A
Grécia deu um primeiro sinal de que não quer ser parte de uma Europa refém da
guerra fria. Até quando pode a UE ser lobo em Atenas e cordeiro em Washington?
Boaventura
Sousa Santos – Visão, opinião
A
vitória do Syriza teve o sabor de uma segunda libertação da Europa. A primeira
ocorreu há setenta anos, quando os aliados libertaram a Europa do jugo alemão
nazi e puseram fim ao horror do Holocausto. Um dos países que mais sofreu por
mais tempo com a ocupação nazi e suas consequências foi a Grécia. A
geoestratégia dos aliados fez com que à libertação se seguisse uma guerra civil
para impedir que os patriotas comunistas e seus aliados chegassem ao poder. Num
contexto democrático, e ante um poder alemão, agora económico e não militar e
disfarçado de ortodoxia europeia, os gregos voltam a revelar a mesma coragem de
enfrentar adversários muito mais poderosos e de mostrar aos povos europeus, que
sofrem as consequências do jugo dessa ortodoxia, que é possível resistir, que
há alternativas e que é preciso correr riscos para que algo mude sem tudo ficar
na mesma.
Tenho
escrito que o capitalismo só é inflexível até sentir a necessidade de se
adaptar às novas condições. Digo capitalismo e não União Europeia porque neste
momento os interesses do capitalismo global são os únicos que contam nas
decisões dos órgãos decisórios europeus. Se esta hipótese se confirmar, o risco
assumido pelos gregos foi calculado e é possível que os portugueses, os
espanhóis, os italianos e, em geral, todas as formigas europeias da fábula de
Esopo possam beneficiar do aperto a que serão sujeitas as cigarras do Norte e
do Sul ?(o sistema financeiro, os bancos e as oligarquias). Para já, estamos
num momento alto de política simbólica, comunicação indireta, suspensão
informal das regras de jogo, não provocação do "adversário" para além
do necessário, fronteira ambígua entre o negociável e o inegociável. Mas a
ortodoxia tremeu, e o tremor da sua bancada subalterna foi, como era de esperar,
o mais patético. No caso português, indigno.
A
Europa está num momento de bifurcação - ou se desmembra ou se refunda. Pode
levar anos, mas não voltará a ser a mesma. É um momento de desequilíbrio
pós-normal em que mínimas oscilações podem provocar grandes mudanças num ou
noutro sentido. Eis os desafios. Primeiro, contra a ortodoxia, sempre afirmei
que a dívida grega (ou portuguesa) era europeia e como tal devia ser tratada. A
ortodoxia só agora se dá conta disso. Sabe que o problema da Grécia é o
problema da Europa e que a sua solução só poderá ser europeia. Vai começar pela
negação da realidade e "demonstrar" a especificidade do caso grego,
mas a realidade vai gritar mais alto. Será fácil convencer os portugueses de
que o cemitério em que se converteram as urgências hospitalares é o produto de
um surto anormal de gripe que entretanto ninguém viu? Segundo, as políticas de
austeridade provocam mais tarde ou mais cedo reações e é bom que elas ocorram
por via democrática. Foi assim na América Latina, onde a austeridade dos anos
noventa do século passado levou ao poder governos progressistas, para quem a
bandeira principal era a luta contra a austeridade e a promoção do bem-estar
das maiorias empobrecidas. Na Europa, pese embora o triunfo do Syriza e o
possível triunfo do Podemos em Espanha, há um elemento adicional de incerteza.
Ao contrário da América Latina, há também partidos de direita e de
extrema-?-direita que se dizem contra a austeridade. O fracasso das soluções de
esquerda não conduzirá necessariamente a soluções de centro-esquerda ou
centro-direita. É por isso que a Europa nunca mais será a mesma.
O
terceiro desafio são os EUA. A União Europeia tem vindo a perder autonomia em
relação aos desígnios geoestratégicos dos EUA, como mostram o maior
envolvimento na NATO, a nova guerra fria contra a Rússia, a parceria
transatlântica de livre comércio, que desequilibra a favor da multinacionais
norte-americanas os processos decisórios nacionais e europeus. Os grandes media
querem-nos fazer crer que a Grécia é uma ameaça maior que a Ucrânia, mas os
europeus sabem que, pelo contrário, na Grécia, a Europa está a fortalecer-se,
na Ucrânia, está a enfraquecer-se. A Grécia deu um primeiro sinal de que não
quer ser parte de uma Europa refém da guerra fria. Será esta posição parte da
negociação? Até quando pode a UE ser lobo em Atenas e cordeiro em Washington?
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