Caso
do avião malaio revela: Ocidente segue, no século 21, “ética internacional”
baseada nos mesmos princípios que abençoaram extermínio de mouros e indígenas
José
Luis Fiori – Outras Palavras - Imagem: Theodor de Bry
Devemos
confessar certa nostalgia pelo que ainda se pode chamar
“idade de ouro da segurança”, ou seja, por uma época em que mesmo os
horrores
eram ainda caracterizados por certa moderação e controlados por certa
respeitabilidade
e podiam, portanto, conservar alguma relação com a aparência
geral de sanidade social
Hanna Arendt, Origens do Totalitarismo
Menos
de dois meses depois da queda do voo MH-17 da Malaysia Airlines, no leste da
Ucrânia, o relatório preliminar da Junta Holandesa de Segurança chegou a
conclusão de que o Boeing 777, da Malásia, “explodiu no ar como resultado de
danos estruturais provocados por um grande numero de objetos de alta energia
(“high energy objects”), que penetraram no aparelho desde o exterior”. Segundo
especialistas, ao contrário do que se pensou inicialmente, o avião da Malysian
Airlines teria sido atingido, portanto, por um míssel ar-ar de fragmentação,
que ao explodir disseminou milhares de objetos semelhantes a balas. Um tipo de
armamento altamente sofisticado e de fácil identificação, que os separatistas
ucranianos não têm nem nunca tiveram. O relatório final da junta holandesa só será
publicado em meados de 2015, segundo sua porta-voz Sara Vermooiji, mas seja qual for o seu veredicto,
parece que nenhuma das potências envolvidas no conflito está mais interessada
nas verdadeiras causas e nos verdadeiros responsáveis por este homicídio
coletivo de 298 pessoas estranhas à guerra. Em grande medida, porque seus
efeitos políticos internacionais já foram logrados, com o afastamento entre a
Alemanha e a Rússia e com o endurecimento da posição da UE, defendido pelos EUA
e pela Grã Bretanha.
Em 1128, São Bernard de Clairvaux – admirado
até hoje pelas igrejas católica, anglicana e luterana – cunhou a expressão
“malecídio”, para referir-se a um certo tipo de homicídio abençoado por Deus, e
para defender moralmente o assassinato dos hereges e islâmicos, feito em nome
de Deus. São Bernardo estava pensando e justificando o extermínio dosmouros,
pelas Cruzadas dos séculos XI e XII, mas, de uma forma ou outra, esta mesma tese
reaparece mais tarde na teoria da “guerra justa”, defendida pelos teólogos
espanhóis dos séculos XVI e XVII, que também consideravam ético o extermínio
dos indígenas americanos que resistissem à fé e à civilização cristã. Esta
teoria mudou sua fundamentação – depois de Hugo Grotius (1583-1645) e de Samuel
Pufendorf (1632-1694) – mas manteve o mesmo princípio e a mesma distinção que
segue presente nos tratados e convenções dos séculos XIX e XX, que definem o
“direito internacional da guerra” segundo a visão ética das potências
ocidentais. Em todas as épocas, esta chamada “ética internacional” foi definida
e aplicada pelas grandes potências de cada momento, começando pela Igreja
Católica, e sempre distinguiu e opôs o assassinato dos “amigos”, ou “homens de
bem”, ao “malecídio” dos inimigos, ou “homens do mal”, através de matrizes
binárias e muito simples. E foi sempre em nome destas matrizes éticas que as
grandes potências de cada época arbitraram e executaram todo tipo de
“malecídios”, com ampla liberdade e total convencimento moral.
Durante
a Guerra Fria, por exemplo, em nome da “contenção comunista”, os Estados Unidos
utilizaram-se do “incidente do Golfo de Tonkin” para declarar guerra ao Vietnã
do Norte, em 1964. Em 2005,
a Agencia de Segurança Nacional norte-americana
reconheceu que o incidente com as “torpedeiras norte-vietnamitas nunca foi
realmente confirmado”ii. Ou seja, 40 anos depois do
incidente, o mundo foi informado de que ele talvez tenha sido provado adrede,
ou pior, talvez nunca tenha existido. Da mesma forma que os EUA e a Bélgica
participaram da conspiração e do assassinato do líder nacionalista africano,
Patríce Lumumba, ocorrida em 1961, mas só reconheceram sua co-responsabilidade,
mais de 40 anos depoisiii. Da mesma forma que agora, no ano de
2014, uma comissão de alto nível, formada por juristas e diplomatas de renome
internacional, convocados pelas Nações Unidas, reconheceu que a morte do
Secretário Geral da ONU, Dag Hammarskjöld, em 1961, num acidente aéreo sobre a
Rodésia do Norte, pode ter sido causada por um atentadoiv. Como foi também o caso de outro
líder africano, Samora Machel, morto em 1986, num outro acidente aéreo – sobre
a África do Sul – que teria sido organizado pelo serviço secreto soviéticov.
Esta
lista de conspirações e “malecídios” poderia seguir, e seria quase infinita.
Mas neste caso, qual seria a grande novidade deste novo “incidente da Ucrânia”?
Antes que nada, a Guerra Fria parece que deixou o mundo ocidental sem uma
baliza ética binária e simples, de utilização automática, e a nova tábua dos
“diretos humanos” tem sido aplicada de forma absolutamente arbitrária e
seletiva, pelos europeus e norte-americanos, sobretudo na sua lambança do Oriente
Médio. E o que é mais importante e novo, é que esta arbitrariedade tem ficado
mais visível e de imediato – ao contrário dos tempos de Tonkin – graças a
instantaneidade da informação, e ao vazamento cada vez mais frequente dos
“segredos de estado” das grandes potencias, que revelam a existência de
infinitos pesos e medidas na aplicação das regras criadas pelos próprios
europeus e seus descendentes. Por último, como consequência destas incoerências
e arbitrariedades explícitas das grandes potências, pode-se ver que está em
pleno curso um processo de “terceirização” do arbítrio e da execução de
“malecídios” banalizados como instrumento de luta política local, dentro dos
países considerados relevantes para a geopolítica das grandes potências.
Na
imagem: Gravura em bronze de De Bry, supostamente inspirada no relato de
Bartolomé de Las Casas, sobre as atrocidades cometidas pelos espanhóis contra
os indígenas da América
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i http://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias
2014/09/09/aviao-foi-derrubado-na-ucrania-confirma-relatorio-preliminar.htm
iv http://www.onu.org.br/morte-de-ex-secretário-geral-da-onu-pode-ter-sido-proposital-avalia-comissao-de-jurista/
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