quarta-feira, 8 de abril de 2015

A AGRI(CULTURA) DA TRAGÉDIA (2)



Rui Peralta, Luanda

Alternativas dissidentes: a outra globalização

I - 
A actual desordem mundial - estabelecida nos anos 80 com os programas de ajustamento estrutural e com a implosão da URSS, na década de 90 - não é viável. Após a II Guerra Mundial existiu um sistema bipolar -  evidenciado na "guerra fria" e que tinha na " coexistência pacífica" a camuflagem geoestratégica dos mecanismos de concorrência e de acumulação de capital que determinaram todo esse período - que permitia uma negociação nos termos da economia mundo, transformando por breves momentos a bipolarização em multipolarização,  na esfera económica e social.

Para além dos dois blocos (Ocidente de raiz democrática-liberal e bloco socialista) existiam mais dois participantes, nem sempre presentes, mas cuja existência permitiu o equilíbrio durante os períodos críticos do sistema mundial da época (a atrás referida multipolarização económica e social): a China, que detinha uma independência sustentável (tanto nas suas opções internas como nas opções externas e que, com outro discurso, mantem) ; a Conferencia de Bandung de 1955 (que comemora o seu 60° aniversário) responsável pelo "não-alinhamento" que teve uma função essencial na multipolarização da época (e que foi de enorme importância estratégica para os movimentos emancipadores), embora responsável por inúmeras derrotas e pela situação económica e política actual das áreas periféricas, como sejam a recolonização do continente africano ou da nova aplicação da Doutrina Monroe para a América Latina. E se a ordem bipolar permitia breves momentos multipolares, a actual desordem unipolar obriga a momentos cada vez maiores do caos a-polar.

II - A situação actual é complexa para todos. Para Africa (situação trágica, na maioria dos países e cautelosa para as excepções), para a América Latina, para a Asia e Oceânia, para a Europa (particularmente preocupante a Sul), Eurásia e para os USA e Canadá. O cenário mundial está recheado de elementos trágicos ao nível das dinâmicas internas e economias nacionais, não melhorando ao nível das dinâmicas externas e da economia-mundo. Os momentos de optimismo gerados por processos como a integração dos mercados asiáticos, que avança a "todo o vapor" (utilizando a figuração do discurso maoista), não são suficientes para colmatar a tragedia: o fosso cada vez maior que separa a riqueza da pobreza. Os ricos cada vez mais ricos enquanto os pobres o melhor que conseguem é permanecerem na mesma, vendo os ricos a afastarem-se no horizonte longínquo. Por outro lado a tragédia contem um outro elemento relevante (consequência deste fosso abismal): o fenómeno oligárquico. De Washington a Pequim e de Sidney a Moscovo, do Cabo ao Cairo e de Dacar a Dar-es-Salam, de Luanda ao Maputo e de Bissau a Díli ou de Havana a Auckland, o mundo é governado por oligarquias. Umas desenvolvem-se nas democracias liberais do Ocidente, outras nas fotocópias do modelo Ocidental noutras latitudes e outras nos modelos diversificados de capitalismo de Estado que pululam por este mundo.

As oligarquias tornam a vida inviável. O desastre social gerado pela imposição desta desordem global, senil, que resume a democracia ao exercício do voto e ao multipartidarismo, ao marketing politico e empresarial e que transformam a cidadania em negócio rentável para uma minoria, enquanto o cidadão é espezinhado como se vivesse numa sociedade totalitária (e todas elas são cada vez mais totalitárias) atingiu o seu ponto de ruptura.

III - 
A senilidade que caracteriza os principais actores no palco mundial actual é digna de uma dantesca tragicomédia. Por sua vez a lógica do capitalismo não é a mais adequada para assegurar a sobrevivência a metade da Humanidade. A decadência das elites dominantes é evidente e é esse factor que torna perigosa a senilidade do capitalismo. A História das sociedades humanas está recheada de episódios trágicos, genocídios e holocaustos. Podemos observá-los nas civilizações sul e centro-americanas, na Asia, no Ocidente (os progroms, as caças-às-bruxas, e o holocausto nazi), na Eurásia e em Africa (o caso recente do Ruanda). Elites em processo de decadência conduzem a genocídios e situações atípicas de irracionalidade social. Os sinais são por demais evidentes: a ascensão do fascismo na Europa e no mundo islâmico, a destruturação neocolonial e o saque a que a agricultura africana é submetida, a alienação do dinheiro fácil e do fato e da gravata, trespassam as sociedades africanas.

Yala é um exemplo. Existem milhares de exemplos similares por todo o continente. Nem todos nas zonas rurais. Alguns surgem nos contextos urbanos, como os salários constantemente atrasados, o desconhecimento das nomas constitucionais e das Constituições, dos Direitos Humanos, apartheid social, disfunções dos serviços públicos e das instituições públicas.

Angola, por exemplo, tem muitas histórias trágicas. A maioria destas histórias trágicas (em simultâneo com os exemplos de heroísmo, coragem e abnegação. Sobre esse período épico aconselho a leitura dos textos de Martinho Júnior - em particular este ultimo excelente trabalho sobre o Kuito Kanavale - que com a sua prosa transparente e objectiva analisa este período épico e simultaneamente trágico da luta pela independência nacional e das dinâmicas internas e externas deste processo. Sobre a guerra de libertação nacional contra o colonial-fascismo português aconselho a excelente "ferramenta" que a Associação Tchiweka de Documentação publicou no mês passado: "1961. Memória de um ano decisivo") ocorreram na guerra de libertação nacional contra o colonialismo e na guerra a que o país foi sujeito para forjar a sua independência.

A conquista da Paz foi um dos episódios épicos da Historia da Nação Angolana. Permitiu o reforço de importantes conquistas da independência, a continuidade do processo democrático, o fortalecimento do Estado Democrático de Direito, a Constituição da Republica e a concretização de algumas importantes aspirações populares. Mas a Paz acabou, também ela, por gerar as suas tragédias.

Quais? As mais diversas e de variada ordem. A questão dos livros escolares, o problema do apartheid social no sistema de educação, a completa imbecilidade dos programas escolares e dos respectivos manuais, os problemas do ineficiente sistema de saúde (se é que existe um sistema de saúde), os atentados urbanísticos, a ineficiência do Estado e das instituições públicas, das empresas públicas e privadas, da banca pública e privada, a mão-de-obra "inqualificável" (claro que existem excepções e alguns sectores excepcionais, de mão-obra qualificada, mas è esse o problema: ser excepção e não a norma), indisciplinada, com baixo nível de consciência profissional, a política de empregos, a corrupção como cultura, enfim um rol infindável de ineficiência e de atentados ao mínimo bom senso. Inclusive uma Constituição cuja função é ser espezinhada a toda a hora e a todo o instante, por aqueles que juram-lhe fidelidade. São as instituições publicas com mais empregados que moscas e tantos são que, em algumas delas há um mês de salario que fica esquecido nos cofres da instituição e gastam mais dinheiro em lanches, óbitos e festas de pedido, baptizados e casamentos do que no seu objecto social.

São os problemas dos trabalhadores imigrantes que entram legais no país e depois ficam ilegais, porque a identidade patronal (publica ou privada) não tratou dos processos de renovação de visto. E depois como existe uma "salazarice" (restos do colonial-fascismo que deixou no país uma mão-cheia de bufos da policia politica colonia-fascista, ao qual se juntou, no processo de paz, a estirpe dos agentes internos do imperialismo e de outras camadas parasitas geradas durante a guerra) chamada sistema integrado de segurança, os desgraçados dos trabalhadores imigrantes ficam pendurados para levantarem o seu salário no banco, ou para terem um telefone ou o que quer que seja, porque a iniciativa privada ê obrigada ao exercício da bufaria. Ou seja: não há clientes, há suspeitos de serem estrangeiros. Mas o curioso é que estes imigrantes que trabalham em algumas prodigiosas instituições públicas até constam na Direcção Provincial de Quadros (DPQ), mesmo com os vistos caducados.

Há o drama dos imigrantes ilegais, que servem de bode expiatório para os erros políticos e para justificar a ineficácia das políticas económicas.

Na cultura o panorama não é melhor, sendo o Ministério da Cultura um mistério e tão misterioso  quanto um ninho de lacraus (consta pelas ruas que até a ministra - pessoa competente e reconhecidamente responsável - queixa-se dos bloqueios internos que o seu ministério sofre).

Também a agricultura é um mistério bem guardado num kafkiano ministério carregado de funcionários inoperantes que limitam-se ao passar do tempo. Os camponeses trabalham, as lavras produzem, as comunidades subsistem (embora vejam as suas terras invadidas, de quando em quando, por curiosos de vários tipos e níveis) o comércio rural vai funcionando e no mundo rural angolano tudo funciona nos entretantos. O "milagre" é mesmo este: trabalha-se, produz-se, vende-se. Depois logo se vê. O que não se vê é a reforma agrária, políticas sectoriais de desenvolvimento agropecuário e a massa informe dos funcionários do ministério...e também não se faz notar no mercado as grandes propriedades latifundiárias "adquiridas" por elementos do aparelho politico e militar. Será que aguardam por novos créditos, porque já gastaram, sem pagar, os créditos cedidos aos seus projectos de papel...

Se em Angola, um país da linha da frente enquanto tal, uma nação-baluarte da luta contra o imperialismo em Africa, a situação é complexa e comporta imensos factores neocoloniais que evidenciaram-se nos processos de alteração institucional (abandono da via socialista, multipartidarismo, Estado de Democrático de Direito, etc.) e dominaram os aparelhos políticos, ideológicos e militares, em países que sempre foram dominados por regimes neocoloniais a situação é socialmente catastrófica.

A coisa seria cómica, não fosse a tragédia que isso representa na vida das pessoas e não fosse o sinal evidente da decadência institucional que comportam  estas atitudes próprias de asnos e de irresponsáveis.

Esta lógica senil torna, pois, o sistema inviável e reverte a sociedade para o estágio da horda. E a esta lógica senil e destrutiva há que responder com a racionalidade e criar novos instrumentos de análise e novas ferramentas transformadoras. Construir projectos soberanos nacionais, democráticos e populares (e um projecto soberano é o que assenta na soberania popular e não nos ditames dos alfaiates de Washington, dos sapateiros da U.E. ou dos estilistas dos BRICS. E um projecto nacional não é um projecto xenófobo, racista, chauvinista ou tribalista e muito menos uma profecia efectuada pelas crenças religiosas instaladas no núcleo duro do Poder, camufladas por um Estado pretensamente laico). Projectos nacionais, democráticos e populares, que transformem a realidade actual num mundo mais justo e mais livre, que transformem as realidades nacionais e se reflitam na Economia-mundo, como um grito anti-periférico e insubmisso. Projectos nacionais, democráticos e populares (projectos soberanos e não fundos soberanos) que prossigam na senda e nos trilhos dos projectos de libertação nacional que conduziram África á independência e os povos africanos â esperança de uma nova vida, paulatinamente tornada alienação, subserviência e subjugação aos ditames neocoloniais.

IV - Ora, foi aqui, em Africa, no Norte do continente, na Tunísia, que reuniu-se o Fórum Social Mundial, em Março. Mais de 4 mil grupos, associações e movimentos sociais estiveram presentes. Desenvolvimento, reforma agraria, alternativas políticas, aprofundamento da democracia, direitos humanos, cidadania, participação, meio ambiente, urbanismo, soberania, foram apenas alguns dos temas discutidos.

Afinal África não é apenas a terra saqueada, o processo de recolonização, a caducidade, a corrupção e decadência das suas parasitárias e assimiladas oligarquias neocoloniais, ou o embuste afrocapitalista. Por muito que as oligarquias neocoloniais tentem esconder, a Nova África, a África Alternativa, a África-Futuro, está presente. Desde a luta de libertação nacional...

Bibliografia
http://www.grain.org
http://www.ciagkenya.org
http://www.democracynow.org
Kenyatta, J. Au pied du Mont Kenya Ed. Maspero, Paris, 1967 (2° edição)
Oginga, O. Not yet Uharu Ed. Heinemann, London, 1967
Afana, O. L'economie de l’Ouest-africain Ed.Maspero, 1966
Etudes congolaises, n°1, 1966
Démé, K. Les classes sociales dans le Senegal in La Pensée, n° 130, Dezembro,1966.
Amin, S. L'accumulation capitaliste à l'echelle mondiale Ed. Anthropos, Paris, 1970
Amin, S. L'Afrique de l'Ouest bloquée Ed. Minuit, Paris,1971
Cabral, A. L'arme de la théorie in Partisans, n°26-27, 03/1966

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