Já
faz algum tempo que não trazíamos ao Página Global Marcolino Moco,
ex-primeiro-ministro de Angola, sentado à mesa do café a escrever parte do que
lhe vai na alma sobre Angola, sobre a África sua terra-mãe. É evidente que é o
que vem a seguir. Marcolino Moco aborda na sua página, À Mesa do Café, alguns Ditos
e Factos, assim como Ganga.
Ganga – o jovem que foi assassinado pela guarda
presidencial de José Eduardo dos Santos sem que exista uma explicação plausível
para que o tivessem baleado. Assassinado. Mas explicações plausíveis é o que mais falta
para o que acontece em Angola nestes "incidentes" que roubam a vida a jovens só porque pensam e dizem de modo diferente o que pensam.
O
cartoon com a caricatura de Marcolino Moco vem a calhar. O autor, artista
plástico de soberba qualidade, é Nelson Paim. Em Rede Angola tem lá
muitos exemplares com caricaturas de personalidades conhecidas e/ou ligadas a
Angola. Aceite o convite e vá deliciar-se com o “traço” de Paim em Rede Angola.
E
agora Marcolino, prosas que já cá faltavam. (Redação PG)
Ditos
e factos, nos últimos dias
Ditos
e factos, nos últimos dias: em tempos de direitos, liberdades e garantias,
filomenos vieira dias, nitos alves, laurindas gouveia, os mortos, a sociedade e
o mundo
Entrevistado
por um semanário recente (eu estava fora do país há perto de um ano) que dá
pelo nome “Gazeta”, que soube depois, de distribuição gratuita e alegadamente
ligado a um dos badalados filhos do Presidente Santos, suspirei de espanto,
sobre como se alarga o cerco sobre o nosso pensamento. Se se seguir a linha que
referi no anterior pensamento aqui, em relação à TPA, posso adiantar que só me
sobrará ir dizendo algumas coisas no FB e no meu blog, até que as novas
tecnologias nos possam, eventualmente, calar para sempre, como em alguns países
que que não podem, sequer, sonhar com o cheiro do livre pensamento, em qualquer
meio de comunicação social. Mas enquanto a entrevista não sai, cabe-me adiantar
que me foi perguntado, por exemplo, se me preocupa o futuro deste país.
Respondi,
naturalmente, que hoje nem temos já folga para nos preocuparmos com o futuro,
perante a situação grave do presente. E dei o exemplo do tratamento que acaba
de ser dado a uma jovem estudante chamada Laurinda Gouveia, torturada até
quando não se pudesse mais, por tentar exercer um direito, que a seus pais e
avós era negado por uma “constituição” colonial que anunciava, ao menos, abertamente
essa negação; e hoje é a si negado, por autoproclamados libertadores que o
repuseram “constitucionalmente” para enganar. Acrescentei que, infelizmente, em
Angola não havia gente com a coragem de Tutu ou Mandela (também como, se todos
os palcos de demonstração de qualquer coragem estão fechados? – reclamariam
alguns, com razão) nas hostes eclesiásticas e do resto da sociedade cívica.
A ilustração do que disse não se fez esperar: diz-me o semanário “Agora”, que acabo de ler (vénia para os últimos editoriais do Director Ramiro), que Laurinda terá sido afastada do grupo coral que integrava na Igreja Sagrada Família, por seu corpo ter aparecido da forma como apareceu maltratado nas redes socias. Na entrevista, pediram-me uma opinião, se tudo não se devia à incapacidade dos partidos políticos.
Respondi
que era provável, até porque se diz que se o sistema favorece, em primeiro
lugar, faixas escalonadas do partido no poder, acaba também por beneficiar
sectores representativos dos partidos com assento na AN. Mas eu preferi pôr
assento no facto de que os partidos políticos sérios, afunilados e cercados por
todos os cantos, provavelmente, estão a fazer o melhor que podem, para não
deixarem vazio um espaço importante da vida política do país. Neste aspecto
também a notícia do “Agora” não deixou de trazer a respectiva ilustração:
Laurinda terá sido expulsa da casa da tia onde vivia, por conta da visita de
solidariedade a si efectuada por um grupo de deputados da UNITA de primeira
linha, por medo de represálias de um regime permanentemente ameaçador.
E
o mundo observa impávido e sereno o que se passa, para preservar esta falsa
estabilidade, capaz de salvaguardar no imediato os interesses petrolíferos e
falsas estabilidades regionais e sub-regionais.
Que
futuro resta para um país e para a sua juventude, no Século XXI, onde a vítima
é “condenada” por ser vítima? Apenas o rompimento deste cerco ao pensamento de
modo imprevisível ou o repensar consciente dos caminhos escolhidos pelos
responsáveis políticos actuais, enquanto é cedo. (publicado em 06 de Dezembro)
A
desumanidade do Estado médio africano: Ganga um ano depois!
A
desumanidade do Estado médio africano: o exemplo de Ganga faz um ano e não há
lições apreendidas pelos dignitários actuais do Estado angolano
Caros
irmãos mais novos, especialmente a juventude da CASA-CE e toda a juventude de
Angola
Pediram-me
para que titulasse este tema com o epíteto “O Exemplo patriótico do jovem
Ganga”. Eu preferi o presente título, menos sintético e “politizado”, porque na
minha já longa vida tenho evoluído muito nas minhas concepções sobre o ser humano
e as instituições. Assim se em adolescente já acreditei que era certa a ordem
“salazarista” “Deus, Pátria e Família” e em jovem adulto, quando o mundo estava
dividido em irreconciliáveis ideologias, pensava que o “meu partido” era o
centro de Angola, estou a caminho de três décadas que acredito que devemos
começar pelo ser humano, no qual, como afirma a filosofia banta, reside a
própria entidade divina. Por isso antes de ligar Ganga a uma “pátria” que foi
tomada por uma minúscula “etnia política”, mesmo dentro de um grande partido,
prefiro ligar este jovem corajoso, à defesa da vida – apesar de a ter perdido –
num combate que a cegueira política torna tão difícil, sem a mínima
necessidade.
Se
bem o reparam, este título encerra também um conteúdo pan-africanista. O
comportamento dos homens de Estado que mataram o jovem Ganga, há um ano, em
pleno exercício dos direitos que lhes plenamente lhe assistiam, por uma
“constituição” nacional, embora centralmente revestida de aspectos inusitados,
como os poderes extraordinários que confere a um inamovível Chefe de Estado e
aos seus descendentes e outros familiares e amigos de ocasião, temos que
começar a vê-lo no contexto africano. Embora não deixemos de notar que o caso
de Angola já há muito começa a extravasar todos os extremos. Quando vi nas
“jornadas parlamentares da CASA-CE do ano passado (para as quais fui convidado
a palestrar como académico) representantes de partidos da oposição de
Moçambique e Cabo Verde, sobreveio-me essa ideia de uma coordenação dos esforços
de uma oposição pan-africana séria a regimes que mantêm o autoritarismo herdado
dos poderes coloniais. É evidente que foi apenas uma sugestão que me sobreveio,
já que nem Moçambique, muito menos Cabo Verde podem ser, no meu ponto de vista,
catalogados neste tipo de regimes. Refiro-me a regimes que, como o angolano,
criam todos os mecanismos para não prestar contas a ninguém; outros mecanismos
para abolir mecanismos que possam produzir algum tipo de alternância
partidária, étnico-regional ou ao menos geracional (só dentro das próprias
famílias), a não ser que sejam corridos por multidões enraivecidas, por tanto e
continuado abuso do poder, como aconteceu há dias no Burkina Faso.
A
morte de Ganga deve fazer-nos lembrar outros aspectos da luta pelo usufruto da
independência nacional e da cidadania por todos os angolanos inseridos nos mais
diversos sectores da vida nacional, seja sectorial, partidária,
étnico-regional, género, etário, sem que isso se apresente de forma descarada
ou disfarçada, como um favor ou termos que afinar por um mesmo diapasão as
tonalidades das nossas peles, nossos sotaques e inclinações culturais. Se se
tomasse a sério, por exemplo, a questão da reconciliação nacional (como
acontece por exemplo na África do Sul) nunca mais ouviríamos, impunemente, e da
boca de responsáveis políticos do regime, que Samakuva da UNITA não deveria
dizer isso ou aquilo porque foi perdoado pelo “arquitecto da paz” ou que
Chivukuvuku da CASA-CE está vivo graças ao mesmo extraordinário arquitecto.
Isso devia ser reputado de muito grave.
Deve
ser conhecido também que, perante minhas críticas – por vezes meras conclusões
das ciências jurídico-políticas – diante de tanta excentricidade do regime do
Senhor Presidente Santos, há quem queira que me cale, porque assim “cuspo no
prato em que comi”. Gravíssima essa ideia, como se fôssemos para as funções
públicas nacionais ou internacionais para as quais somos convidados ou
assumimos por vontade própria para “comermos do prato de alguém”, DDT (dono
disso tudo).
No
outro dia, ao comparar o que se passou no Burquina Faso com o caso de Angola,
apontava eu que não obstante nos virem levantar uma cortina de fumo, para nos
dizerem que não há referências comparativas, a verdade é que Angola atravessa
uma situação de abuso do poder muto mais grave (v. minhas páginas FB, dia 9/11
ewww.marcolinomoc.com, dia 10/11).
Em relação a isso, um suposto confrade meu do MPLA, que certamente não
acompanha a minha trajetória apesar de muita coisa escrita e falada (não
sabendo por exemplo que me encontro auto-suspenso de todas actividades e
organizações do MPLA), disse-me que eu teria razão mas que deveria colocar “as
questões nos lugares próprios”. Isso significa que não obstante estarmos há
doze anos de Paz e Democracia de armas caladas, há ainda compatriotas que
pensam que o seu partido é o centro do mundo. Por mais que o regime por si
sustentando mate activistas políticos pacíficos como Ganga e outros e
interrompa os seus funerais, igualmente pacíficos; tudo porque tentam organizar
manifestações contra outras mortes inacreditáveis; regimes que alteram
consensos e princípios constitucionais para prolongar mandatos, comandam
tribunais para anular poderes parlamentos nacionais; não disfarçam sequer a protecção
de pessoas conotadas com suspeitas de branqueamento de capitais dentro e fora
de seus países; criando discricionariamente fundos soberanos geridos pelos
próprios filhos a quem tornam “príncipes” e intocáveis multimilionários (em
plenas repúblicas) e gestores de meios de comunicação do estado, monopolizando,
por outro lado, os meios privados de comunicação; entre outras anomalias
descaradas, que contam sempre com o apoio de elementos das antigas metrópoles
coloniais, como este, o de afastar jornalistas que falam das verdades de Angola
dos meios de comunicação portugueses. E disseram a esse militante do MPLA que
tudo isso obedece a uma estratégia do partido, como teve a coragem de o
confessar. Que estratégia de partido é essa que impede a formatação de uma
estratégia nacional e se alimenta de jovens vidas humanas e duma “acumulação de
capital” declarada para uma família restrita e aliados de ocasião, tudo à vista
de todos, com enormes empreendimentos puramente financeiros, fora do país?
Ganga
e seus companheiros de luta dentro da CASA-CE e noutros sectores da sociedade
angolana ainda vivos, porque escapados de um longo morticínio, mesmo depois de
decretada a Paz definitiva e a construção pacífica de uma Sociedade
Democrática, deixam-nos a lição de que as instituições estão para defender a
vida dos cidadãos e não para a destruir, para eternizar regimes, que não
aceitam prestar contas sobre o seu desempenho. Ganga e companheiros,
recordemos, pretendiam, pura e simplesmente, indagar sobre o desaparecimento
anterior de outros jovens: Cassule e Kamulingue, em tempo de paz e democracia e
no exercício dos seus direitos. Não há dúvidas que, por este preço tão alto, o
conseguiram: hoje – simulacro ou não – fala-se, ao menos, de um “julgamento dos
assassinos de Kassule e Kamulingue” (não devendo ser por acaso que seja agora
retomado por altura do aniversário da morte de Ganga). Porque, como temos
referido, até mais no caso da corrupção, do nepotismo e da obstrução da
competência comandados aberta e superiormente, em Angola, o problema não é que
estas questões não existam noutras partes do mundo. O problema é que na Angola
do regime “eduardista”, depois da guerra civil, estes fenômenos sobrevivem sem
qualquer freio, subordinados todos os poderes (legislativo e judicial) a um
chefe do Executivo que é intocável.
Com
o exemplo de Ganga, o meu desejo é que todo o resto da juventude, independente
das filiações ou não filiações partidárias, entenda que não haverá futuro
tolerando silenciosamente ou sustentando, com o nosso cobarde comportamento,
regimes autoritários, mesmo quando por interesses passageiros e devido a
afabilidades diplomáticas, sejam inundados de elogios, por entidades
estrangeiras, devido a falsas estabilidades. Costumo brincar que devido a minha
idade e cansaços de “tanta luta e tanto luto”(M.Rui), já não posso juntar-me às
correrias e torturas de jovens manifestantes, que apoio inteiramente porque
estão mais do que no seu direito e sempre o fizeram dentro dos marcos legais; e
falta pouco e não sei se já não terá chegado o tempo de o fazerem apenas em
nome de uma legitimidade que vai faltando cada vez mais ao actual regime que se
vai renovando através de trapaças constitucionais e imoralidades tão
descaradas, como aquela de nos apresentarem o Governador do Banco de Angola,
sentado ao lado de uma filha do Presidente e Chefe do Executivo de uma Angola,
ainda recém-saída da guerra, como se propala, a apresentar uma proposta de
compra de uma das maiores empresas portuguesas (a PT).
No
que me toca, no seguimento do exemplo de Ganga e na defesa da vida, continuarei
a enviar a minha mensagem de paz àqueles que detêm o poder e parecem possuídos
de tanto medo que agora que se deu o caso do Burkina Faso, sonham com fantasmas
de tudo poder repetir-se em Angola, por “culpa da oposição”, quando esta há
muito tem demonstrado que em Angola, depois de tanto sangue, podemos tentar
outra via para transitarmos pacificamente do “eduardismo” para uma verdadeira
sociedade pacífica e democrática, à medida de uma nova África, como eu próprio
defendo no meu opúsculo “Angola: a terceira alternativa”, que não se trata de
um programa político, mas de um método de negociação proposto a todos os
actores políticos e à toda a sociedade civil.
Não
podemos continuar aceitar que na África negra, em geral, e em Angola, em
particular, a anormalidade seja considerada algo normal, como se pertencêssemos
a uma espécie de raça inferior, anteontem dominada pelo colonialismo forasteiro
e hoje por quem ontem se proclamou nosso libertador.
É
esta a grande lição que Manuel Hilberto “Ganga” nos deixou, no fatídico dia 22
de Novembro de 2013. Que a aprendam os actuais detentores do poder e logo
teremos uma Angola virada para a solução dos problemas mais prementes, sem
medos, em paz e harmonia necessárias. (publicado em 26 de Novembro)
Marcolino
Moco – À Mesa do Café
*Cartoon
de Nelson Paim, caricatura de Marcolino Moco em Rede Angola - Nelson
Paim, Dande, 1992. Artista plástico, iniciou o seu percurso trabalhando em
óleo sobre tela, mas foi na ilustração que encontrou a sua linguagem gráfica. É
presença habitual em festivais internacionais.
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