado a sua campanha eleitoral na corrida para o Palácio do Eliseu.

Hoje sabe-se que Sarkozy está longe de ser uma personalidade acima de qualquer suspeita, correndo mesmo contra ele processos de investigação criminal que já o levou a responder perante um juiz na qualidade de arguido.

Muitas armas que as milícias radicais agora utilizam foram fornecidas pela França, os EUA e outros países da OTAN. Em Setembro de 2012 as milícias mataram o embaixador dos EUA na Líbia, Christopher Stevens, que juntamente com outros três norte-americanos foi vítima de um míssil disparado contra o consulado do seu país em Benghazi. São essas mesmas armas que as milícias usam para roubar enormes quantidades de petróleo que depois são vendidas a países ocidentais a preço de pataco.

Os diplomatas norte-americanos na Líbia fogem dessas armas, através de estradas que lhes são abertas para poderem chegar à vizinha Tunísia de onde, em segurança, continuam a monitorar tudo aquilo que se passa e que mais não é do que a continuação do processo de arrasar o que ainda resta de um país que era um dos mais prósperos do continente africano.

Só na última semana registaram-se 97 mortos e 404 feridos nos combates que se verificaram em Trípoli, com especial enfoque para as três tentativas que as milícias fizeram de ocupar o aeroporto internacional da capital líbia. Na cidade de Benghazi, que os EUA baptizaram de “berço da revolução”, registam-se os confrontos mais violentos e sangrentos. Centenas de pessoas morreram em fogo cruzado trocado entre diferentes grupos de milícias que operam sem que as forças governamentais tenham capacidade para intervir.

Sem uma ponta de hesitação, os EUA deixaram à sua sorte aqueles que em 2011 disseram ser as pessoas ideais para governar um país até então economicamente forte. Todo este embuste político foi consumado com promessas de muita democracia e estabilidade, rumo a um futuro melhor. Passados quase três anos desde o assassinato do Presidente Khadafi, ficou a descoberto a verdadeira intenção de uma coligação ocidental integrada pelos EUA que, a coberto da bandeira da OTAN, espezinhou todas as esperanças do povo líbio, moldando o país à imagem dos seus desígnios: roubo do petróleo.

Não é a primeira vez que os EUA resolvem abandonar os seus aliados quando chegam à conclusão de que eles já não servem para cumprir o papel que a sua ambiciosa estratégia lhes destinou. Também no Iraque se está a passar o mesmo, com os norte-americanos a abdicarem da sua obrigação moral de fazer prevalecer a democracia, que disseram querer impor depois de destituírem, primeiro, e depois assassinarem Saddam Hussein.

Na Faixa de Gaza, igualmente, o discurso político dos EUA vai de encontro ao seu comportamento prático. Washington é incapaz de obrigar Israel, seu braço armado no Médio Oriente, a pôr um ponto final no holocausto a que está a submeter mulheres e crianças que, por fatalidade do seu destino, se encontram no meio de radicais do Hamas.

Tudo isto serve de exemplo a países africanos que recorrem e confiam nas boas intenções do “amigo americano” para a solução dos seus problemas, mas que, por via desse envolvimento, correm riscos em termos de compromissos futuros. O exemplo que os EUA dão aos líbios deve ser tido em conta para compromissos futuros, por parte dos parceiros africanos, para não correrem os perigos resultantes da ilusão de estarem a contar com um aliado que não hesita em lhes virar as costas nos momentos de maior aflição.

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