sexta-feira, 26 de setembro de 2014

O CALIFADO (3)



Rui Peralta, Luanda (continuação - ler anteriores)

VI - A cimeira internacional realizada em Paris com objectivo de coordenar o combate ao ISIS, reuniu cerca de 30 países e formou uma coligação liderada pelos U.S.A., enquanto os fascistas islâmicos executavam reféns ocidentais, decapitando-os. O encontro realizou-se uma semana depois de Obama ter revelado o plano de ataques aéreos contra o ISIS na Síria e no Iraque. Este plano foi apoiado pela França, apoio que o presidente François Hollande expressou ao apelar para a unidade internacional no combate contra o ISIS. É nas palavras do presidente francês que se revela o conteúdo ideológico do discurso desta coligação. Hollande utilizou - e bem - os termos "terrorismo", "movimento terrorista",  "ameaça global" e "resposta global". O problema, no entanto, é que esta coligação foi formada em função dos interesses de Washington e em função desses interesses, o fascismo islâmico é uma arma de arremesso contra a Síria, o Irão e a Rússia.

A coligação de Washington, coadjuvada pelo intrépido François Hollande (logo com os interesses da França por arrasto, o que deixa os franceses com os restos, a fazerem figura de peixinho limpa-fundos, o que deve obrigar De Gaulle a dar umas voltas no tumulo), irá ser um misto de policia de intervenção e casa de correcção, para que os "rapazes" do califado virem as suas hormonas para outro lado e apliquem utilmente (para os interesses ocidentais, claro) os seus ardorosos ímpetos juvenis. Para tanto basta umas bofetadas á distancia (através das "bombocas" atiradas pelos aviões) e depois alguns correctivos mais cara-a-cara, procurando "inseri-los" e "enquadrá-los".

Como bom serviçal, o novo primeiro-ministro iraquiano, Haider al-Abadi, ordenou (traduziu a ordem) á Força Aérea Iraquiana, para não bombardear os abrigos nas áreas civis, mesmo nas localidades ocupadas pelo ISIS. O Estado iraquiano pretende, desta forma (aparentemente) fazer face á vaga de criticas, devido ao bombardeamento indiscriminado. A questão é hipócrita a vários níveis. A preocupação não é com os civis. Todos os que têm experiencia em situação de guerra (ou os que sofreram uma boa recruta e uma sólida formação militar básica), sabem que este é um problema que deve ser analisado de diversos ângulos. Os danos colaterais são, em condições determinadas, inevitáveis e nunca devem ser escamoteados. Mas o problema do governo iraquiano prende-se não com a salutar opção de salvar vidas inocentes mas com o facto do exército sírio ter essa pratica - de bombardear objectivos no seu próprio território - e essa desgraça ser aproveitada pela máquina de propaganda anti-governamental síria e pelos panfletos propagandísticos  (vulgo jornais e  meios audiovisuais) ocidentais (e não só, até mesmo o bajulador Jornal de Angola e a incipiente TPA, fazem, a troco de nada, o favor aos "amos secretamente desejados"), ou nos relatórios internacionais como um da Human Rights Watch (HRW), que denunciou a morte de 31 civis (entre os quais 24 crianças) num ataque da Força Aérea Iraquiana que atingiu uma escola na região de Tikrit.

Outra questão que coloca duvidas quanto aos objectivos desta coligação prende-se com a Síria. Como é sabido o califado localiza-se numa região que estende-se por este país e pelo seu vizinho Iraque. A Casa Branca andou num corrupio para estabelecer um acordo entre as diversas forças politicas (curdos, xiitas, sunitas moderados). Seria de esperar que fizesse o mesmo em relação á Síria... Mas não! Com dois pesos e duas medidas, a administração Obama considera que o combate ao ISIS na Síria não deve envolver o exército sírio, mas o Exército Livre da Síria, recuperado do Livro dos mortos. Ficamos, assim, esclarecidos acerca das reais intenções da coligação.

O New York Times divulgou, em finais de Agosto, uma reportagem, onde o "Free Syrian Army", os "moderados", é acusado de executar 6 prisioneiros por degolação. Mesmo assim o Secretário de Estado John Kerry enfatizou o papel da oposição síria no combate ao ISIL. Disse Kerry: "The Syrian opposition is on the ground. And one of the regrettable things is it has been fighting ISIL by itself over the course of the last couple of years, and it’s one of the reasons that they’ve had a difficult battle. Now, with the air support and other effort from other countries, they will be augmented in their capacity. One of the things the president put in the plan is the effort to increase the training, increase the equipping and advising to that—to the Syrian opposition. And I can’t tell you whether some other country in the neighborhood will or won’t decide to put some people in there". As palavras de Kerry, no entanto, camuflam a realidade no terreno.

A componente maioritária da oposição síria assinou um acordo com o ISIS, que se manterá em vigor até a queda de Assad. Portanto esta noção de que o ELS vai combater o ISIS é conversa para boi dormir. O que se irá passar na Síria é que as armas, munições e treino, fornecidos pelos USA e NATO, mais o dinheiro financiado pelos petro-protectorados do Golfo representarão uma mais-valia para os fascistas do Califado, que aumentarão a sua capacidade militar. Esta história já se passou antes, com os curdos, quando estes controlavam as áreas fronteiriças entre a Síria e a Turquia, aproveitando as armas que iam para o ELS, que nunca as recebiam. Curdos, Hezbollah e milícias sírias pro-governamentais usufruíram deste abastecimento. Quando a CIA e os turcos se aperceberam alterarem os pontos de passagem. Mas estes novos pontos eram controlados não pelo ELS, nem pelo Conselho Nacional Sírio, mas pelos fascistas da Al-Nusra, o braço da Al-Qaeda no pais, que mais tarde fundiu-se com a sua congénere iraquiana, fundando o ISIS.

A solução passa, pois, por Damasco e Teerão, duas das sete cidades-pilares do Islão. Também á dois anos atrás, quando a ONU iniciou o processo de diálogo na Síria, entre o governo e a oposição, os USA não consentiam a participação do Irão. Acabaram por ceder e as negociações iniciaram-se. Afinal o Irão faz, indubitavelmente, parte da solução! 

VII - Existe um outro problema por resolver e causador de dores de cabeça: o problema saudita. O governo saudita recebeu cerca de 60 mil milhões de USD em armas, munições, formação e equipamento militar, dos USA, nos últimos 2 anos. Muitas destas armas, munições e equipamento foram parar ao ISIS, através de interesses dos clãs sauditas e dos serviços de segurança, inteligência e contra inteligência, que desta forma afastam o ISIS do território, recorrendo a uma tradicional prática tributária, vigente em toda a região (por exemplo, os sírios no Líbano, durante a vigência da Pax Siria nesse país, pagavam tributo aos drusos para atravessarem o vale de Bhekah e o mesmo fizeram os israelitas e fazem os curdos e o Hezbollah. O não pagamento deste tributo saiu caro á OLP).

Egipto, Iraque, Jordânia, Líbano,  Arábia Saudita, Qatar, Bahrein, Emiratos Árabes Unidos, Omã e Kuwait, concordaram ajudar os USA a combater o ISIS, durante um encontro com o Secretario de Estado John Kerry, ocorrido em Riade, no 13º aniversário do 11 de Setembro. Neste encontro Kerry afirmou: "Arab nations play a critical role in that coalition, the leading role, really, across all lines of effort: military support, humanitarian aid, our work to stop the flow of illegal funds and foreign fighters, which ISIL requires in order to thrive, and certainly the effort to repudiate once and for all the dangerous, the offensive, the insulting distortion of Islam that ISIL propaganda attempts to spread throughout the region and the world". Treze anos após o 11 de Setembro, ocorre um encontro para discutir a "ameaça terrorista global", no pais que forneceu 15 dos 19 terroristas que participaram no ataque de 11 de Setembro.

Pode, este facto, indicar duas pistas: 1) os USA não aprenderam nada, em 13 anos; 2) as ligações entre Washington e Riade ultrapassavam as meras sociedades de interesses no sector petrolífero e derivados, sendo a Arábia Saudita um colonato norte-americano com funções geoestratégicas, geopolíticas e geoeconómicas de longo prazo. A primeira hipótese é uma carapuça que só serve os incautos e ingénuos. A segunda é um cenário determinado pelas dinâmicas externas, que necessita ser confirmado pelas dinâmicas internas da região. E estas desenvolvem-se em diversos sentidos e níveis de intensidade.

Nos Estados do Golfo existe um movimento das classes médias, no sentido da democratização e da liberalização da vida politica, social e económica. Não choca frontalmente com os interesses ocidentais a longo prazo e até os favorecem, mas as exigências destas camadas são imediatas e urgentes, não se encaixando nos moldes das eventuais reformas prometidas pela realeza e acordadas (por descargo de consciência) com os USA e NATO. Os movimentos internos na Arábia Saudita vão desenrolar-se em torno de questões como os direitos das mulheres, a homossexualidade, liberdade de expressão e de informação. Paralelamente a estes movimentos e nele inseridos, manifestar-se-ão as minorias xiitas, os movimentos sindicais e de trabalhadores imigrantes e movimentos estudantis.

Todos estes movimentos repudiam o ISIS, coisa que não acontece nas elites dominantes sauditas, onde as relações de famílias e de clãs colocam o assunto fora do alcance das palavras de Kerry.

VIII - Obama (como de costume), foi cilindrado pelos falcões - republicanos e democratas - no Congresso e assumiu a insanidade de prosseguir na agressão a Damasco. A administração Obama utiliza um ardil bem encenado e actua num palco bem montado, embora o argumento seja pobre e mal escrito, baseado no velho conto do policia bom (ele, Obama) e o policia mau (os republicanos). Este argumento serve para a politica interna (caso da politica de saúde e das reformas sociais) e para a politica externa.

Quando, recentemente, acerca do combate ao ISIL, Obama referiu: "I want the American people to understand how this effort will be different from the wars in Iraq and Afghanistan. It will not involve American combat troops fighting on foreign soil. This counterterrorism campaign will be waged through a steady, relentless effort to take out ISIL wherever they exist, using our air power and our support for partners’ forces on the ground. This strategy of taking out terrorists who threaten us, while supporting partners on the front lines, is one that we have successfully pursued in Yemen and Somalia for years. And it is consistent with the approach I outlined earlier this year: to use force against anyone who threatens America’s core interests, but to mobilize partners wherever possible to address broader challenges to international order" , assume uma posição que transforma o drama em comédia barata. Iémen e Somália são exemplos, de facto, mas não do que deve ser feito, da mesma forma que o Afeganistão e o Iraque, ou o desastre líbio.

A intervenção norte-americana no mundo islâmico é um dos factores geradores do fascismo nesta parte do mundo. Os Talibãs no Afeganistão, os tribunais islâmicos na Somália, os bandos líbios, o califado no Iraque e Siria, a Al-Qaeda, são consequência do Great American Disaster da intervenção, para alem de serem causadas pelos fenómenos inerentes ás dinâmicas internas.  Os norte-americanos acumulam erros de analise no que respeita ao mundo islâmico. Por exemplo: Obama autorizou ataques aéreos na Siria e o incremento dos bombardeamentos contra o Califado.  Os ataques aéreos são eficazes quando existem forças no terreno. E aqui reside a grande questão operacional desta opção. No interior do Iraque ou da Siria existem três forças principais, que podem constituir um suporte ás acções aéreas: os combatentes curdos ( Peshmerga); as forças armadas dos respectivos Estados; as milícias locais (xiitas, sunitas anti-fascistas e outras). Estas são as forças no terreno que poderão ser o suporte das acções aéreas e simultaneamente as que consideram as acções aéreas um suporte para a sua movimentação. O problema é que a coligação exclui a maioria destas forças. Ao excluir o governo sírio exclui as forças armadas sírias e todas as milícias pró-governamentais sírias (BAAS, curdos, xiitas). Ao excluir o Irão cria desconfianças no campo xiita, que no caso iraquiano reflectem-se nas alianças politicas. Ao apoiar, na Siria, as milícias anti-governamentais esta a reduzir a base de suporte operacional da coligação neste país (não esquecer, também, que os curdos,  têm um acordo com Bashar). Por outro lado nada está a ser feito em termos de captação e de mobilização das maiorias sunitas, que constituem o suporte do ISIS.

Os USA não conseguem entender a estrutura de alianças no mundo islâmico, em geral e no mundo árabe em particular, embora falem muito sobre isso e publiquem toneladas de papel referenciando o assunto. Ao partirem para o campo de analise com pressupostos baseados nos mitos da "liberdade e democracia do Ocidente", do "despotismo oriental", do "choque de civilizações" e outras barbaridades do género, os USA não podem esperar fazer uma analise correcta de uma situação que ocorre a milhares de quilómetros das suas fronteiras, no mundo cultural diferente do seu e que apenas USA interferiram e interferem em função dos seus interesses imperiais, com uma atitude colonialista, desprezando povos, culturas e História.

As intervenções norte-americanas no mundo islâmico geraram expectativas, primeiro, duvidas, depois e revolta logo de seguida. Os povos do mundo islâmico aspiram a regimes democráticos, onde as liberdades, direitos e garantias sejam uma realidade. Aspiram á justiça social, a uma vida melhor, a condições de saúde e de educação e a construir um mundo onde os seus filhos vivam com dignidade. Nesse sentido as suas aspirações são as mesmas de qualquer cidadão dos USA e da U.E., do mundo ocidental, da cultura "cristã". Os parâmetros são os mesmos e os anseios e esperanças têm o mesmo teor, assim como a dignidade e o direito a uma vida condigna. O problema não é o Islão, não são os sunitas, nem o fundamentalismo teológico. O problema é o fascismo que se faz sentir a Oriente e a Ocidente, como reacção aos novos paradigmas colocados pela economia-mundo e que não encontram resposta nos dois principais arsenais ideológicos do capitalismo (liberalismo e socialismo).

continua

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