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e não é Rocha Vieira, ainda que haja algo de subtilmente inútil, irrelevante e
condescendente, não só nas declarações do último governador de Macau, mas
também, e sobretudo, na sórdida necessidade da agência estatal chinesa de
procurar reafirmar o que é, desde 1997 em Hong Kong, e dois anos depois, na Cidade do Santo
Nome de Deus, um dado adquirido. Mesmo que em Central e Admiralty desponte em
algumas mãos e em algumas vozes o pavilhão da Hong Kong colonial, as duas
Regiões Administrativas Especiais são e serão parte integrante e integral da
República Popular da China e escamotear um tal status quo é negar um processo
histórico irreversível, do qual o restabelecimento da integridade territorial
da nação chinesa é apenas uma faceta e nem é, de resto, a mais importante.
Para o Ocidente em geral e para Portugal e o Reino Unido, em termos
específicos, o regresso de Hong Kong e de Macau à soberania chinesa pautou o
canto do cisne de um modelo de organização política e social que negava e
contradizia a própria corrente de pensamento que amadureceu na Europa e no
chamado mundo ocidental no pós Segunda Guerra Mundial. A transferência de
administração de Macau entre Portugal e a República Popular da China, a 20 de
Dezembro de 1999, poderia muito bem delimitar a fronteira entre o século XX e o
século XXI nos termos estritos da dinâmica histórica, não fosse terem emergido
outros princípios e forças de organização – o terrorismo e o ultraliberalismo
económico – que teimam em determinar com invulgar preponderância as políticas,
as escolhas e o futuro de povos e nações. O que se esfumou há quinze anos na
Zona de Aterros do Porto Exterior, paredes meias com o Centro Cultural de
Macau, foram os últimos resquícios e os últimos acordes de um modelo de
organização política que tinha por base a imposição desigual de autoridade de
uma cultura sobre outra, pressupondo a existência de dominadores e dominados,
num quadro de relações desiguais, sobretudo a título político.
Se
a manutenção de uma tal quadratura num território com a exiguidade de Macau
durante cinco décadas – as que mediaram entre a fundação da República Popular
da China em 1949 e a transferência de soberania cinquenta anos depois – não
deixa de ser uma anomalia e um pequeno milagre, a tentativa de Pequim (neste
caso personificada pela a agência noticiosa estatal Xinhua) de legitimar a
irregularidade dos protestos de Hong Kong através de um representante de um
sistema de domínio e de governação – o colonialismo – que a liderança chinesa
sempre abominou, não pode ser vista senão como uma abnormidade. Pela fama e
folha de serviços que deixou no território, perguntar ao antigo inquilino do
Palácio de Santa Sancha se os protestos em Hong Kong são ou não improdutivos é o mesmo que
demandar ao inquisidor Tomás de Torquemada no dia do juízo final se Hitler e
Goebbels devem ser censurados por Birkenau, por Auschwitz e por uma política de
extermínio que levou à morte de milhares de judeus.
A relevância de se ter Vasco Rocha Vieira e Martin Jacques – colunista do “The
Guardian” entrevistado pela CCTV depois de ter defendido a óbvia nuance de que
a China é o futuro de Hong Kong – a dissertar sobre o futuro de ambas as
regiões administrativas especiais sai diminuída pelo facto do próprio executivo
de Pequim recorrer com alarmante frequência ao argumento de que a gestão dos
assuntos de Hong Kong e Macau é estrita e exclusivamente do foro interno da
República Popular, mesmo quando há um tratado internacional a respeitar e uma enigmática
fórmula – “Um país, dois sistemas” – a ter em conta na aritmética do
descontentamento que desponta em
Hong Kong.
É no entendimento do malabarismo constitucional em que a
República Popular da China transformou o princípio “Um País, Dois Sistemas” que
ganham forma e substância as sombras e os receios que pairam sobre o futuro das
duas regiões administrativas especiais. O conceito é vago o suficiente para
permitir leituras que sendo dissonantes, não são de todo erradas, inválidas ou
mesmo antagónicas. Para o governo central, a medida do sucesso do Segundo
Sistema é a extraordinária vitalidade económica a que se alçaram Macau e Hong
Kong ao longo da última década e meia, ao passo que, para as forças
contestatárias que actuam num e noutro território, o sucesso e o alcance da
fórmula delineada por Deng Xiaoping terá sempre de ter por denominador a
liberalização dos princípios de governação, para que estes sejam o mais justos
e abrangentes possível. A quase esquizofrénica dissonância entre as duas
interpretações está, grosso modo, na base dos protestos que tomaram de assalto
Hong Kong, e apesar das nuances do primeiro sistema raramente serem invocados
por estudantes e forças contestatárias, elas estão omnipresentes. Numa China
que subjugou o mundo pela força do capital, a vontade de Pequim tornou-se a
medida da normalidade e numa altura em que o mundo navega a contra-ciclo, com a
erosão de direitos políticos e sociais, a normalidade passou a ser a aceitação
tácita de que a governação não necessita de ser representativa para ser
legítima. Mais do que sufrágio universal, é a abrangência do conceito de
governação que está no cerne dos protestos de Hong Kong, e é à luz da ideia de
uma governação representativa que o argumento económico – de que as
manifestações colocam hipoteticamente em risco a estabilidade económica e
financeira da antiga colónia britânica – perde vitalidade. A constatação de que
Hong Kong dispõe da mais livre das economias do planeta é embandeirada pela
República Popular da China como uma evidência segura de que o Segundo Sistema
efectivamente funciona, mas liberdade económica e possibilidade (ou mesmo
probabilidade) económica não são exactamente a mesma coisa. Se fossem, a
vizinha Região Administrativa Especial não teria – e é o próprio governo de CY
Leung quem o reconhece – mais de um milhão e trezentos mil residentes a viver
em situação de pobreza. O crescente desfasamento entre os mais ricos e os mais
pobres está longe de ser apanágio exclusivo das sociedades com défice
democrático, mas nas sociedades com mecanismos eleitorais onde o mais
abrangente dos desígnios – o sufrágio universal – é a norma, o ónus da
responsabilidade pela desigualdade e pela pobreza, pelos atraso na saúde e nas
carreiras de autocarros está repartido por todos e todos dispõem do mais
adequado dos instrumentos – o voto – para operar as mudanças e as rectificações
necessárias. Se tais mudanças se materializam ou não é de pouca relevância para
o duelo político que se enuncia por estes dias em Hong Kong. Na RAEHK
e na RAEM, a noção de representatividade social dilui-se em mecanismos opacos
de consulta pública através dos quais o governo procura afirmar uma Ágora e um
espaço de discussão que não existe. Em dez anos de Macau e dezenas de consultas
públicas não fui uma única vez intimado a contribuir com uma crítica, um
parecer ou uma sugestão sobre a cidade em que vivo e como eu estarão milhares e
milhares dos que contribuem com o seu esforço para que a RAEM seja um caso de
sucesso em termos económicos. Impotentes como eu, são milhares e milhares os
que contam as moedas para fazer frente ao aumento das rendas e dos preços nos
supermercados, os que ponderam vender o carro por não terem lugar para
estacionar, os que evitam táxis e taxistas para evitar confrontos
desnecessários e os que temem o dia em que uma maleita os empurre para um
hospital a fervilhar de gente, tão só e somente porque nenhuma responsabilidade
é assacada a quem governa. Se é verdade que um povo que elege corruptos não é
vítima, é cúmplice, entre a população de Hong Kong e Macau não há cúmplices,
apenas vítimas. Está muito mais em causa em Hong Kong que o sufrágio
universal: no fundo do mar tem rocha e já se sabe que quando o mar bate na
rocha, quem se lixa é o mexilhão.
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