Patrícia
Neves - Plataforma
O
multipartidarismo é hoje comum a todos os países de língua portuguesa, por
opção ou pressão, mas a maioria ainda tem um longo e sinuoso caminho a
percorrer até à consolidação dos seus sistemas como verdadeiramente
democráticos. Os grandes entraves a este processo estão concentrados
especialmente em África, onde analistas apontam existir mesmo situações de
“contrafação da democracia” e de recrudescência do autoritarismo.
Moçambique
e Guiné-Bissau apresentam atualmente o quadro mais frágil e a entrada da Guiné
Equatorial na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) gerou maior
incerteza sobre a capacidade de o bloco avançar no sentido de uma democracia
plena.
Macau,
onde o português também é língua oficial, dá passos, ainda que curtos, no
sentido de um sistema mais democrático, mas está ainda longe de se afirmar como
tal. A população não revela, porém, grande insatisfação com a situação política
atual e rejeita mesmo a possibilidade de qualquer perturbação da ordem social
em nome da democracia, ao contrário dos sinais que recebe de Hong Kong. Os
residentes, constatam observadores, querem antes garantir a manutenção ou
melhoria do seu nível de vida, até porque sabem que se o “irmão mais velho”
conseguir o sufrágio universal, ele também chegará eventualmente a Macau.
O
alargamento de uma classe média, o desenvolvimento da educação, uma melhor
distribuição da riqueza e uma maior organização das oposições são os meios,
segundo analistas, para se conseguir que o espaço de língua portuguesa seja
mais aberto, livre e voltado para a defesa dos interesses dos seus povos.
Moçambique
e Guiné-Bissau são os elos mais fracos
Os
países de expressão portuguesa em África foram afetados de forma positiva pela
vaga de democratização do pós-queda do Muro de Berlim, tendo todos registado
transições de sistemas de partido único para sistemas multipartidários.
Atualmente estas nações estão em diferentes fases de desenvolvimento político,
registando-se, porém, alguns recuos, nomeadamente em Moçambique e na
Guiné-Bissau.
“Angola
e Moçambique foram os únicos dos cinco países africanos de expressão portuguesa
que tiveram guerras civis no pós-independência e, por isso, começam um processo
de multipartidarismo muito mais complexo, porque têm como principais partidos
os que foram beligerantes durante a guerra. Estão todos em fases diferentes de
processos de democratização, mas em todos estes países os partidos políticos
são permitidos, existem eleições, mas níveis diferentes de liberdade de
imprensa e de educação superior”, constatou em declarações ao Plataforma Macau
Elisabete Azevedo-Harman, investigadora para o programa de África da
organização não-governamental Chatham House, sediada em Londres.
Moçambique,
lamenta, “deu nos últimos dois anos passos contrários ao processo de democratização,
com o país a voltar a ter conflito armado, que, apesar de não ser o reinício de
uma guerra civil, é um passo de gigante contra esse processo, ao violar todos
os princípios teóricos do que é a democratização que passam por todas as partes
aceitarem que a única contestação possível é através dos votos e não das
armas”. Neste país, a investigadora portuguesa, que tem integrado missões de
observação eleitoral em África, considera ter havido “um recuo bastante
significativo”, mas não lhe parece que este “revés possa cair para um regime
autoritário”.
Já
o cientista político Nelson Pestana, da Universidade Católica de Angola,
considera existirem em Moçambique “laivos de autoritarismo, embora os
princípios da transição democrática ainda não estejam feridos de morte”. “Em
Moçambique, tudo leva a crer que vai haver uma restauração do autoritarismo
contra a transição democrática”, prevê.
A
Guiné-Bissau, aponta, “tem uma situação anómala com os sucessivos casos de
golpes de Estado”. Para Elisabete Azevedo, este país “é capaz de ser atualmente
o país mais frágil”, apesar de realçar que ali “as eleições são sempre muito
mais livres e justas do que em qualquer outro país de expressão portuguesa em
África”. Esta situação é justificada com um “equilíbrio político muito grande
entre as várias forças partidárias, que leva os partidos a se fiscalizarem
muito melhor do que em países onde há um domínio partidário, como é o caso de
Moçambique e Angola”.
Em
Angola, Nelson Pestana considera que o sistema “é, de facto autoritário, mas
diz-se formalmente democrático, porque isto revelou-se muito mais eficaz do que
declarar-se abertamente uma ditadura de partido único, já que é assim menos
contestado e pode ter apoios internacionais sem problemas de alma”. O resultado
das eleições, aponta, dependem do “bom ou mau funcionamento da máquina da
fraude, cujo monopólio é até agora detido pelo Presidente da República”, por
isso este cientista político salienta que no país “não se pode ainda falar de
soberania popular do escrutínio”.
“O
que vivemos na realidade é uma contrafação da democracia. Parece, mas não é”,
lamenta ao observar que “a democracia nunca existiu completamente” nos países
lusófonos africanos, considerando mesmo que aí se assiste a uma “recrudescência
do pensamento autoritário” e que “algumas guerras são promovidas para que esse
autoritarismo possa sobreviver”.
Segundo
Elisabete Azevedo, Angola está, porém, “numa ascensão em termos de liberdades”,
não parecendo estar numa situação “de poder voltar para um regime monopartidário
e autoritário”.
Pressão
sobre a Guiné Equatorial
A
recente adesão da Guiné Equatorial como membro de pleno direito da CPLP foi,
para Elisabete Azevedo, um processo mal sucedido, pois deveria ter sido exigido
ao país uma maior democratização, mas uma vez que o facto está consumado, a
investigadora alerta que é altura de se reagir, atuando-se “de forma
construtiva e pró-ativa”.
“Estar
num palco internacional tem custos, é ter as luzes apontadas para quem lá está
e, neste momento, o Presidente Obiang está no palco com os outros chefes de
Estado da CPLP, por isso, as várias entidades pró-democracia nestes países, a
sua sociedade civil, partidos e media deverão usar esse facto para exigir
chegar à Guiné Equatorial”, defende.
A
investigadora considera que a entrada do país na organização “desafia a
constituição da CPLP”, salientando que aquela “tem estado a fugir a um debate
sobre a sua génese e missão”.
“Possivelmente
durante estes oitos anos de negociações, o que se pediu à Guiné Equatorial foi
a suspensão da pena de morte e a adoção da língua portuguesa e eles fizeram
isso. A instituição se calhar devia ter pedido mais”, acrescentou, apontando a
necessidade de a CPLP se tornar, com este alargamento, “mais rigorosa em termos
de expulsão e suspensão”.
Para
Nelson Pestana, com a Guiné Equatorial no bloco lusófono “há mais incerteza na
possibilidade de uma evolução para a democracia”.
O
facto de existir uma liderança pessoal predominante na Guiné Equatorial, como
em Angola, leva este cientista político a acreditar que, pelo menos, nestes
dois países “a situação não parece que irá mudar nos próximos tempos”.
Apesar
de constatar que o “desenvolvimento económico como é feito neste momento tem
contribuído para o reforço dos poderes autoritários”, Nelson Pestana considera
que ele também “pode trazer a criação de novas elites e sobretudo de uma classe
média alargada que poderá contribuir para a abertura do sistema”. Para
Elisabete Azevedo, também São Tomé e Príncipe “ainda é uma democracia frágil”,
o que se denota com a “hesitação e incerteza sobre a data das eleições”. “A
situação económica também não ajudou”, aponta, realçando que, “depois da
euforia de que talvez o país fosse rico, a perceção de que se calhar não era
bem assim criou maior instabilidade política”.
Cabo
Verde, Portugal e Brasil são exceções
Na
África subsariana, Cabo Verde é o país com a democracia “mais consolidada”. “O
sistema semi-presidencial com um pendor parlamentar muito forte é talvez o
segredo de Cabo Verde”, diz a investigadora da Chatham House. Nelson Pestana
considera que aqui a “democracia deverá continuar a funcionar, embora haja sinais
de degradação moral em relação aos seus princípios pela má influência dos
países autoritários e do muito capital que aí têm”.
Já
Portugal, por estar inserido na União Europeia, “está defendido da apetência
autoritária deste ou daquele líder”, salienta o cientista político angolano.
Elisabete Azevedo considera que o país é “uma democracia consolidada, mas ainda
com muitas fragilidades, sobretudo ao nível da independência do poder
judicial”.
Quanto
ao Brasil, que é também uma democracia recente em processo de consolidação, tal
como a portuguesa, a investigadora destaca o facto de esta economia emergente
“fazer uma grande campanha para a democratização do poder internacional,
portanto, do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial e das Nações
Unidas, mas não em relação à democratização de outros países”. “Muitas vezes
pensamos que as democracias recentes são as mais apologistas de que outros
países sejam também democratas, mas não é de todo o caso do Brasil”, sublinha.
Macau
à espera de Hong Kong
Na
Região Administrativa Especial chinesa, que foi administrada por Portugal por
mais de quatro séculos e que tem ainda hoje o português como língua oficial, “o
poder executivo tem mais poder do que o legislativo”, observa o analista
político local Larry So ao salientar que no território “a democracia fica para
trás sob este ângulo”. “Ainda temos na Assembleia Legislativa deputados
nomeados pelo chefe do Executivo e outros eleitos indiretamente, não podemos,
portanto, dizer que este sistema é genuinamente democrático”.
O
próprio chefe do Executivo é eleito por um colégio eleitoral de 400 membros,
não estando implementado o sufrágio universal. “Macau tem uma democracia
adaptada ao contexto local”, conclui Larry So, indicando, porém, que foram
registadas “melhorias” desde a transferência do exercício de soberania para a
China. “Temos mais deputados eleitos pela população e as pessoas estão um pouco
mais interessadas na política, mas foram dados passos ainda muito curtos”,
constata.
Segundo
este analista, a população local “é a favor de um desenvolvimento político
gradual sem perturbação da ordem social e não se preocupa com quem está no
Governo, mas com a sua qualidade de vida”. “Muita gente em Macau acha que Hong
Kong está a ir um pouco longe demais com a sua reivindicação de democracia e
não gostariam de ver tal perturbação na sociedade local”, repara.
O
Governo, acrescenta, leva a cabo uma “política de válvula de segurança”,
segundo a qual vai cedendo a algumas reivindicações para conseguir garantir a
manutenção do estado das coisas. “Sufrágio universal vamos ter, mas depende de
Hong Kong, que é o nosso irmão mais velho. Se ele o conseguir em 2017, nós
conseguiremos em 2020 ou 2022” ,
prevê.
Em
Timor-Leste, o outro território de língua portuguesa na Ásia, Elisabete Azevedo
constata não haver ainda uma democracia em pleno. “Depois da euforia dos
primeiros momentos eleitorais, a democracia timorense ainda tem muitos
desafios, estando num processo de consolidação, até porque ainda tem carências
muito significativas, nomeadamente ao nível da educação, tendo a seu favor uma
economia fortíssima”.
Para
Nelson Pestana, “o desenvolvimento da educação e uma melhor distribuição da
riqueza poderão proporcionar uma apetência maior para sistemas abertos e de
liberdade” nos países de língua portuguesa, até porque, realça, “têm muito
maior capacidade de mobilização de sinergias nacionais para o desenvolvimento”.
Para
já, sublinha, “não têm surgido lideranças locais” com capacidade para levar
avante essas reivindicações, mas as novas gerações “poderão tornar-se numa
força decisiva de mudança”.
Segundo
Elisabete Azevedo, uma maior organização e colaboração das forças da oposição
nestes países também era “fundamental para a sua democratização”. “Não se podem
só culpar os partidos no poder nem desculpabilizar permanentemente as
oposições”, concluiu.
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