segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Portugal: JOSÉ SÓCRATES E O CONGRESSO DO PS



Tomás Vasques – jornal i, opinião

O segredo de justiça é um instrumento concebido para proteger os arguidos que se transformou numa arma mortífera contra os direitos de quem devia proteger

Não sei - ninguém sabe, neste momento - se o ex-secretário geral do Partido Socialista e ex-primeiro-ministro é culpado ou inocente dos crimes que o juiz Carlos Alexandre lhe imputou, ainda sob a forma de indícios. Nem a própria prisão preventiva em que se encontra José Sócrates está consolidada. Nos termos da lei, essa medida de coação é ainda questionável em instâncias superiores. Ou seja, para abreviar, neste caso (como em relação a qualquer outro caso de qualquer cidadão, na mesma situação), a justiça ainda não cumpriu na plenitude a sua missão: investigar, acusar e julgar até à última instância. Até que isso aconteça muita água vai correr debaixo das pontes.

O que este caso trouxe à tona de água, tanto ou mais que qualquer outro anterior, sobretudo pela particular contaminação política que o envolve, foi, em primeiro lugar, que o "segredo de justiça", consagrado na lei, é um instrumento que, concebido para proteger os arguidos, se transformou no seu contrário: é uma arma mortífera contra os direitos de quem devia proteger. Em segundo lugar, constatado que o "segredo de justiça" já não existe, e é usado através da comunicação social selectivamente, de modo a produzir uma acusação e uma condenação antecipadas na opinião pública, a presunção de inocência passa a ser letra morta e substituída pelo seu inverso: a presunção de culpa até prova em contrário. Finalmente, em terceiro lugar, a condenação antecipada, no tempo mediático e não no tempo e nos trâmites judiciais, sem contraditório, provoca, inevitavelmente, uma inversão do ónus da prova: passa a caber ao arguido, já publicamente acusado e condenado, demonstrar que está inocente, libertando a justiça da tarefa de provar a sua culpa. Ao contrário do que muita gente por aí diz, a perversão de princípios basilares de um Estado de direito não fortalece a democracia. Esta empobrece sempre que deita pela borda fora as traves mestras que lhe conferiram o estatuto de "ser o pior regime com excepção de todos os outros".

Há quem defenda este desregulamento das regras basilares das sociedades democráticas argumentando que, em primeiro lugar, na sociedade da informação e do espectáculo dos nossos dias, é impossível manter-se o "segredo de justiça" e, em segundo lugar, este julgamento e condenação antecipados não são judiciais mas políticos. Fracos argumentos para a destruição de bens democráticos tão preciosos.

Quanto ao "segredo de justiça" basta lembrar, neste caso mais recente, que na noite de sexta-feira, 21 de Novembro, não havia a mais insignificante notícia jornalística sobre a detenção, no dia anterior, de três indivíduos, um empresário, um motorista e um advogado (todos relacionados com José Sócrates), por suspeitas de crimes de corrupção, branqueamento de capitais e fraude fiscal, bem como a visita policial a casa do filho e da ex- -mulher do ex-primeiro-ministro. Como acredito que a comunicação social teria divulgado essa notícia, no caso de ela ter chegado ao conhecimento das redacções, presumo naturalmente que as "gargantas fundas" não quiseram abrir a torneira, o que significa que a torneira, se se quiser, no respeito pela lei, pode ficar fechada.

Quanto aos julgamentos políticos, é melhor avisar essa gente que não decorrem da sua vontade e são feitos em eleições. José Sócrates, e o governo do Partido Socialista, foram julgados politicamente nas eleições de Junho de 2011. Pretender um "julgamento político" fora de eleições, a partir de uma condenação mediática, assenta em sucessivas violações do segredo de justiça, do princípio da presunção de inocência, da inversão do ónus da prova, do contraditório e à margem da pirâmide da justiça, conduz-nos a uma democracia apodrecida, sem substância. Uma democracia à mercê de todos os apetites antidemocráticos.

PS Muita gente desejava que o congresso do Partido Socialista, realizado este fim-de-semana, meia dúzia de dias após a detenção de José Sócrates, fosse uma espécie de velório ou, pior ainda, que se transformasse num desfile de carpideiras a vociferar contra a justiça. Isso não aconteceu, naturalmente. António Costa foi capaz, no calendário difícil em que se realizou este XX Congresso do PS, de dar a dimensão política que se exige ao maior partido da oposição. E ficou claro que "nem uma mudança de líderes da direita permitirá qualquer tipo de acordo".

Jurista, escreve à segunda-feira

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