Jorge
Bateira – jornal i, opinião
Mario
Draghi, presidente do Banco Central Europeu, tem sido tratado na comunicação
social como o "salvador do euro". De facto, antes das suas
declarações do Verão de 2012,
a especulação contra a dívida pública espanhola e
italiana tinha conduzido as suas taxas de juro a níveis insustentáveis. Tudo se
encaminhava para uma situação em que estes países tivessem de escolher entre
pedir apoio financeiro à UE e emitir moeda própria. No entanto, após os
"resgates" da Grécia, da Irlanda e de Portugal, já não havia apoio
político no Norte da UE, em particular na Alemanha, para assumir
responsabilidades adicionais. Ao dizer que estava disposto a fazer o que fosse
preciso para salvar o euro - comprar dívida pública nos mercados secundários,
sem limite -, Draghi produziu uma baixa decisiva nas taxas de juro e, por isso
mesmo, não teve necessidade de intervir. Desde então, a abundância de liquidez
nos mercados financeiros tem mantido os juros da periferia da zona euro
desligados da sua evolução económica e financeira. Até um dia...
Acontece
que a insistência na austeridade para alguns, a par do generalizado esforço
para alcançar o equilíbrio orçamental, conduziram a uma quebra na procura
interna que já não pode ser compensada pelas exportações. As exportações de uns
enfrentam a procura insuficiente dos outros, para mais com um euro forte que
torna ainda mais baratas as importações dos países de baixos salários. Com a
procura deprimida, a inflação baixou imenso e em vários países, incluindo
Portugal, os preços têm diminuído. Estamos em sério risco de mergulhar numa
deflação, à semelhança do Japão nos anos 90. O BCE já percebeu que a situação é
grave. Com deflação, as taxas de juro reais (nominais deduzidas da variação nos
preços) sobem e tornam as dívidas ainda mais insuportáveis, o que conduz a mais
falências, mais desemprego e crises bancárias (sim, para além do BES!). Face à
degradação da conjuntura, Draghi voltou a falar (22 Agosto) e disse o
impensável: há riscos políticos graves (leia-se "risco para o euro")
se o desemprego não for enfrentado com a política orçamental, em complemento da
política monetária excepcional que está a preparar. Os mercados financeiros
ficaram satisfeitos e relançaram a bolha especulativa. Até um dia...
Muitos
dizem que Draghi reforçou o seu estatuto de "salvador do euro" e
esperam que a nova Comissão Europeia, reconhecendo a natureza excepcional da
situação, comece a flexibilizar os critérios do défice e da dívida. Esperam
também que o BEI financie grandes obras de investimento público (com poucos efeitos
na periferia) através da emissão de obrigações, possivelmente compradas pelo
BCE. E até vislumbram uma conferência europeia para a reestruturação das
dívidas da periferia. Porém, num contexto de grande incerteza geopolítica, o
mais provável é o agravamento da crise. Na verdade, fazer deslizar o horizonte
dos 3% no défice não chega a ser política orçamental. Também não é previsível
que as eurobrigações em grande escala, mesmo que camufladas pelo BEI, venham a
obter o acordo da Alemanha. Mais, se a taxa de juro negativa sobre os depósitos
dos bancos no BCE já causou escândalo (ver Jörg Bibow, "German Savers Have
It Really Tough"), imagina-se o que aconteceria se Juncker sugerisse uma
conferência sobre a dívida. Fiel à ortodoxia, o BCE também insiste nas reformas
estruturais, o que na prática significa a passagem do Estado social a um Estado
assistencial, negócio para os fundos de pensões e uma ainda maior precarização
do trabalho. O consumo das classes mais desfavorecidas e o investimento são
prejudicados, o que aliás impede a redução dos défices. Mas para isso haverá
tolerância em Bruxelas, desde que o mais importante seja feito - desmantelar o
Estado social com o pretexto de que se está a salvá-lo. Até um dia...
Antes
que o país desapareça, é urgente fazer chegar esse dia, aquele em que
salvaremos Portugal dos seus salvadores. E ajudaremos a salvar a Europa da
depressão, dos fanatismos e da guerra.
Economista,
co-autor do blogue Ladrões de Bicicletas
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