segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Cabo Verde: SURREAL



Expresso das Ilhas (cv), editorial

Nas últimas semanas sucedem-se por todo o país inaugurações diversas que são cobertas ao pormenor pelos órgãos de comunicação públicos da rádio e televisão. O PM, sempre acompanhado de vários membros do governo e de uma grandeentourage, já em várias ilhas inaugurou apartamentos do programa de casa para todos, estradas, barragens. Fez vários lançamentos de primeira pedra, prometeu estudos, entregou habitações. Ministros também apareceram a entregar animais e ração, outros a presentearem pessoas idosas e vulneráveis com cartões de pensão e ainda outros a prometeram crédito ou acesso a crédito. Todas as actividades parecem boas sejam elas conferências, fóruns, workshops, visitas para os membros do governo se mostrarem.

 O PM prometeu, em Santo Antão trabalhar de “sol a sol”. Certamente que as pessoas gostariam de ver resultados mais palpáveis do que as obras, algumas majestosas em dimensão e também em custo, que vêem o governo a inaugurar. A realidade é que a vida das pessoas é cada vez mais precária, a economia arrasta-se num ritmo de crescimento demasiado baixo, a ameaça da deflação paira no ar e do governo só se nota o esforço extraordinário em envolver as pessoas num abraço apertado de dependência. Tudo o que é solidariedade do Estado, ou seja da comunidade nacional, para com os mais vulneráveis é transformado numa relação pessoal quase íntima em que que o cidadão “recipiente” fica em posição de dívida para com o “benfeitor”. Ninguém sabe como depois conciliar esse espírito constantemente alimentado de dependência, conformismo e passividade com o empreendedorismo que se quer promover nas escolas e está a pedir-se a todos para assumir e ser força motriz da economia nacional.

O surreal em muitas destas acções também se viu na estranha escolha de S. Antão como palco para o PM distinguir com medalha de mérito delegados do ministério de agricultura de todos os concelhos rurais do país. De facto, a Ilha não é propriamente um caso de sucesso das políticas agrícolas do governo. O que nela se pode constatar contraria frontalmente a visão apresentada pelo PM de que a agricultura é um “sector atractivo que vem repercutindo fortemente no crescimento do mundo rural”.

Com as parcas chuvas deste ano, a vulnerabilidade extrema de boa parte da população de S. Antão voltou a mostrar-se, como acontecia no passado. Sabe-se que perde população todos os dias, em particular jovens que deixam os campos e rumam em direcção São Vicente, Praia, Sal ou Boavista à procura de algum emprego ou ocupação. O embargo na exportação de produtos agrícolas, há mais de trinta anos, ainda que menos severo por causa do centro de expurgo, continua a ser um grande travão ao desenvolvimento. Uma saída viável para muitos seria a exportação do grogue. Por não ser perecível, não sofrer com o embargo e ter um mercado nacional e estrangeiro potencialmente valioso podia ser o produto derivado da produção agrícola capaz de compensar algum investimento feito na agricultura. Mas, nem isso acontece. A quase total falta de regulação no sector ajuda o “mau” grogue a impor-se em detrimento do “bom” grogue. Ao prejuízo directo que daí resulta ainda se associam outros custos, designadamente sociais, de perda de produtividade, fiscais e de saúde. 

O que se passa em S. Antão não é muito diferente do que acontece nas outras ilhas rurais. As políticas agrícolas deparam-se, na sua execução, com os mesmos os problemas, entre eles os de transporte, de exiguidade do mercado e de falta de regulação na produção e na distribuição. Enormes investimentos são feitos em estradas, barragens, sistemas de rega gota a gota, mas os retornos são diminutos. Quando surge um constrangimento extra, como actualmente a falta de chuvas, sentem-se imediatamente os efeitos que deixam a claro a fragilidade da existência. Por aí vê-se que não devia haver razão para muito regozijo e para actos que mais parecem homenagear quem dá as medalhas do que quem as recebe.

O surreal parece ter substituído o real. Défices e dívidas excessivos nos outros são desvalorizados entre nós. Diz-se com satisfação que o país está a crescer 0,5% do PIB. O risco de deflação é tomado com leveza. Até se diz que o FMI falhou nas previsões porque não viu os números das exportações. A proximidade das eleições poderá dificultar ainda mais o contacto com a realidade. As consequências virão no day after.

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