Alexandra
Campos - Público
Trabalhadoras
são chamadas a consultas de saúde ocupacional e propõem-lhes que esguichem
leite para poderem continuar a ter redução do horário. Desde que começou a
pedir provas, Hospital de S. João detectou que metade das licenças seriam
fraudulentas.
Duas
enfermeiras, uma do Hospital de Santo António e outra do Hospital do S. João,
no Porto, queixam-se de terem tido que comprovar que estão a amamentar
espremendo leite das mamas em frente a médicos de saúde ocupacional. Perplexas
e indignadas, reclamaram para várias entidades, que lhes deram razão, mas para
já nenhuma se dispôs a prestar-lhes algum tipo de apoio jurídico. O conselho
que lhes dão é, tão só, o de que, no futuro, se recusem a fazer tal prova.
Maria
dos Anjos Teixeira, 34 anos, há 12 a trabalhar no Hospital de Santo António, no
Porto, foi convocada em Fevereiro para comparecer numa consulta de saúde
ocupacional, depois de o seu filho ter completado um ano de idade. A história
que conta é, no mínimo, bizarra. No papel, o objectivo de tal consulta seria
apenas o de garantir a “protecção e vigilância da saúde e segurança” das
grávidas e lactantes. “Dizem-nos que é para avaliar os riscos a que estamos
expostas, por exemplo a radiações ou químicos. Mas eu trabalho nos cuidados
intensivos e o único risco que corro é o de contacto com objectos cortantes e
perfurantes”, explica.
A
médica de saúde ocupacional ter-lhe-á perguntado, de seguida, desde quando
estava a amamentar. “Fiquei estarrecida e em simultâneo preocupada, porque isto
demonstra perfeita ignorância sobre a amamentação em si. Respondi que
desde que o meu filho nasceu, claro!”. Depois disso, conta, a médica disse-lhe
que iam ver “se tinha leite”.
A
legislação portuguesa obriga as mulheres que estão a amamentar a entregar uma
declaração médica todos os meses depois de as crianças completarem um ano de
idade. Antes disso, têm dispensa de duas horas por dia (no máximo) para
amamentar ou fazer a aleitação (quando o leite é dado em biberão) dos seus filhos,
sem necessidade de apresentar qualquer documento.
O
que a lei não exige é que as lactantes “andem a provar por esguicho” que têm
leite, indigna-se Maria dos Anjos, que diz que ainda começou por
protestar, mas acabou por submeter-se à “dita prova”. “Pus a mama de fora e
espremi”, descreve. Porquê? “Para não acharem que o facto de reclamar significa
que não amamento”, justifica a enfermeira, que faz questão de deixar claro que
considera esta estratégia “absurda e ilegal”. “É bullying”, diz ainda.
Pressão
no trabalho
J., 32 anos, enfermeira a trabalhar no Hospital de S. João, pede para não ser identificada. Mas diz que também ela foi sujeita a uma “prova” semelhante, em Março último. Há cerca de um mês, conta, foi chamada pela saúde ocupacional do hospital. Aqui, o argumento para a convocatória foi o de que tinha de actualizar o seu boletim de vacinas. Mas, quando chegou à consulta, além da vacina do tétano, terá sido também confrontada com a necessidade de fazer a “prova de evidência de leite”.
“Congelei
com tamanha aberração”, afirma. A explicação que lhe foi avançada foi a de que
era necessário assegurar que estava a amamentar porque “infelizmente havia
muita gente a abusar” deste direito. Segundo o médico, conta, esta prática
seria um “protocolo do hospital” e, em caso de recusa, perderia de imediato o
horário de amamentação.
Envergonhada,
J. conta que perguntou se teria que fazer a prova em frente ao clínico — “nem
em frente ao meu marido espremo as mamas” — e também o que poderia acontecer
se, com a pressão, não conseguisse esguichar leite. “Ele disse-me para não me
preocupar porque tinham lá uma máquina. E pediu a uma enfermeira que o
substituísse enquanto eu espremia as mamas.”
A
amamentar havia “23 meses”, J. diz ter acabado por fazer a prova porque foi
“apanhada de surpresa”. “Mas depois senti-me completamente violada. Isto não é
ético, é humilhante.”
Defende
ainda que a pressão está a aumentar porque há muita gente a emigrar que não é
substituída e “a sobrecarga de trabalho é demasiado violenta”. “As mulheres
grávidas são pressionadas para reduzirem os tempos de licença de maternidade.
As lactantes são pressionadas para abdicarem do horário de amamentação. Falta
pessoal, dizem. E tem faltado tanto bom senso!”, enfatiza.
Recentemente, a Ordem dos Enfermeiros divulgou um inquérito que permitiu concluir que cerca de um terço destes profissionais (homens e mulheres) terão sido pressionados para não gozarem os seus direitos de parentalidade.
Fraudes
detectadas
Voltemos ao caso de Maria. Indignada com a primeira prova de evidência de leite, a enfermeira, que é conselheira de amamentação, ficou mais agastada quando lhe apresentaram uma convocatória para nova prova, a efectuar no prazo de três meses. “Isto é claramente perseguição. Não lhes chega perceber que efectivamente estou em situação regular como me exigem presenças trimestrais?”, pergunta. Sublinhando que compreende que é necessário cumprir a legislação, não se conforma, porém, com “o princípio subjacente que dita que investiguemos a este ponto”. “Não tarda teremos de trazer um dedo para comprovar o falecimento de algum familiar.”
No
Santo António, não há nada no papel que prove que fazem tal exigência às
mulheres. Mas existe uma circular datada de Novembro que pretende “garantir a
protecção e vigilância da saúde e segurança das trabalhadoras grávidas,
puérperas e lactantes” e definir “normas e procedimentos a serem observadas por
todas”.
Segundo
esta circular, a trabalhadora que amamenta o filho para além dos 12 meses de
idade deve informar o serviço de saúde ocupacional por escrito e comparecer a
um exame de saúde neste serviço. O exame é repetido de três em três meses e a
não comparência à consulta e a não apresentação de atestado médico poderá
implicar a suspensão da dispensa da amamentação.
“Não
sou jurista mas sei que não há lei que me obrigue a espremer as mamas, por isso
questiono: posso recusar-me a fazê-lo sem prejuízo do meu direito à licença?”,
perguntou Maria, em exposição enviada ao Sindicatos dos Enfermeiros e à Secção
Regional do Norte da Ordem dos Enfermeiros.
Contactado
pelo PÚBLICO, um responsável do Centro Hospitalar do Porto (a que pertence o
Hospital de Santo António e que inclui ainda a Maternidade Júlio Dinis) não
confirmou a exigência da prova de evidência de leite. Disse apenas que a
administração não recebeu qualquer queixa e que está sempre disponível para receber
os trabalhadores e ouvir os seus problemas. Acrescentou que, em caso de dúvida
em mulheres lactantes, se fazem testes de prolactina. “A enfermeira em causa
não fez queixa à instituição, o que demonstra por si só um procedimento
estranho”, comentou.
Já
o Centro Hospitalar S. João (a que pertence o hospital de S. João) admitiu que
criou no ano passado no serviço de saúde ocupacional “um procedimento que
atestasse a veracidade da amamentação, sempre que esta ultrapassasse dois anos
consecutivos”.
“O
método escolhido consiste na expressão mamilar, o uso de bomba extractora de
leite ou a amamentação da criança sob observação de uma enfermeira, em ambiente
recatado e respeitando a privacidade da lactante”, explica o centro hospitalar,
em resposta escrita.
Explica
ainda que análises sanguíneas, como a concentração de prolactina, não são
feitas por não serem “suficientemente sensíveis ou específicas para o efeito”.
Seja como for, o S. João garante que este procedimento “é facultativo, podendo
a profissional recusar-se a fazê-lo”.
Sublinhando
que a promoção da amamentação é uma das prioridades da OMS e da UNICEF, “que
recomendam o aleitamento materno exclusivo até aos seis meses de idade e a sua
manutenção juntamente com alimentos sólidos pelo menos até aos dois anos”, o S.
João reconhece que a legislação não estipula um limite de idade máximo para a
dispensa de trabalho para amamentação mas justifica este método alegando que
havia, até 2014, “licenças de amamentação com duração superior a cinco anos e
outros casos que pareciam configurar um abuso de benefício”. Aliás, desde o
início desta medida, em 2014, “cerca de metade das licenças de dispensa de
trabalho por amamentação superior a dois anos terminaram por não estar
comprovada a sua veracidade”.
“Os
fins não justificam os meios”, contrapõe J. Notando que não tem culpa de que
haja “atestados falsos” e “pediatras que os passem”, Maria dos Anjos lamenta
também que “duvidem de tudo e de todos”. Frisa ainda que as duas horas diárias
a que tem direito para a amamentação são usadas não só para dar leite ao filho
mas também para estar com ele.
Maria
dos Anjos apresentou igualmente queixa à Ordem dos Médicos, porque pretende que
esta questão seja “trabalhada no sentido do bem colectivo e da protecção dos
direitos e da integridade moral do trabalhador”.
“Sem
testemunhas, não é fácil”
Em reacção à denúncia de Maria, o presidente do Sindicato dos Enfermeiros, José Azevedo, decidiu publicá-la na íntegra num blogue seguida de uma série de comentários seus, a que chamou um “grito de revolta”. “Se isto se passasse numa fábrica de vidro da Marinha Grande ou na fábrica de fazer sanitas e urinóis de Valadares, ainda se percebia (…) Mas num hospital!”, enfatiza.
Ao
PÚBLICO, José Azevedo garantiu que enviou a exposição para o Ministério da
Saúde e para a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde.
Menos
emotiva, a Secção Regional do Norte da Ordem dos Enfermeiros (OE) pediu um
parecer ao seu assessor jurídico. Acabou por concluir que, “ao exigir mais do
que a lei, parece haver claro excesso do Centro Hospitalar do Porto, sendo, por
isso, legítimo” que a mulher “se recuse a fazer qualquer análise ou, pior
ainda, demonstração da existência de leite por ‘evidência’”. Sublinha também
que é “absolutamente ilegal” que a enfermeira seja prejudicada se recusar.
Contactado
pelo PÚBLICO, o presidente da Secção Regional do Norte da OE, Jorge Cadete, diz
que lhe custa a crer que se estejam a fazer estas exigências. Que é óbvio que a
lei permite que a entidade empregadora peça prova da validade dos atestados
médicos. Mas que existem outros métodos, como o do controlo através de análises
(da prolactina).
Quanto
à prova de evidência de amamentação denunciada, Cadete diz que as enfermeiras
têm toda a legitimidade para dizer que não a querem fazer. Agora, frisa, elas
“não têm forma de provar que lhes pediram tal coisa”. “Sem testemunhas, não é
fácil confirmar isto”, lamenta, para justificar que a OE não tenha avançado com
medidas, face às queixas recebidas. “Temos de ter alguma prudência.”
Já
a Ordem dos Médicos enviou um parecer a Maria dos Anjos onde diz que a mera
obrigatoriedade de sujeição a uma consulta no serviço de saúde ocupacional
representa “uma ofensa grave aos direitos das trabalhadoras lactantes que o
Código do Trabalho visou proteger”.
O
empregador, sustenta, não pode exigir ao trabalhador a realização ou
apresentação de testes ou exames médicos para comprovação das condições físicas
ou psíquicas, salvo quando estes tenham por finalidade a sua protecção e
segurança — ou a de terceiros.
A
Ordem dos Médicos considera mesmo que a “ilegalidade” desta medida contende com
os direitos que são protegidos através da Comissão para a Igualdade no Trabalho
e Emprego e, por isso, sugere às “médicas interessadas” que apresentem queixa a
esta entidade.
Antes
de conhecer o parecer da Ordem dos Médicos, já J. tinha decidido queixar-se a
esta comissão. Mas, por enquanto, ainda não tem resposta escrita.” Só me
avisaram, pelo telefone, que era muito difícil defender-me neste caso”,
adianta. “Toda a gente nos desmotiva. Dizem todos que é ilegal, mas não houve
ainda ninguém que nos defendesse”, lamenta.
O que diz a lei?
A
dispensa para amamentação é um direito previsto no Código de Trabalho. O artigo
47.º prevê que a mãe que amamenta o filho tem direito a dispensa de trabalho
para o efeito durante o tempo que durar a amamentação. No primeiros 12 meses,
mesmo que não haja amamentação, qualquer um dos pais pode usufruir de dispensa
de trabalho para aleitação até o filho perfazer um ano.
A dispensa diária é gozada em dois períodos distintos com a duração máxima de uma hora cada, salvo se outro regime for acordado com o empregador. Está previsto que constitui contra-ordenação grave a violação do disposto neste artigo.
A partir dos 12 meses de vida do bebé, as mães que amamentam têm que entregar uma declaração mensal à entidade patronal, devidamente preenchida pelo seu médico assistente, onde este atesta que a mãe se encontra a amamentar. O documento vai assinado e carimbado.
Quanto ao procedimento a adoptar para usufruir da dispensa para amamentação, o
artigo 48.º do Código do Trabalho determina que a trabalhadora comunica ao empregador,
com a antecedência de 10 dias relativamente ao início da dispensa, que amamenta
o filho, devendo apresentar atestado médico se a dispensa se prolongar para
além do primeiro ano de vida do filho.
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