António
Rodrigues – Rede Angola
Na
semana em que
Timor-Leste assinala os 39 anos da independência de Portugal,
um retrato do antigo primeiro-ministro, muçulmano num país onde foi a religião
católica a manter viva a ideia da independência.
Muçulmano
num país onde a Igreja Católica manteve viva uma ideia de identidade diferente
da do ocupante, a viver em Moçambique enquanto alguns dos seus companheiros
resistiam nas montanhas de Timor contra os soldados indonésios, Mari bim Amude
Alkatiri foi o primeiro primeiro-ministro do Timor-Leste depois do regresso à
independência em 2002. E no cargo se manteve até 2006, altura em que se demitiu
para tentar acalmar o clima de violência que se vivia nas ruas.
Numa
entrevista que lhe fiz então para a agência Lusa, garantia que resistira a
todas “as pressões” e nem mesmo as do presidente Xanana Gusmão “lhe meteram
medo”, e que só se demitiu porque não queria “governar sobre cadáveres” e para
“evitar o vazio institucional” que aconteceria se o chefe de Estado se
demitisse ou dissolvesse o parlamento. O chefe de Estado era Xanana Gusmão,
hoje primeiro-ministro.
Aos
65 anos, cumpridos hoje, Mari Alkatiri continua activo como líder da Fretilin –
único partido da oposição no parlamento timorense – e é actualmente presidente
da Autoridade da Região Administrativa Especial de Oecusse, o enclave
leste-timorense na metade ocidental da ilha e que vai ser transformada em Zona Especial de
Economia Social de Mercado.
O
projecto liderado pelo antigo primeiro-ministro pretende fazer de Oecusse,
considerado o berço da nação timorense (primeiro ponto onde os portugueses se
estabeleceram), um pólo de desenvolvimento nacional, regional e sub-regional,
prevendo-se a criação de um aeroporto, estradas e pontes.
Mais
uma vez, Alkatiri trabalha para o desenvolvimento de Timor-Leste
independentemente das críticas e da má imprensa que sempre teve – os média
internacionais, principalmente os portugueses, sempre morreram de amores por
Xanana Gusmão, romântico guerrilheiro da floresta preso pelos indonésios,
sempre se deixaram seduzir pelo charme do ocidentalizado José Ramos-Horta, que
cresceu nos corredores da ONU e nas chancelarias internacionais, e quase nunca
deram o devido crédito ao trabalho do actual líder da Fretilin.
Como
escreveu ainda recentemente Daniel Oliveira no semanário português Expresso:
“Já o ex-primeiro-ministro e líder da oposição, Mari Alkatiri, que salvou Timor
da gula, nunca teve direito a imagens românticas. Não correspondia ao boneco
sexy do combatente nas montanhas que os portugueses queriam receber daquelas
paragens. Boa lição sobre os enganos que o jornalismo das causas consensuais
pode alimentar.”
E
a verdade é que há no trabalho político de Alkatiri um corpo rigoroso de ética
estadista (se calhar, por vezes, demasiado rígido quando se pedia alguma
flexibilidade), desses entregues ao serviço público e à defesa dos interesses
do seu país e do seu povo acima de tudo. Doze anos depois da recuperação da sua
independência, que a Fretilin ousara declarar em 1975 nas barbas da ditadura
indonésia – e que esta, aproveitando o ar da Guerra Fria, subjugou por meio das
armas, anexando o pequeno país liderado por um partido de ideias marxistas -,
se hoje Timor-Leste consegue, apesar de todas as vicissitudes, existir como
Estado, ao trabalho de Alkatiri se deve.
Nomeadamente
nas negociações com a poderosa Austrália sobre o petróleo do Mar de Timor.
Apesar das pressões, das ameaças, do bullying da diplomacia
australiana (note-se o oxímoro), Alkatiri defendeu os interesses timorenses até
ao fim. Não espanta que tenha acabado por ser empurrado para a demissão pela
violência na rua, violência que as forças australianas em Timor-Leste não
quiseram travar. E tenha sido Xanana Gusmão, o então presidente e mais bem
visto por Camberra, a ganhar influência.
Escrevia,
então, Boaventura Sousa Santos: “À medida que se aprofunda a crise em
Timor-Leste, os factores que a provocaram vão se tornando mais evidentes. A
interferência da Austrália na fabricação da crise está agora bem documentada e
vem desde há vários anos. Documentos de política estratégica australiana de
2002 revelam a importância de Timor-Leste para a consolidação da posição
regional da Austrália e a determinação deste país em salvaguardar a todo o
custo os seus interesses.”
No
livro que publicou em 2006, uma colecção de 42 discursos como chefe do governo,
intitulado Timor-Leste – O Caminho do Desenvolvimento, algumas das
palavras de Alkatiri dirigidas à Austrália mostram a firme disposição de dar às
conversações entre os dois países a dignidade de conversações entre duas
nações, independentemente da dimensão de ambas e do seu estado de
desenvolvimento económico e político.”Pedimos à Austrália para se nos juntar
num calendário concentrado, com negociações a realizarem-se todos os meses. Somos
a nação mais pobre da Ásia, mas encontraremos os recursos suficientes para
suportar este calendário. Pedimos à Austrália, que é o país mais rico da
região, para fazer o mesmo. Mas, ironicamente, se a Austrália tiver problemas
em organizar os recursos para um calendário de negociações mais comprimido,
estamos preparados para ajudar, disponibilizando fundos provenientes da nossa
parte actual dos recursos do Mar de Timor.”
Percebe-se
nas palavras a tensão e o braço-de-ferro entre o vizinho poderoso, habituado a
fazer valer a sua posição na região, e a jovem nação que dava os primeiros
passos na diplomacia internacional e procurava salvaguardar para si o máximo
possível das receitas dos seus recursos. “A Austrália não é o único país a
evitar a jurisdição internacional quando sente que a lei está contra as suas
pretensões. A predominância do Direito não deve apenas ter em vista os mais
fracos e os mais pobres. As nações mais poderosas deviam ser um exemplo.”
A
má fé australiana nas negociações acabou por redundar numa queixa formal de
Timor-Leste junto do Tribunal Permanente Arbitral de Haia por alegada
espionagem da Austrália durante a negociação do tratado de exploração do
petróleo e gás no Mar de Timor.
Criar
um fundo para evitar a tentação petrolífera
Em
2006, Nuno Antunes, o advogado português que serviu como assessor jurídico de
Alkatiri nas negociações entre os governos timorense e australiano, dizia-o sem
rodeios, em entrevista ao Diário de Notícias: “Tenho é poucas dúvidas de
que as declarações de apoio a Xanana Gusmão e a Ramos-Horta por parte da
Austrália em geral têm muito a ver com o facto de o primeiro-ministro timorense
ser quem é”. Explicando que em causa estavam “os projectos que Mari Alkatiri
tinha para o futuro”, porque, “bem gerido”, o petróleo iria permitir a Dili
manter “uma relativa independência perante a Austrália e a Indonésia”.
“Desde
o início do seu governo, o primeiro-ministro timorense, Mari Alkatiri, um
político lúcido, nacionalista mas não populista, centrou a sua política na defesa
dos interesses de Timor, assumindo que eles não coincidiam necessariamente com
os da Austrália”, escrevia Boaventura de Sousa Santos em 2006. “Isso ficou
claro desde logo nas negociações sobre a partilha dos recursos do petróleo em que Alkatiri lutou por
uma maior autonomia de Timor e uma mais equitativa partilha dos benefícios. O
petróleo e o gás natural têm sido a desgraça dos países pobres (que o digam a
Bolívia, o Iraque, a Nigéria ou Angola). E o David timorense ousou resistir ao
Golias australiano, subindo de 20 por cento para 50 por cento a parte que
caberia a Timor dos rendimentos dos recursos naturais existentes, procurando
transformar e comercializar o gás natural a partir de Timor e não da Austrália,
concedendo direitos de exploração a uma empresa chinesa nos campos de petróleo
e gás sob o controlo de Dili.”
O
Fundo Petrolífero de Timor-Leste, criado propositadamente para gerir os lucros
do petróleo, foi inspirado no modelo da Noruega para evitar que o súbito fluxo
de dinheiro proveniente da exploração do petróleo acabasse por servir de
incentivo à corrupção das instituições ainda frágeis do jovem país. Tendo os
múltiplos exemplos de nações que sofrem as consequências de lucros gigantescos
direccionados para mãos privadas e que não se disseminam em desenvolvimento do
país, Alkatiri e o seu governo criaram esse mecanismo institucional para travar
a tentação humana.
No
documento criado em 2004 pelo seu governo para a discussão pública sobre o
fundo, Alkatiri salienta que o objectivo do mesmo “é ser uma ferramenta que
contribua para uma gestão sábia dos recursos petrolíferos” que permita “o
benefício tanto das gerações actuais como das gerações vindouras”.
Único
dos fundadores do Movimento para a Libertação de Timor-Leste ainda vivo
Mari
Alkatiri nasceu em Díli em 1949, descendente de uma família iemenita que se
estabeleceu em Timor no século XIX. Estudou em Angola e na altura da ocupação
indonésia desempenhava a profissão de agrimensor mas já era uma figura entre os
nacionalistas, tendo sido um dos fundadores na clandestinidade do Movimento
para a Libertação de Timor-Leste em Janeiro de 1970 – segundo a sua biografia
oficial é o único ainda vivo hoje – e a seguir a Associação Social-Democrata de
Timor que redundaria na criação da Fretilin em 1974.
A
seguir à ocupação, partiu para Moçambique, onde viveu até Outubro de 1999,
altura em que regressou a Timor para assumir funções no primeiro governo de
transição como ministro dos Assuntos Económicos, assumindo depois a chefia do
II Governo Transitório a seguir às eleições para a Assembleia Constituinte e o
cargo de primeiro-ministro após a independência do país, a 20 de Maio de 2002.
Nos
24 anos que passou em Moçambique (onde se licenciou em Direito pela
Universidade Eduardo Mondlane) foi responsável pela delegação externa da
Resistência timorense naquele país.
Esse
quase quarto de século fora de Timor chegou a ser usado como argumento político
por Xanana Gusmão em 2006, na altura da violência, facto que Alkatiri
classificou como “chocante”, por ter sido essa uma decisão da liderança da
Resistência: “O Presidente Xanana sabe que as pessoas que partiram o fizeram
por decisão da liderança naqueles anos e ele até foi um grande defensor das
três frentes: da luta armada, da política interna e diplomática. Agora, aparece
com um discurso destes. Para mim foi chocante. Simplesmente, chocante”.
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