segunda-feira, 22 de setembro de 2014

O CALIFADO (2)




Rui Peralta, Luanda (continuação - ler anteriores)

IV - O branqueamento de capitais (vulgo lavagem de dinheiro) é uma velha história, que perde-se no corredor do Tempo e do Espaço. O seu nome varia com as línguas faladas (mortas ou vivas) pelo mundo: hawalah no Médio Oriente, Afeganistão e Paquistão; hundi na Índia; fei tchien na China; foe kuan na Tailândia e os seus outros nomes ocupariam listas intermináveis à medida que caminhássemos pela nave-mãe onde todos fomos paridos. A origem destes processos de camuflagem de fundos e capitais obtidos de forma não legal (nem sempre ilegal) movimentados de forma legal e investidos em negócios legais, é desconhecida, embora esteja bem documentada no século VIII. São sistemas assentes em códigos de honra, compromissos da palavra e em reputação intocável, sistemas globais, muito anteriores ao capitalismo e de grande adaptabilidade.

As cidades muçulmanas, bastante dinâmicas, possuíam, desde o inicio do século XV até aos finais século XVIII, mecanismos e instrumentos próprios de estádios superiores de troca e circulação, assentes numa vasta rede de crédito que ligava as cidades do Médio Oriente ao Extremo Oriente, ao Mediterrâneo e a África (do Indico ao Atlântico, penetrando pelo interior. O Império do Mali era um grande centro bancário e segurador, assim como Lagos na Nigéria e o Zanzibar). Era possível, ainda no século XVIII, a quem viajasse de  qualquer ponto da Índia para Constantinopla e passasse por Bassorá, utilizar os serviços da East Índia Company ou depositar num dos muitos banqueiros indianos, que efectuariam o comissionamento a um dos muitos banqueiros de Bassorá, que por sua vez passava uma carta de crédito para um dos muitos banqueiros de Alepo, ou de Damasco que ordenariam o deposito aos seus agentes em Constantinopla. Créditos, seguros marítimos e de transporte por terra (caravanas), transferências, empréstimos, operações cambiais e outras, eram efectuados nestas redes internacionais de grande cobertura.

A economia do Islão - do califado central e dos estados dispersos que surgiram no final do século VIII - abarcava diferentes territórios, uma vasta gama de recursos, diferentes povos e culturas. O califado central, iniciado na Arábia, absorveu o Irão, parte da Turquia, a Síria, o Egipto e o Noroeste Africano, herdou economias em diversos estágios, umas fluorescentes, outras em desenvolvimento e diferentes níveis tecnológicos. A amalgama de todo este território sob a mesma bandeira, mais a Península Ibérica, grande parte da Ásia Central e parte da Índia, constituía o mundo islâmico do século X e representava, sem duvida, grandes potenciais de desenvolvimento.

O seu crescimento abrandou no século XII e não foi maior do que o crescimento económico de Bizâncio e inferior ao da Europa na baixa Idade Média. As fascinantes descrições das Mil e Uma Noites são ilusórias e vêem Bagdade através de uma potente lupa. A realidade era algo diferente. As estradas, quando existiam eram de má qualidade, a cunhagem de moedas era deficiente e o grande e exuberante consumo da ínfima elite não conseguia sobrepor-se aos elevados níveis de miséria. A pastorícia e o comércio de caravana eram as ocupações básicas dos Árabes, que desprezavam a agricultura. O comercio itinerante foi a actividade exercida por Maomé e o respeito pelo comercio colmatava a tradicional aversão (e desconfiança) pela ordem politica e pelo trabalho colectivo. Mas estas preferências árabes eram contrariadas pelas classes dominantes Persas, Bizantinas e Hispânicas, que mantiveram os seus privilégios pela conversão ao Islão, quando os seus territórios foram anexados pelo califado central. Apesar destas contradições, o mundo islâmico, na Alta Idade Média tinha um ritmo de crescimento económico muito superior ao da Europa Católica. Ora, foi em toda esta ambiência que o sistema de branqueamentos de capitais (e estou a referir somente as redes históricas do mundo islâmico, existem complexos sistemas e redes judaicas, europeias e do Extremo-Oriente, com uma História tão rica como a das redes islâmicas) se afirmou.

Quando as autoridades internacionais responsáveis pelo combate ao branqueamento de capitais falam de 3 biliões de euros que circulam anualmente nestas redes, fica-se com uma ideia aproximada da extensão das mesmas. No entanto existem várias questões que devem ser equacionadas. É importante definir formas efectivas de combate ao branqueamento de capitais, mas sem asfixiar as liberdades individuais e o direito á privacidade. É também fundamental entender que uma coisa é combater todas as formas de fraude fiscal, de lavagem de dinheiro, de corrupção, de narcotráfico, de terrorismo e gangsterismo e outra coisa é aproveitar estes fenómenos para aumentar a coerção hegemónica nas dinâmicas externas e aumentar a coerção sobre os cidadãos, estabelecendo estados policiais que mandam ás urtigas os direitos, liberdades e garantias, em nome da sacrossanta segurança (mas segurança do quê? Da propriedade e dos bens do cidadão, respondem as manas catatuas da segurança. Da propriedade e dos bens de quem? Dos proprietários, pois é claro, respondem, indignadas as catatuas. Esquecem-se de referir o Estado e os postos de emprego e os negócios efectuados por conta deste controlo, que atingiu nos últimos dez anos mais de 100 milhões de euros, provavelmente, uma nova forma de branqueamento).

Periferias e cidadãos eis as vitimas primeiras de um sistema de controlo e supervisão que conta, pelos dedos de uma mão, os êxitos obtidos. A solução não reside, também, no fim dos offshore, ou do sistema financeiro internacional, como pretendem outras velhas catatuas, tão inoperantes como as suas congéneres da outra margem iideológica A inserção das centenárias e milenárias redes financeiras no sistema internacional seria um passo efectivo na resolução do problema (um passo, apenas, não uma panaceia).

V - Nos últimos 50 anos as taxas de crescimento do PIB no mundo islâmico foram modestas e na grande maioria dos países que o compõem, observou-se um período de estagnação entre 1985 e 1990. O Egipto, por exemplo, que no decénio 1975-1985 registou uma taxa de 8%, nos cinco anos seguintes vê a sua taxa descer para 5%, enquanto a Síria e a Jordânia, passam de 10% para 3% (a Jordânia chegou a uma taxa negativa de 12%). Líbano (por motivo da guerra civil e da agressão - e invasão - israelita), Iraque (em queda devido a guerra com o Irão e depois as duas guerras do golfo), a Tunísia e Argélia (de 5% - muito modesto -para taxa negativa), viveram esta realidade, enquanto Sudão e Somália viviam um período de decomposição social e na Mauritânia, tal como no Iémen, instaurou-se um período de instabilidade politica. Marrocos nadou contra-a-corrente e manteve, nesse período, uma moderada taxa de 5%. As restantes excepções foram a Líbia e as petro-monarquias do Golfo, graças aos rendimentos petrolíferos, redistribuídos na região, em grande parte, pelo fluxo de capitais públicos e pelas transferências bancárias dos emigrantes egípcios, jordanos, palestinianos e sírios.

Este efeito beneficiou a região do Mashrek (Egipto, Síria, Jordânia, Líbano e Palestina). No Magrebe, a Argélia (que durante muito tempo foi um prestamista liquido de capitais ao exterior, devido aos recursos petrolíferos), em consequencia do endividamento pesado, transformou-se num exportador liquido de capitais, em serviço da divida. Marrocos e Tunísia aproveitaram o contributo liquido externo (alimentado principalmente pelas remessas dos emigrantes na Europa).Para os países do Mashreck o saldo da balança de capitais que representava 6% do PIB, na década de 70, tornou-se negativa na segunda metade da década seguinte e assim se manteve até hoje, com ligeiras oscilações. O discurso liberal e a abertura económica sofreu os mesmos males do discurso socialista: a excessiva burocratização e a obsessão nacionalista bloquearam o arranque, fosse este induzido por politicas de investimento publico, quer por via do investimento privado. Por sua vez, a ajuda externa -anunciada com pompa e circunstancia quando se iniciaram as politicas de liberalização económica - não se materializou, salvo pelos créditos militares norte-americanos e as reformas estruturais criaram uma situação que favoreceu uma rápida acumulação da divida externa, que atingiu valores colossais.

Assim em 1991 a divida externa tunisina era de 8 mil milhões de USD, a jordana rondava os 9 mil milhões, a Síria em 17, Marrocos atingia uma divida externa de 21 mil milhões de USD, a Argélia 28 e Egipto 41. A fuga maciça de capitais, que no período 1970-1984 representavam 1,4% do PIB magrebino e cerca de 4% do PIB do Mashrek, no período 1985-1990 atingiram 3,8%  e 9%. Nos 5 anos seguintes desceram para 2% e 6%. O equilíbrio apenas foi conseguido á custa das transferências dos emigrantes (que actualmente representa cerca de 5% do PIB magrebino e 9% do Mashrek) e do desenvolvimento do turismo e serviços. 

A inserção do mundo islâmico (e neste, do conjunto dos países árabes, em particular) na economia-mundo foi um fracasso (existem ilhas de sucesso, obviamente). A fase nacionalista apostou no "capitalismo sem capitalistas", uma espécie de "socialismo camuflado", um híbrido destinado ao fracasso, que não resistiu ás contradições internas, criadas pelo desenvolvimento inicial que gerou. A tentativa de modernização seguiu o seu rumo com as reformas estruturais, de cariz neoliberal, mas os seus resultados finais revelam-se um desastre, consubstanciado - na região árabe - na recompradorização, estratégia ocidental que fragmenta a região árabe em três sub-regiões, submetidas a lógicas particulares de compradorização: o Golfo (Arábia Saudita, Emiratos Árabes Unidos, Kuwait, Qatar e Omã), sob tutela directa dos USA; o Magrebe, dependente da U.E.; e o "projecto Médio Oriente", uma concepção dos USA e de Israel, que insere o Mashrek nos objectivos geoeconómicos israelitas.

A estagnação económica, a deterioração das condições sociais, o desemprego e a precariedade das condições de trabalho, são cenários que caracterizam grande parte das economias do mundo islâmico, tanto ao nível da Liga Árabe (Arábia Saudita, Argélia, Bahrein, Egipto, Emirados Árabes Unidos, Iémen, Iraque, Djibuti, Jordânia, Kuwait, Líbano, Líbia, Marrocos, Mauritânia, Omã, Palestina, Qatar, Síria, Somália, Sudão e Tunísia), como nos Estados membros da Conferencia Islâmica (Albânia, Azerbaijão, Bangladesh, Benim, Bósnia, Brunei, Burkina Faso, Camarões, Cazaquistão, Chade, Comores, Gabão, Gâmbia, Guiné-Conakry, Guiné-Bissau, Indonésia, Irão, Malásia, Maldivas, Mali, Níger, Nigéria, Paquistão, Senegal, Serra Leoa e Turquia). As condições económicas e sociais da maioria destes países, os falhanços sucessivos das politicas de desenvolvimento, as divisões históricas e os anseios autonómicos e separatistas de diversas comunidades, a humilhação e o desespero, conduzem a situações explosivas, viveiros dos conceitos populistas totalitários, dos discursos fáceis do nacionalismo, da tradição e da etnosofia, ou seja, são incubadoras do fascismo, arma ultima das elites retrógradas e um engodo conducente á ingerência ocidental.

Continua

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