Hoje,
Ricardo Salgado é um homem só. Poucos dos seus aliados ainda o são, muitos dos
seus mais próximos já deixaram de o ser
- Foto Rui Ochôa
Ricardo
Salgado acaba mal e acaba só. O grande banqueiro era afinal péssimo gestor,
arruinou um grupo familiar de 145 anos e saiu expulso do BES. Mas não há vazios
de poder: quem dominará agora? Quem vai ser o Dono Disto Tudo? Este texto
propõe uma resposta.
Talvez seja apenas um mito e Mayer Amschel Rothschild não tenha mesmo dito aquela frase no século XIX: "Deem-me o controlo do dinheiro de uma nação e pouco me importarei com quem faz as suas leis." Ficou a frase infame e a família famosa, os Rothschild, que já não são os banqueiros mais importantes da Europa mas cuja descendência prevalece.
Talvez seja apenas um mito e Mayer Amschel Rothschild não tenha mesmo dito aquela frase no século XIX: "Deem-me o controlo do dinheiro de uma nação e pouco me importarei com quem faz as suas leis." Ficou a frase infame e a família famosa, os Rothschild, que já não são os banqueiros mais importantes da Europa mas cuja descendência prevalece.
No
mesmo século XIX, uma família portuguesa de banqueiros era fundada por um
órfão, a quem por isso mesmo chamaram de Espírito Santo, e que atingiu o ponto
mais alto da sua influência já no século XXI. Depois - agora - os negócios
faliram, num escândalo internacional de desonra. A família perde tudo. O
movimento é tão poderoso que pode significar uma mudança de regime na economia
portuguesa. Há uma rede de poder que desaba. Outra emergirá.
Como
foi possível que um império tamanho se perdesse entre dois verões, sem invernos
que anunciassem a ruína ou primaveras que a redimissem? Talvez a resposta
esteja noutra pergunta: como foi possível sequer construir este império tamanho?
A resposta é, agora, fácil: não foi possível. Não era um império. Era um
conglomerado descapitalizado, opaco e mal gerido. A plácida cascata de ativos,
que criou um sistema de minorias acionistas encadeadas que garantia o controlo
familiar com pouco capital, tornou-se uma torrencial cascata de passivos.
É
impressionante tudo ter acontecido debaixo dos olhos da comunidade, incluindo
poderes políticos, reguladores, auditores, concorrentes. Ao contrário do BPN,
que "sempre se soube", no BES nunca se soube de nada. Escrevia-se
sobre a opacidade e a complexidade do grupo, mas não havia denúncias nem sequer
suspeitas conhecidas. O poder do BES era imenso. E era um poder de um homem,
Ricardo Salgado, 70 anos acabados de fazer. Sintomaticamente, o líder da família
desde o final dos anos 80 não tinha número dois. Era costume dizer-se que o BES
era como um comité central do Partido Comunista, não havia "vices",
havia o líder e o resto. Era um poder total, bajulado e quase
incontestado.
O
poder hegemónico
A
primeira vez que falei sobre o assunto foi em julho de 2009, há cinco anos, num
encontro à porta fechada do Projeto Farol, que decorreu no Pavilhão de
Portugal. O Farol, um think tank liberal, convidara-me para fazer uma
apresentação sobre fatores de bloqueio da economia portuguesa e eu escolhi o
BES. Na minha tese, o problema não era o BES ser poderoso, era ser hegemónico.
O
jornalista José Manuel Fernandes estava no encontro e, mais tarde, convidou-me
para escrever essa análise para o Anuário da Fundação Francisco Manuel dos
Santos, onde está publicada. Dos três eixos de poder da década anterior,
restava um: o BCP, muito ligado à Teixeira Duarte, Cimpor, EDP e depois à
Caixa, Berardo, Fino, estava prostrado; o BPI, muito ligado a grandes empresas
do Norte, incluindo o Grupo Sonae, tinha-se virado para Angola; restava o BES e
a sua linha de poder com a Portugal Telecom, Ongoing, Mota-Engil, mais tarde a
EDP e José Sócrates.
A
falta de oposição entre eixos financeiros permitira uma afirmação do BES que,
juntamente com o BCP e a Caixa, lucraram muitos milhões concedendo crédito no
imobiliário e nas obras públicas, onde estariam a maior parte dos grandes
problemas da economia, com malparados gigantes, obras paradas a meio,
transferências para fundos de reestruturação.
Nessa
minha tese, estes bancos haviam "fabricado" lucros, dividendos e
prémios de gestão. Os créditos, que constituíam lucro nos primeiros anos,
virariam graves prejuízos no futuro. Os bancos foram sendo esventrados. No ano
2000, BES, BCP, BPI e Banif valiam em Bolsa um total de 18 mil milhões de
euros. Os mesmos bancos valem hoje menos de sete mil milhões. Apesar de muitos
dividendos entretanto pagos, a destruição de valor é evidente. Houve aumentos
de capital em catadupa.
É
hoje possível argumentar que, apesar de a intervenção externa de 2011 se ter
feito por causa das contas do Estado, ela acabou por permitir uma gestão
controlada e até disfarçada dos problemas enormes que estavam nos balanços dos
bancos. Já foram reconhecidas nas suas contas mais de 24 mil milhões de euros
de perdas reais e potenciais. E é essencial perceber isto para compreender o
que se passou no Grupo Espírito Santo.
Paradoxalmente,
a devastação na economia portuguesa que foi acelerada com a intervenção externa
de 2011 não havia produzido até aqui nenhuma grande falência. Houve algumas
construtoras de média dimensão, empresas de turismo e de imobiliário a caírem
ou a serem resgatadas, mas não houve nenhuma queda abrupta de um grande grupo.
Na verdade, tal foi sendo possível precisamente pela gestão controlada da
banca. Muitas empresas zombie foram sendo transferidas para fundos de
reestruturação, outras tiveram as suas dívidas reestruturadas, sempre com
perdões indiretos da banca. Na maior parte dos casos, porque os próprios bancos
não queriam (ou não podiam) assumir todas as perdas, sobretudo numa altura em
que a pressão regulatória europeia obrigava a sucessivos aumentos de capital
para garantir rácios de solvabilidade. Em muitos outros casos, porque o
"sistema" funciona assim: preserva-se.
Assim
foi com aquele que teria sido o maior estoiro na economia portuguesa: o Grupo
José de Mello. O caso foi então noticiado mas estranhamente teve pouco impacto
na sociedade. Por causa do corte do rating do Estado para nível lixo,
em 2011, os bancos estrangeiros exigiram o pagamento imediato de empréstimos a
muitas empresas portuguesas. Ao Grupo Mello foram exigidos mil milhões de
euros, o que tendo em conta a quebra das receitas da empresa e o desequilíbrio
entre ativos e passivos a colocou num estado crítico, sendo necessário
"entrar" com o próprio património da família e, mais tarde, retirar a
Brisa de Bolsa para a revalorizar e aceder a mais dividendos.
O
problema ainda hoje não está ultrapassado, embora esteja controlado. Mas nada
disso teria sido possível se, em 2011, o Grupo José de Mello não tivesse tido o
apoio dos bancos portugueses, que então substituíram os bancos estrangeiros
como seus financiadores. O trio do costume, Caixa, BCP e BES injetaram mil
milhões no grupo, que assim pôde pagar aos bancos estrangeiros Santander,
Deutsche Bank e Société Générale.
A
grande falência aparece agora e é muito maior: o Grupo Espírito Santo. Inteiro.
Uma derrocada, de cima para baixo. Mas como? Assim: anos e anos de prejuízos
não assumidos, operações que não geravam cash flow, investimentos nunca
recuperados à custa de dívida sobre dívida nas próprias participadas, que
ficavam pendurados nas contas como se estivessem bem. Pura má gestão e algumas
ligações perigosas, com Angola à cabeça. Mas as holdings de topo, com
contas opacas e triangulando várias praças financeiras, escondiam uma montanha
de passivo, para mais agravada com dívidas que não estavam registadas nas
contas, num total de 1,3 mil milhões de euros, o que pode constituir prática
criminal.
A
situação tornou-se insuportável quando a dívida, além de ser grande, passou a
ser em grande parte de curto prazo. O famoso papel comercial tornou a pressão
sobre a tesouraria intolerável e sujeita a enorme risco. Pior do que isso:
contaminou o BES.
Como
a família perdeu o BES
Foi
assim que a família perdeu o controlo do banco, primeiro na gestão, depois na
própria posse das ações. Se os problemas de dívida no Grupo Espírito Santo eram
já enormes, o contágio ao banco foi um passo deliberado e aconteceu no último
ano. Talvez fosse uma última tentativa de evitar a rutura, mas transmitiu o
problema das holdings de topo pela cascata abaixo até ao banco, o que
constitui um pecado mortal e dificilmente compreensível.
A
falência poderia ter sido apenas da holding ES International, o que
seria um escândalo que arrastaria a família Espírito Santo, mas não
contaminaria as empresas nas holdings inferiores.
Mas,
no início deste ano, Ricardo Salgado começou a transferir os passivos da ES
International para a RioForte, contaminando-a irremediavelmente. A Espírito
Santo Financial Group e o BES concederam crédito às holdings de cima,
ficando também desse modo contaminadas. E o BES expôs os seus próprios clientes
ao risco, quando os pôs a financiar o GES, primeiro através de fundos de
investimento como o ES Liquidez, depois através do papel comercial. Era difícil
ter sido mais destrutivo.
Se
o Banco de Portugal não tivesse forçado a constituição de provisões para pagar
aos clientes de retalho do papel comercial, a hecatombe dos clientes teria sido
devastadora. Um BPP multiplicado muitas vezes.
O
que levou o GES à crise revela no mínimo incompetência, mas a própria gestão da
crise desde o fim do verão do ano passado foi desastrosa, revelando uma equipa
bloqueada, em negação e obcecada por uma guerra interna de sucessão. Como
criticou Fernando Ulrich recentemente, a informação financeira foi sendo
relevada aos poucos, cada comunicado trazia um novo número, nunca houve
transparência total e tudo isso gerou uma desconfiança insanável dos mercados,
sobretudo depois de os investidores terem acreditado no BES para um derradeiro
aumento de capital de mil milhões de euros há cerca de dois meses. Esses
investidores sentem-se enganados. Têm boas razões para isso. Mas houve mais:
foram sendo anunciados aumentos de capital na RioForte que nunca aconteceram,
vendas em Bolsa que não ocorreram, reestruturações que não existiram. Tudo
colapsou, estrondosamente.
A
melhor definição que ouvi até hoje sobre o sistema de poder económico em Portugal
foi dada por Paulo Morgado, líder da filial portuguesa da Cap Gemini. Mais do
que uma estrutura hierárquica piramidal, ou de que um polvo com tentáculos, o
poder em Portugal assenta num sistema em rede. É, descreveu Paulo Morgado, como
um jogo de micado: vários paus cruzam-se e é quase impossível mexer num sem
tocar noutros.
Essa
interdependência serviu ao mesmo tempo de rede de sustentação e de força de
resistência passiva. Ninguém ousava dar um murro na mesa e atirar as peças de
micado todas pelos ares, o efeito sistémico seria imprevisível. A falência do
Grupo Espírito Santo e o afastamento da família é esse murro na mesa e sim, tem
efeito sistémico, porque arrasta centenas de empresas com milhares de
trabalhadores. Alexandre Soares dos Santos já disse que o efeito é
"brutal, brutal, brutal..."
Hoje,
Ricardo Salgado é um homem só. Poucos dos seus aliados ainda o são, muitos dos
seus mais próximos já deixaram de o ser. Começou por aqueles que eram
enfeitiçados pelo dinheiro ou mesmo pagos pelo Grupo: esfumaram-se. Passou
depois para os amigos, para a família, para os clientes, para dentro do banco.
É
preciso perceber a mitificação que existia à volta de Ricardo Salgado, em
muitos membros da comunidade mas sobretudo dentro do Banco Espírito Santo. Os
quadros falavam de Salgado como de um banqueiro predestinado, um líder de que
se orgulhavam, um homem que estaria sempre acima dos desafios e dos seus pares.
Foi assim pelo menos até novembro do ano passado, quando começou a guerra na
família. Mas mesmo no princípio da fase mais aguda da crise, muitos quadros do
banco recusavam-se a aceitar a informação que ia sendo divulgada, como se o
grupo estivesse a ser alvo de conspirações.
De
alguma maneira, a situação foi semelhante no BCP aquando da crise de Jardim Gonçalves:
era venerado pelos seus quadros, a incredulidade foi semelhante. Acresce que,
no caso de Ricardo Salgado, muitos se sentiram mais do que dececionados:
sentiram-se traídos. Esse terá sido o caso de Amílcar Morais Pires e de outros
altos quadros do BES: indefetíveis até ao fim, foram deixados cair.
Curiosamente,
Salgado foi negociando com quem o traíra a ele. Como Pedro Queiroz Pereira, com
quem acabou por fechar um negócio que separou os dois grupos familiares. Com
Carlos Costa, que lhe foi tirando o tapete aos poucos. E com José Maria
Ricciardi, o seu primo que liderou uma tentativa de "golpe de Estado"
em novembro que falhou. Ricciardi falara então com diversos membros da família,
isoladamente, para retirar a confiança a Salgado, mas quem acabou isolado foi
ele próprio. Teria o desfecho sido diferente se Ricciardi tivesse conseguido
afastar Salgado?
Os
últimos meses revelaram que, na geração em causa, a família Espírito Santo só
tinha dois potenciais líderes, Salgado e Ricciardi, que são tão parecidos um
com o outro como o sal é do açúcar. José Maria Ricciardi foi o único a estar
frontalmente contra Salgado e o tempo mostrou que tinha razão. Mais: ele podia
ter sido o líder que salvaria o grupo. Mas não teve apoio da família. E,
sobretudo, nunca teve um plano alternativo a não ser propor-se a si próprio
como líder. Teve uma oportunidade história, não esteve à altura dela.
Hoje,
o resto da família já estará com ele. Ou, pelo menos, está contra Ricardo
Salgado. Há uma revolta surda entre os vários membros da família dos demais
ramos, sobretudo os que estiveram com ele até ao fim, mas já não estão. Hoje,
há membros de uma nova geração a despontar, como André Amaral ou Caetano Barão
da Veiga, mas não há muito por que lutar. Dos mais velhos, já mais nenhum se
solidariza com Salgado. Lealdade não é o mesmo que fidelidade.
O
próximo poder
Voltemos
à frase atribuída a Rothschild: os banqueiros sabem que o poder maior numa
economia está em criar moeda, o que Portugal aliás já não pode fazer. Em
Portugal, o poder maior reside no Estado, através da despesa pública e dos
impostos, e nos bancos, pela concessão de crédito. Mesmo nos últimos anos, com
menos crédito concedido, o poder dos bancos foi suficiente para decidir a vida
ou a morte de muitas empresas, pela renovação ou não renovação de créditos e
linhas de tesouraria. Fale com qualquer gestor de uma PME, ele explica.
A
queda da família no BES está consumada, mas essa não é a única alteração
acionista em perspetiva. É hoje difícil perceber como ficará o poder no banco,
que está tomado por muitos acionistas especulativos de curto prazo. Além disso,
uma entrada do Estado, ainda que com títulos híbridos, significa uma diluição
enorme dos acionistas, incluindo dos investidores que entraram no último
aumento de capital e que podem acionar legalmente o banco. Mas é óbvio que o
BES acabará comprado, porque acabará vendido, mesmo que seja aos poucos, em
mercado.
A
queda do BES enquanto eixo de poder poderia ter o efeito reverso que teve a
queda do BCP em 2007: abrir caminho para que outro banco assomasse. Contudo,
nenhum dos bancos portugueses parece ter a força ou sequer a dinâmica para se
catapultar neste momento, até porque o mercado português continua a ser um mau
"negócio". Assumindo que não há vazios de poder - sempre que há rei
morto, há rei posto -, quem, então, pode assumir as rédeas do poder?
A
resposta depende menos dos acontecimentos e mais das circunstâncias (Vítor
Gaspar vai gostar desta): é o credor estrangeiro. Às vezes chamam-lhe
"mercados". O credor torna-se acionista à força e vira investidor. É
a força mais poderosa que se abateu sobre a economia portuguesa desde 2010,
precisamente por sermos devedores. É o credor estrangeiro que está a
reconfigurar a economia portuguesa (e a sua política, que depois de perder as
ferramentas cambial e monetária, perdeu agora na prática a liberdade
orçamental). É ele que escolhe gestão profissional em vez de familiar, e que
prefere sempre fluxos de caixa a qualquer outro tipo de retorno, que pode
sempre pressionar o pagamento de dividendos em vez de reinvestimento. É isso
que está a acontecer dramaticamente no BES. É isso que vai reconfigurar a
economia portuguesa: uma mudança de fora para dentro.
O
discurso dos centros de decisão nacional sempre foi essencialmente um discurso
de poder, e de manutenção desse poder pelo regime vigente. Hoje é um
anacronismo ridículo. O investidor estrangeiro já tomou conta. A EDP e a Ren
são hoje chinesas, a Ana é francesa, o BCP, BIC, Zon e Optimus são angolanos, o
BPI é hispano-angolano, o BES há de ser de quem o quiser, a Cimpor é
brasileira, a PT quer sê-lo, a Galp é apátrida e há dezenas de grandes empresas
à venda, incluindo hotéis, seguros, saúde e imobiliário do Grupo Espírito
Santo, a TAP ou os resíduos do Estado.
O
sistema mudou porque estava falido. O novo regime fala estrangeiro. Precisa de
reguladores fortes, para que produza em vez de extrair riqueza de Portugal. Mas
essa é a maior mudança a que assistimos. Não foi a troika que a trouxe, foi a
dívida. O triste fim do Grupo Espírito Santo não é senão uma forma dramática e
espetacular de o percebermos. Como diria José Sócrates, o mundo mudou.
Pedro
Santos Guerreiro – Expresso, opinião
Texto
publicado na Revista do Expresso, a 19 de julho de 2014
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