quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Angola. “SOU CONTRA A POLÍTICA DOS INTERESSES” – Ana Gomes em entrevista




Durante a visita a Luanda, Ana Gomes lançou fortes críticas ao MPLA mas também a alguns dos seus congéneres europeus.

Miguel Gomes (texto) e João Ana (fotos) - Rede Angola

A eurodeputada Ana Gomes (representante eleita pelos cidadãos portugueses para os representar no Parlamento Europeu, que congrega representantes dos 24 países-membros) esteve a visitar o país durante a última semana. O objectivo principal, como conta a militante do Partido Socialista português ao Rede Angola, era avaliar a situação em termos de direitos humanos e sentir o pulsar do país em ano de contenção orçamental.

A estadia ficou envolta em polémica. Alguns membros do governo, como por exemplo Ângelo Tavares (ministro do Interior), chegaram mesmo a falar em ingerência da eurodeputada nos assuntos internos de um país soberano. Analistas políticos atacaram em rede nacional (rádio e televisão) a visita da diplomata portuguesa.

A prisão, há mais de um mês, de 15 activistas, em Luanda, aqueceu os ânimos. Já nas últimas horas em Luanda, Ana Gomes aceitou sentar-se com o Rede Angola e lançou fortes críticas ao MPLA mas também a alguns dos seus congéneres europeus.

Gostaria que nos explicasse as razões que a trouxeram, durante uma semana, a Luanda.

Ao longo da minha vida nunca vivi em Angola. Mas tenho um marido que viveu, como diplomata (duas vezes), e que é muito amigo de Angola. Tenho muitos amigos angolanos que já vêm do tempo da luta contra a ditadura colonial-fascista. A minha militância vem dos comités de luta anti-colonial antes do 25 de Abril. Sempre tive um particular empenho no processo de construção das democracias dos países independentes que saíram do 25 de Abril. Por isso, Angola foi sempre um país central, até pela ligação pessoal.

Em que altura o seu marido viveu em Angola?

O meu marido foi Cônsul-Geral de Portugal, em Luanda, entre 1986 e 1989 e depois foi membro da Comissão Conjunta Político-Militar no processo de paz (1991-1992). Quer por via das ligações pessoais, como por via da militância política, e enquanto responsável do Partido Socialista (PS) português pelas Relações Internacionais, escolhi Angola como primeiro país a visitar. Era uma oportunidade extraordinária porque começava a paz e abriam-se caminhos de construção democrática extraordinários. Portanto, como responsável do PS propus que apoiássemos a entrada do MPLA na Internacional Socialista (facto que veio a acontecer em Novembro de 2003). Apoiar Angola naquela fase foi uma escolha política pessoal. Depois, já como eurodeputada, vim ao país como observadora nas eleições de 2008. Vim também a uma assembleia parlamentar conjunta África, Caraíbas e Pacífico (ACP)-UE e acompanhei o processo angolano. No Parlamento Europeu é natural que outros países se voltem para nós porque temos muita informação sobre Angola. Há dois anos fiz um relatório sobre Corrupção e Direitos Humanos e o caso de Angola foi um dos casos que deu forma ao relatório (não foi o único exemplo, naturalmente). Dada a importância que Angola vem assumindo, em Portugal, por via do controlo económico, naturalmente que me fui sempre interessando por Angola. Há muitos anos que não vinha cá, desde 2009, e pensei que agora era a oportunidade de voltar.

“Quis conhecer vários aspectos da realidade angolana e falar com os meus amigos, de todos os quadrantes, sobretudo do MPLA.”

Qual foi a organização que a convidou e quais foram os motivos que a levaram a marcar a estadia para os últimos dias de Julho?

Recebi um convite da Associação Justiça, Paz e Democracia (AJPD). Considerei e fiquei a ver quando poderia vir. Não se vem a Angola por três dias. Vim por uma semana e estou a utilizar as minhas férias para esta visita. Entretanto, aconteceram outros factos que me levaram a pensar que era importante vir o quanto antes: falo das informações que fui tendo sobre o caso Kalupeteka e da própria prisão dos “revús” – que aconteceu já depois do convite me ter sido formulado.

Ou seja, temos aqui um conjunto de pretextos que validam a sua visita.

Sei que houve um governo que me acusou de ter vindo para a manifestação [de quarta-feira, 29, em Luanda].

E o que tem a dizer sobre essa acusação?

Soube que estava marcada uma manifestação quanto me sentei no avião a caminho de Angola, ao ler a imprensa portuguesa. Nunca faria esse favor aos sectores que gostariam de “deslegitimar” a manifestação dizendo que era uma orquestração externa. Mas, por acaso, passei pelo Largo do 1º. de Maio quando vinha do encontro com o ministro da Administração do Território, Bornito de Sousa, e vi a contra-manifestação organizada pelo MPLA. Fotografei e tudo. Fiquei furiosa… Furiosa não é o termo: fiquei incomodada. Porque é uma manifestação de arrogância, é uma manifestação de um comportamento flagrantemente anti-democrático (ao ocupar o espaço requisitado por um grupo de cidadãos para se manifestar) e de aceno com o papão do regresso à guerra, como vi os dirigentes do MPLA fazer. E que me deixou realmente muito incomodada.

Teve oportunidade de falar com o ministro da Administração do Território, Bornito de Sousa, sobre estes assuntos?

Sim.

A conversa será naturalmente reservada mas que pormenores nos pode contar?

Bornito de Sousa e Rui Mangueira (ministro da Justiça e Direitos Humanos) são personalidades que conheço e de quem sou amiga. Convivi bastante com Bornito de Sousa no quadro da assembleia parlamentar ACP-UE. O ministro Rui Mangueira foi meu colega, enquanto diplomata, em Genebra (Suíça) e em Londres (Inglaterra). Trabalhámos muito. Foram conversas úteis, francas, em que debatemos todas as questões que foram abordadas. Houve outros encontros que não se concretizaram (com os titulares das Relações Exteriores e do Interior) porque os ministros estão fora do país. Eu sou muito franca naquilo que discuto com os ministros e os meus argumentos não são muito diferentes daqueles que utilizo cá fora. Oiço as explicações e faço uma leitura sobre o que me é dito, naturalmente. O meu objectivo nesta visita é, além dos contactos com o governo, falar também com membros da sociedade civil e activistas de direitos humanos, estudiosos da situação económica e outras organizações envolvidas em projectos patrocinados pela UE – ontem à noite [a conversa foi gravada dia 31 de Julho, sexta-feira] fui fazer uma ronda de apoio às crianças de rua e hoje visitei o centro do Padre Arnaldo Janssen. Quis conhecer vários aspectos da realidade angolana e falar com os meus amigos, de todos os quadrantes, sobretudo do MPLA. Estive também com Isaías Samakuva (UNITA) e Justino Pinto de Andrade e Filomeno Vieira Lopes (dirigentes do Bloco Democrático). Fiz o que acho que é possível fazer numa semana.

Chegou a visitar algumas zonas fora da capital?

Infelizmente, não deu para sair de Luanda mas a estadia deu-me uma boa medida da percepção das pessoas, em Angola, em relação à actual situação, quer no plano dos direitos humanos, quer no plano económico. Tudo isto me interessa. Porque cada vez mais, ao trabalhar na área dos direitos humanos, entendo que a forma adequada de prosseguir este combate tem de estar interligada com as questões económicas e com o combate à corrupção e à criminalidade económica. No Parlamento Europeu o trabalho é feito na Comissão de Liberdades Públicas, Justiça e Assuntos Internos. Estou também na comissão de inquérito sobre a fiscalidade, que foi levantada pelo escândalo “LuxLeaks”e fui co-redactora da nova directiva europeia contra o branqueamento de capitais. Todos estes aspectos são muito importantes para a acção que eu entendo desenvolver no combate à corrupção e contra o branqueamento de capitais a nível europeu.  Em tudo isto há óbvias implicações com Angola, dado o relevo que o país tem em Portugal.

“Pelas conversas que tive com os membros do governo posso concluir que há um grande desfasamento entre o discurso oficial, até nas justificações que são dadas sobre os diversos casos, e a realidade.”

Teve a oportunidade de lidar e conversar com uma panóplia alargada de angolanos – partidos políticos, membros da sociedade civil, ministros, familiares dos 15 jovens detidos, jornalistas. Qual é o sentimento que leva?

É um sentimento de maior preocupação do que aquele com que cheguei. Porque agora tenho mais detalhes da deterioração no que diz respeito às liberdades e garantias democráticas. Também tenho uma melhor noção do impacto da crise económica na classe média angolana, que tem sido duramente afectada. E isso não pode deixar de se repercutir em termos democráticos. Sobretudo nas repercussões que tem no bloqueio do sistema político angolano. Penso que a situação está politicamente bloqueada sob vários aspectos. Vários angolanos, de vários quadrantes, incluindo do próprio MPLA, deram-me a entender isso.

Quais são os principais bloqueios, na sua opinião?

Pelas conversas que tive com os membros do governo posso concluir que há um grande desfasamento entre o discurso oficial, até nas justificações que são dadas sobre os diversos casos, e a realidade. Por exemplo, o discurso oficial é que os “revús” foram presos em actos preparatórios de uma subversão e de um golpe de estado. Não há ninguém, além dos governantes, que acredite que estes jovens estão envolvidos num golpe de estado. Pelo contrário, muitas pessoas dizem-me que os “revús” primam pela desorganização. Este desfasamento entre a versão oficial, a realidade e a percepção dos cidadãos é muito preocupante. Ouvir governantes a defender (já aconteceu em público e também já aconteceu comigo pessoalmente) a apropriação ilícita de capital devido a direitos divinos relacionados com o seu papel na luta armada parece-me revelar um grande alheamento da realidade. Porque, mais do que nunca, oiço vozes a pedir contas à governação angolana.

Confidenciou-nos que um dos ministros fez questão de lhe dizer que as redes sociais tinham sido palco de uma onda de grandes especulações sobre a visita do Presidente da República à China e respectivos compromissos. A especulação não será consequência da falta de informação concreta e fiável?

Essas especulações só existem porque o poder político não presta informações. Nem sequer o faz junto da Assembleia Nacional e muito menos da administração pública. Este desfasamento total entre o discurso oficial e a percepção dos cidadãos comuns, a diferentes níveis, leva-me a pensar que o sistema está bloqueado. O facto das pessoas não saberem se o Presidente da República se vai recandidatar, ou não, é outro exemplo da falta de sintonia dentro do sistema político.

Em primeira instância, pelo menos, essa será uma decisão interna do MPLA. Questionou os ministros e membros do partido com quem falou sobre esse tema?

Não, penso que não seria fácil abordar este assunto abertamente, sobretudo com a presença da equipa ministerial que os responsáveis tinham ao seu lado. Mas abordei o tema com outras pessoas. Abordar esse assunto abertamente e sem tabús, seja qual for o sector da sociedade, tem sido um grande problema. Senti que dentro do próprio MPLA muita gente considera que a situação está bloqueada. Até porque boa parte das vozes com autoridade dentro do partido está manietada. São, de alguma maneira, cúmplices do estado de coisas.

E quem não está acomodado também não tem peso institucional para liderar um debate deste género dentro do MPLA.

Exactamente. Ainda por cima o espaço para a oposição, por muito relevantes que sejam as suas chamadas de atenção, também está completamente cerceado. Vejo muita apreensão exactamente por este bloqueio. Incluindo a questão da sucessão de José Eduardo dos Santos – a lei da vida imporá essa sucessão a qualquer momento. Vejo as pessoas muito preocupadas sobre como se fará a transição.

“O fim da guerra e, por outro lado, o espaço de desenvolvimento pessoal e empresarial que a paz permite mostra a resiliência, a capacidade e o trabalho da sociedade angolana.”

Também é um facto que a sociedade angolana está a viver a passagem de uma sociedade marcada pela guerra e pela destruição social e económica para uma outra fase do país. Há uma série de dinâmicas sociais que nos levam a esta conclusão. Os jovens, sobretudo, começam a exigir e a confrontar a governação. 

Penso que houve uma euforia no tempo em que o preço do petróleo esteve elevado. Os recursos do Estado, apesar de serem grosseiramente apropriados por uns poucos, ao mesmo tempo iam deslizando para um amplo sector da classe média. E havia toda uma promessa de melhorias sociais. Acho é que, hoje, a crise económica bateu forte e a classe média é a mais fustigada, em particular pela crise de divisas numa sociedade que vive completamente da importação. É claro que todo o processo de diversificação e qualificação dos quadros angolanos nunca seria fácil. E também não poderia ser feito de um dia para o outro por muita força de vontade e estratégia política nesse sentido. O problema é que as pessoas dizem-me que se essa estratégia existiu nunca passou do papel.

Fizeram-se algumas coisas: há uma nova rede de estradas, novos aeroportos, muito mais alunos a frequentar o sistema de ensino, novas universidades.

Sim, mas toda a gente me diz que essas infra-estruturas têm problemas sérios de manutenção. Todos estes prédios faustosos que se vêem em Luanda estão vazios. E dizem-me que se criou uma bolha imobiliária e que o investimento principal na qualificação das pessoas não foi devidamente acautelado.

Também há muitas cidades, sobretudo no interior e em províncias menos habitadas, que estão bastante diferentes daquilo que eram há dez anos.

Sem dúvida. O fim da guerra e, por outro lado, o espaço de desenvolvimento pessoal e empresarial que a paz permite mostra a resiliência, a capacidade e o trabalho da sociedade angolana.

“Há aqui tremendos problemas de governação económica que estão a ser questionados pela classe média angolana.”

Já falámos das dinâmicas e das novas gerações que clamam por mudança. Isto choca com um governo do MPLA que, quer pela prática enraizada ao longo de décadas no poder, quer pela longa liderança, representa uma outra época? 

Por isso mesmo é que lhe digo que se isto continuasse em período de “vacas gordas” se calhar haveria menos incentivos ao questionamento. Os revús, que, agora são o assomo da sociedade pela falta de liberdade e contra uma sistema totalitário, ficariam confinados. Mas hoje os “revús”, pelo que percebo, representam muito mais para a sociedade devido aos problemas recentes – porque vêm a público dar a cara e mobilizar as pessoas para contestar o poder. Ainda não de forma organizada mas as pessoas já não têm medo de falar. E têm falado comigo.

E o que lhe têm dito?

Que no período de “vacas gordas” os rendimentos do petróleo foram enormes. Onde estão esses valores? Ninguém presta contas. Enquanto isto há uns nababos a viver na opulência e na ostentação. E há pessoas a passar fome na periferia de Luanda. E há centros, como o do Padre Arnaldo Janssen, que têm financiamento da UE mas não têm financiamento do Ministério da Assistência e Reinserção Social (MINARS), que no entanto manda para lá crianças. Há aqui tremendos problemas de governação económica que estão a ser questionados pela classe média angolana. É preocupante ver o governo com um discurso completamente desfasado da realidade, com teses que ninguém compra na opinião pública, de quem as pessoas se riem e escarnecem. O governo está inseguro e tem cometido erros. A prisão dos revús só pode ser um tremendo erro. Se houve uma estratégia da inteligência ou da segurança para prender os revús quem a delineou é muito tosco. Porque, obviamente, é um tremendo erro. Só transforma os revús em heróis de um sentimento popular muito forte e que cada vez mais exige prestação de contas.

“Há os vendidos aos interesses económicos, que vão a ditaduras dizer que elas são democráticas só para fazerem contratos de petróleo e outros negócios.”

Neste cenário, neste contexto que acabamos de analisar, qual é o papel da UE em Angola?

É muito limitado. Por um lado porque a UE, nos últimos dez anos, teve boa parte da sua intervenção em Angola liderada pelo ex-presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, que era o principal apoiante e desculpador do regime angolano na Europa. Basta ver que, quando veio a Angola, respaldou o regime dizendo que não era preciso fazer uma missão europeia de observação eleitoral (para as eleições de 2012) porque Angola já era uma democracia madura. Obviamente que era um insulto à inteligência das pessoas.

Mas não é só Durão Barroso. François Hollande, presidente francês, que não é propriamente da mesma família política de Durão Barroso (que é social-democrata enquanto Hollande é socialista) veio recentemente a Luanda e aceitou não responder a perguntas dos jornalistas e não fazer declarações sobre direitos humanos.

O senhor Durão Barroso é representativo de uma intervenção europeia que não toca apenas em Angola. Veja-se a crise das migrações. É um exemplo da falta de apego aos princípios europeus. É um exemplo da política sem princípios, que põe os interesses económicos e os negócios à frente de tudo o resto. E que se esquece das lições da História. É uma deriva que está a ser perigosa, não apenas para a credibilidade da UE aos olhos de cidadãos como os angolanos, mas aos olhos dos próprios cidadãos europeus. São estas pessoas que estão a comprometer o processo europeu, como a crise na Grécia tem demonstrado.

Angola vive basicamente do petróleo. Quem faz a extracção e a comercialização de crude (Angola apenas tem uma refinaria, em Luanda, ainda do tempo colonial) é a Sonangol. Mas sempre em parceria com grandes empresas americanas, francesas, italianas, portuguesas, chinesas. São as empresas ocidentais, na sua maioria, que operam os blocos petrolíferos angolanos. Tudo depende deles. Há muitos angolanos que se perguntam: afinal o que é a UE?

Assim como há gente corajosa e persistente em Angola, que não deixa o MPLA desvirtuar os direitos fundamentais consagrados na Constituição, também na UE há todo o tipo de gente. Há os vendidos aos interesses económicos, que vão a ditaduras dizer que elas são democráticas só para fazerem contratos de petróleo e outros negócios. E há aqueles que se batem pelos princípios, pelos valores e que utilizam todos os mecanismos para de facto fazerem valer esses princípios. Não só na UE como fora dela. Por exemplo, não é por acaso que nos últimos anos tenho vindo a trabalhar cada vez mais na área da segurança interna e externa e na área do combate ao terrorismo, branqueamento de capitais e ao crime económico. Garanto-lhe que por essa via vamos sanear o que é preciso ser saneado nos esquemas de branqueamento de capitais a que o sistema financeiro europeu se prestou. É por essa via que pretendemos influenciar o que se passa noutros países que se relacionam com a Europa, como por exemplo Angola. Não é por acaso que vocês chamam a Portugal “a lavandaria”. Ou não chamam?


Hoje em dia, a ideia que me fica (mesmo sendo uma consideração pessoal) é que o regime angolano é bastante querido junto das principais praças do poder internacional. Temos alguns exemplos: a Espanha (independentemente do partido no governo) é um aliado tradicional do MPLA desde os primeiros dias de independência, a Itália também (a ENI é um dos maiores investidores no sector petrolífero), Angola é dos principais, se não o principal, fornecedor africano de petróleo aos EUA e acabou de ser eleito membro não-permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas. A eleição aconteceu e não ouvimos uma única crítica negativa internacional, de qualquer governo, sobre o facto. Mas se recuássemos, por exemplo, 20 anos, os ataques internacionais teriam surgido de diversas origens. Estando o governo alinhado com o grande poder internacional, como está actualmente, os direitos humanos passam logo para a última das preocupações externas. Concorda?

Acho que isso está relacionado com a degeneração do poder na Europa. E tem repercussões. Há uma interligação. Mas, na Europa, temos cada vez mais posturas deste tipo à conta das teses neo-liberais, que têm dominado governos compostos por gente sem sentido de Estado. Fazem políticas de curto prazo para serem eleitos nas próximas eleições e estão, muitas vezes, ao serviço de interesses económicos. E não ao serviço do interesse público em geral. É contra isso que eu combato, em todo o lado. É por isso que faço as denúncias na Europa e é por isso que me empenho contra o branqueamento de capitais e contra a criminalidade económica. Faço-o por perceber as implicações na Europa e num país como Portugal. Não o faço apenas sobre Angola. Também queremos combater outros esquemas de lavagem de dinheiro que sejam altamente predadores de recursos, de países e de sociedades como a angolana. Eu não sou contra os negócios e o empreendedorismo – desde que feitos de forma leal e no total respeito pelas leis. E não na base da apropriação ilícita e do branqueamento de capitais. Há um saneamento a fazer em Portugal, como aliás o caso BESA e os restantes casos que ocorreram no sistema financeiro português (BPN, Banif, entre outros) demonstram.

Mas a UE continua a ter uma relação muito boa, de “portas abertas”, de protecção, com a Suíça (só para citar um exemplo concreto). A Suíça tem sido um país claramente conivente com o crime económico e com o branqueamento de capitais.

Já não é tanto como era e estamos a trabalhar no sentido de controlar isso.

A Suíça não tem um único comentário negativo sobre direitos humanos. É largamente considerado como um grande país.

Não conheço concretamente essa realidade. Mas posso dizer-lhe que, boa parte dos nossos trabalhos, vão no sentido de apertar a legislação e os mecanismos de controlo contra o branqueamento de capitais. E vão incidir fortemente sobre a Suíça. Mas há outros países da UE que funcionam como destino de fundos ilícitos, a começar por Portugal ou a Holanda. Há uma concorrência, uma selva fiscal, que favorece estes esquemas. Estamos a mobilizar-nos contra isto. Como lhe digo há um combate terrível entre os que querem fazer negócios de forma sã, com respeito pela concorrência leal e pelo cumprimento das leis e aqueles que vivem dos buracos escuros da criminalidade e da legalidade.

É diplomata de carreira. Actualmente, a teoria académica e mesmo o lugar comum na análise política, diz-nos que os países não têm relações de proximidade ou amizade mas relações assentes em supostos “interesses”. O conceito abre espaço para questionar a doutrina de valores e as relações inter-pessoais fraternas. Qual é a sua opinião sobre a “diplomacia dos interesses”?

Repugna-me. Sobre a academia não tenho opinião porque já sou de outro tempo. Sou de um tempo em que os valores e o sentido ético eram muito fortes. É por isso que faço dos direitos humanos uma orientação de vida. E uma orientação de vida política. Como diplomata pude fazer isso. Tive a sorte de ter estado directamente envolvida no apoio português à independência de Timor Leste. Foi representativo de uma política externa de princípios e que valorizou a ética e os direitos humanos. Timor Leste deu aos portugueses um capital de credibilidade. Mas estivemos sempre a combater com os interesses presentes na Indonésia. Mesmo dentro de Portugal havia vozes que defendiam uma certa neutralidade em relação à Indonésia porque é uma potência muito forte. E que o importante era não chatear a Indonésia e fazer negócios com eles. Havia portugueses com esta perspectiva. Esse combate agravou-se nos últimos anos graças às teses neo-liberais que imperam no sistema económico. E que nos trouxeram a crise económica global. Não sou apenas eu que o digo: o Papa tem denunciado o sistema económico voraz. Onde os princípios da dignidade humana estão esquecidos e os interesses predadores determinam tudo. Sou contra esse tipo de política. Sou contra a política dos interesses.

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