Rui Peralta, Luanda (continuação -
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IV - O branqueamento de capitais
(vulgo lavagem de dinheiro) é uma velha história, que perde-se no corredor do
Tempo e do Espaço. O seu nome varia com as línguas faladas (mortas ou vivas)
pelo mundo: hawalah no Médio Oriente, Afeganistão e Paquistão; hundi na Índia;
fei tchien na China; foe kuan na Tailândia e os seus outros nomes ocupariam
listas intermináveis à medida que caminhássemos pela nave-mãe onde todos fomos
paridos. A origem destes processos de camuflagem de fundos e capitais obtidos
de forma não legal (nem sempre ilegal) movimentados de forma legal e investidos
em negócios legais, é desconhecida, embora esteja bem documentada no século
VIII. São sistemas assentes em códigos de honra, compromissos da palavra e em
reputação intocável, sistemas globais, muito anteriores ao capitalismo e de
grande adaptabilidade.
As cidades muçulmanas, bastante
dinâmicas, possuíam, desde o inicio do século XV até aos finais século XVIII,
mecanismos e instrumentos próprios de estádios superiores de troca e
circulação, assentes numa vasta rede de crédito que ligava as cidades do Médio
Oriente ao Extremo Oriente, ao Mediterrâneo e a África (do Indico ao Atlântico,
penetrando pelo interior. O Império do Mali era um grande centro bancário e
segurador, assim como Lagos na Nigéria e o Zanzibar). Era possível, ainda no
século XVIII, a quem viajasse de
qualquer ponto da Índia para Constantinopla e passasse por Bassorá,
utilizar os serviços da East Índia Company ou depositar num dos muitos
banqueiros indianos, que efectuariam o comissionamento a um dos muitos
banqueiros de Bassorá, que por sua vez passava uma carta de crédito para um dos
muitos banqueiros de Alepo, ou de Damasco que ordenariam o deposito aos seus
agentes em
Constantinopla. Créditos , seguros marítimos e de transporte
por terra (caravanas), transferências, empréstimos, operações cambiais e
outras, eram efectuados nestas redes internacionais de grande cobertura.
A economia do Islão - do califado
central e dos estados dispersos que surgiram no final do século VIII - abarcava
diferentes territórios, uma vasta gama de recursos, diferentes povos e
culturas. O califado central, iniciado na Arábia, absorveu o Irão, parte da
Turquia, a Síria, o Egipto e o Noroeste Africano, herdou economias em diversos
estágios, umas fluorescentes, outras em desenvolvimento e diferentes níveis
tecnológicos. A amalgama de todo este território sob a mesma bandeira, mais a
Península Ibérica, grande parte da Ásia Central e parte da Índia, constituía o
mundo islâmico do século X e representava, sem duvida, grandes potenciais de
desenvolvimento.
O seu crescimento abrandou no
século XII e não foi maior do que o crescimento económico de Bizâncio e
inferior ao da Europa na baixa Idade Média. As fascinantes descrições das Mil e
Uma Noites são ilusórias e vêem Bagdade através de uma potente lupa. A
realidade era algo diferente. As estradas, quando existiam eram de má
qualidade, a cunhagem de moedas era deficiente e o grande e exuberante consumo
da ínfima elite não conseguia sobrepor-se aos elevados níveis de miséria. A
pastorícia e o comércio de caravana eram as ocupações básicas dos Árabes, que
desprezavam a agricultura. O comercio itinerante foi a actividade exercida por
Maomé e o respeito pelo comercio colmatava a tradicional aversão (e
desconfiança) pela ordem politica e pelo trabalho colectivo. Mas estas
preferências árabes eram contrariadas pelas classes dominantes Persas,
Bizantinas e Hispânicas, que mantiveram os seus privilégios pela conversão ao
Islão, quando os seus territórios foram anexados pelo califado central. Apesar
destas contradições, o mundo islâmico, na Alta Idade Média tinha um ritmo de
crescimento económico muito superior ao da Europa Católica. Ora, foi em toda
esta ambiência que o sistema de branqueamentos de capitais (e estou a referir
somente as redes históricas do mundo islâmico, existem complexos sistemas e
redes judaicas, europeias e do Extremo-Oriente, com uma História tão rica como
a das redes islâmicas) se afirmou.
Quando as autoridades
internacionais responsáveis pelo combate ao branqueamento de capitais falam de
3 biliões de euros que circulam anualmente nestas redes, fica-se com uma ideia
aproximada da extensão das mesmas. No entanto existem várias questões que devem
ser equacionadas. É importante definir formas efectivas de combate ao
branqueamento de capitais, mas sem asfixiar as liberdades individuais e o
direito á privacidade. É também fundamental entender que uma coisa é combater
todas as formas de fraude fiscal, de lavagem de dinheiro, de corrupção, de
narcotráfico, de terrorismo e gangsterismo e outra coisa é aproveitar estes
fenómenos para aumentar a coerção hegemónica nas dinâmicas externas e aumentar
a coerção sobre os cidadãos, estabelecendo estados policiais que mandam ás
urtigas os direitos, liberdades e garantias, em nome da sacrossanta segurança
(mas segurança do quê? Da propriedade e dos bens do cidadão, respondem as manas
catatuas da segurança. Da propriedade e dos bens de quem? Dos proprietários,
pois é claro, respondem, indignadas as catatuas. Esquecem-se de referir o
Estado e os postos de emprego e os negócios efectuados por conta deste
controlo, que atingiu nos últimos dez anos mais de 100 milhões de euros,
provavelmente, uma nova forma de branqueamento).
Periferias e cidadãos eis as vitimas
primeiras de um sistema de controlo e supervisão que conta, pelos dedos de uma
mão, os êxitos obtidos. A solução não reside, também, no fim dos offshore, ou
do sistema financeiro internacional, como pretendem outras velhas catatuas, tão
inoperantes como as suas congéneres da outra margem iideológica A inserção das
centenárias e milenárias redes financeiras no sistema internacional seria um
passo efectivo na resolução do problema (um passo, apenas, não uma panaceia).
V - Nos últimos 50 anos as taxas de
crescimento do PIB no mundo islâmico foram modestas e na grande maioria dos
países que o compõem, observou-se um período de estagnação entre 1985 e 1990. O
Egipto, por exemplo, que no decénio 1975-1985 registou uma taxa de 8%, nos
cinco anos seguintes vê a sua taxa descer para 5%, enquanto a Síria e a
Jordânia, passam de 10% para 3% (a Jordânia chegou a uma taxa negativa de 12%).
Líbano (por motivo da guerra civil e da agressão - e invasão - israelita),
Iraque (em queda devido a guerra com o Irão e depois as duas guerras do golfo),
a Tunísia e Argélia (de 5% - muito modesto -para taxa negativa), viveram esta
realidade, enquanto Sudão e Somália viviam um período de decomposição social e
na Mauritânia, tal como no Iémen, instaurou-se um período de instabilidade
politica. Marrocos nadou contra-a-corrente e manteve, nesse período, uma
moderada taxa de 5%. As restantes excepções foram a Líbia e as petro-monarquias do Golfo, graças aos rendimentos petrolíferos, redistribuídos
na região, em grande parte, pelo fluxo de capitais públicos e pelas
transferências bancárias dos emigrantes egípcios, jordanos, palestinianos e
sírios.
Este efeito beneficiou a região do
Mashrek (Egipto, Síria, Jordânia, Líbano e Palestina). No Magrebe, a Argélia
(que durante muito tempo foi um prestamista liquido de capitais ao exterior,
devido aos recursos petrolíferos), em consequencia do endividamento pesado,
transformou-se num exportador liquido de capitais, em serviço da divida.
Marrocos e Tunísia aproveitaram o contributo liquido externo (alimentado
principalmente pelas remessas dos emigrantes na Europa).Para os países do
Mashreck o saldo da balança de capitais que representava 6% do PIB, na década
de 70, tornou-se negativa na segunda metade da década seguinte e assim se
manteve até hoje, com ligeiras oscilações. O discurso liberal e a abertura
económica sofreu os mesmos males do discurso socialista: a excessiva
burocratização e a obsessão nacionalista bloquearam o arranque, fosse este
induzido por politicas de investimento publico, quer por via do investimento
privado. Por sua vez, a ajuda externa -anunciada com pompa e circunstancia
quando se iniciaram as politicas de liberalização económica - não se
materializou, salvo pelos créditos militares norte-americanos e as reformas
estruturais criaram uma situação que favoreceu uma rápida acumulação da divida
externa, que atingiu valores colossais.
Assim em 1991 a divida externa
tunisina era de 8 mil milhões de USD, a jordana rondava os 9 mil milhões, a
Síria em 17, Marrocos atingia uma divida externa de 21 mil milhões de USD, a
Argélia 28 e Egipto 41. A
fuga maciça de capitais, que no período 1970-1984 representavam 1,4% do PIB
magrebino e cerca de 4% do PIB do Mashrek, no período 1985-1990 atingiram
3,8% e 9%. Nos 5 anos seguintes desceram para 2% e 6%. O equilíbrio apenas foi conseguido á custa das transferências dos
emigrantes (que actualmente representa cerca de 5% do PIB magrebino e 9% do
Mashrek) e do desenvolvimento do turismo e serviços.
A inserção do mundo islâmico (e
neste, do conjunto dos países árabes, em particular) na economia-mundo foi um
fracasso (existem ilhas de sucesso, obviamente). A fase nacionalista apostou no
"capitalismo sem capitalistas", uma espécie de "socialismo
camuflado", um híbrido destinado ao fracasso, que não resistiu ás
contradições internas, criadas pelo desenvolvimento inicial que gerou. A
tentativa de modernização seguiu o seu rumo com as reformas estruturais, de
cariz neoliberal, mas os seus resultados finais revelam-se um desastre,
consubstanciado - na região árabe - na recompradorização, estratégia ocidental
que fragmenta a região árabe em três sub-regiões, submetidas a lógicas
particulares de compradorização: o Golfo (Arábia Saudita, Emiratos Árabes
Unidos, Kuwait, Qatar e Omã), sob tutela directa dos USA; o Magrebe, dependente
da U.E.; e o "projecto Médio Oriente", uma concepção dos USA e de
Israel, que insere o Mashrek nos objectivos geoeconómicos israelitas.
A estagnação económica, a
deterioração das condições sociais, o desemprego e a precariedade das condições
de trabalho, são cenários que caracterizam grande parte das economias do mundo
islâmico, tanto ao nível da Liga Árabe (Arábia Saudita, Argélia, Bahrein,
Egipto, Emirados Árabes Unidos, Iémen, Iraque, Djibuti, Jordânia, Kuwait,
Líbano, Líbia, Marrocos, Mauritânia, Omã, Palestina, Qatar, Síria, Somália,
Sudão e Tunísia), como nos Estados membros da Conferencia Islâmica (Albânia,
Azerbaijão, Bangladesh, Benim, Bósnia, Brunei, Burkina Faso, Camarões,
Cazaquistão, Chade, Comores, Gabão, Gâmbia, Guiné-Conakry, Guiné-Bissau,
Indonésia, Irão, Malásia, Maldivas, Mali, Níger, Nigéria, Paquistão, Senegal,
Serra Leoa e Turquia). As condições económicas e sociais da maioria destes
países, os falhanços sucessivos das politicas de desenvolvimento, as divisões
históricas e os anseios autonómicos e separatistas de diversas comunidades, a
humilhação e o desespero, conduzem a situações explosivas, viveiros dos
conceitos populistas totalitários, dos discursos fáceis do nacionalismo, da
tradição e da etnosofia, ou seja, são incubadoras do fascismo, arma ultima das
elites retrógradas e um engodo conducente á ingerência ocidental.
Continua
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