Durante
a visita a Luanda, Ana Gomes lançou fortes críticas ao MPLA mas também a alguns
dos seus congéneres europeus.
Miguel
Gomes (texto) e João Ana (fotos) - Rede Angola
A
eurodeputada Ana Gomes (representante eleita pelos cidadãos portugueses para os
representar no Parlamento Europeu, que congrega representantes dos 24
países-membros) esteve a visitar o país durante a última semana. O
objectivo principal, como conta a militante do Partido
Socialista português ao Rede Angola, era avaliar a situação em termos
de direitos humanos e sentir o pulsar do país em ano de contenção
orçamental.
A
estadia ficou envolta em
polémica. Alguns membros do governo, como por exemplo
Ângelo Tavares (ministro do Interior), chegaram mesmo a falar em
ingerência da eurodeputada nos assuntos internos de um país soberano.
Analistas políticos atacaram em rede nacional (rádio e televisão) a visita
da diplomata portuguesa.
A
prisão, há mais de um mês, de 15 activistas, em Luanda, aqueceu os ânimos. Já
nas últimas horas em Luanda, Ana Gomes aceitou sentar-se com o Rede
Angola e lançou fortes críticas ao MPLA mas também a alguns dos seus
congéneres europeus.
Gostaria
que nos explicasse as razões que a trouxeram, durante uma semana, a Luanda.
Ao
longo da minha vida nunca vivi em Angola. Mas tenho um marido que viveu, como
diplomata (duas vezes), e que é muito amigo de Angola. Tenho muitos amigos
angolanos que já vêm do tempo da luta contra a ditadura colonial-fascista.
A minha militância vem dos comités de luta anti-colonial antes do 25 de Abril.
Sempre tive um particular empenho no processo de construção das democracias
dos países independentes que saíram do 25 de Abril. Por isso, Angola foi sempre
um país central, até pela ligação pessoal.
Em
que altura o seu marido viveu em Angola?
O
meu marido foi Cônsul-Geral de Portugal, em Luanda, entre 1986 e 1989 e depois
foi membro da Comissão Conjunta Político-Militar no processo de paz
(1991-1992). Quer por via das ligações pessoais, como por via da
militância política, e enquanto responsável do Partido Socialista
(PS) português pelas Relações Internacionais, escolhi Angola como primeiro
país a visitar. Era uma oportunidade extraordinária porque começava a paz
e abriam-se caminhos de construção democrática extraordinários. Portanto,
como responsável do PS propus que apoiássemos a entrada do MPLA na
Internacional Socialista (facto que veio a acontecer em Novembro de 2003).
Apoiar Angola naquela fase foi uma escolha política pessoal. Depois, já
como eurodeputada, vim ao país como observadora nas eleições de 2008. Vim
também a uma assembleia parlamentar conjunta África, Caraíbas e Pacífico
(ACP)-UE e acompanhei o processo angolano. No Parlamento Europeu é natural
que outros países se voltem para nós porque temos muita informação sobre Angola.
Há dois anos fiz um relatório sobre Corrupção e Direitos Humanos e o caso
de Angola foi um dos casos que deu forma ao relatório (não foi o único
exemplo, naturalmente). Dada a importância que Angola vem assumindo, em
Portugal, por via do controlo económico, naturalmente que me fui
sempre interessando por Angola. Há muitos anos que não vinha cá, desde
2009, e pensei que agora era a oportunidade de voltar.
“Quis
conhecer vários aspectos da realidade angolana e falar com os meus amigos, de
todos os quadrantes, sobretudo do MPLA.”
Qual
foi a organização que a convidou e quais foram os motivos que a levaram a
marcar a estadia para os últimos dias de Julho?
Recebi
um convite da Associação Justiça, Paz e Democracia (AJPD). Considerei e fiquei
a ver quando poderia vir. Não se vem a Angola por três dias. Vim por uma
semana e estou a utilizar as minhas férias para esta visita. Entretanto,
aconteceram outros factos que me levaram a pensar que era importante vir o
quanto antes: falo das informações que fui tendo sobre o caso Kalupeteka e
da própria prisão dos “revús” – que aconteceu já depois do convite me ter
sido formulado.
Ou
seja, temos aqui um conjunto de pretextos que validam a sua visita.
Sei
que houve um governo que me acusou de ter vindo para a manifestação [de
quarta-feira, 29, em Luanda].
E
o que tem a dizer sobre essa acusação?
Soube
que estava marcada uma manifestação quanto me sentei no avião a caminho de
Angola, ao ler a imprensa portuguesa. Nunca faria esse favor aos sectores
que gostariam de “deslegitimar” a manifestação dizendo que era uma
orquestração externa. Mas, por acaso, passei pelo Largo do 1º. de Maio
quando vinha do encontro com o ministro da Administração do Território, Bornito
de Sousa, e vi a contra-manifestação organizada pelo MPLA. Fotografei e
tudo. Fiquei furiosa… Furiosa não é o termo: fiquei incomodada. Porque é
uma manifestação de arrogância, é uma manifestação de um comportamento
flagrantemente anti-democrático (ao ocupar o espaço requisitado por um grupo
de cidadãos para se manifestar) e de aceno com o papão do regresso à guerra,
como vi os dirigentes do MPLA fazer. E que me deixou realmente muito
incomodada.
Teve
oportunidade de falar com o ministro da Administração do Território, Bornito de
Sousa, sobre estes assuntos?
Sim.
A
conversa será naturalmente reservada mas que pormenores nos pode contar?
Bornito
de Sousa e Rui Mangueira (ministro da Justiça e Direitos Humanos) são
personalidades que conheço e de quem sou amiga. Convivi bastante com
Bornito de Sousa no quadro da assembleia parlamentar ACP-UE. O ministro
Rui Mangueira foi meu colega, enquanto diplomata, em Genebra (Suíça) e em
Londres (Inglaterra). Trabalhámos muito. Foram conversas úteis, francas, em
que debatemos todas as questões que foram abordadas. Houve outros
encontros que não se concretizaram (com os titulares das Relações
Exteriores e do Interior) porque os ministros estão fora do país. Eu sou
muito franca naquilo que discuto com os ministros e os meus argumentos
não são muito diferentes daqueles que utilizo cá fora. Oiço as explicações
e faço uma leitura sobre o que me é dito, naturalmente. O meu objectivo
nesta visita é, além dos contactos com o governo, falar também com membros
da sociedade civil e activistas de direitos humanos, estudiosos
da situação económica e outras organizações envolvidas em projectos
patrocinados pela UE – ontem à noite [a conversa foi gravada dia 31 de
Julho, sexta-feira] fui fazer uma ronda de apoio às crianças de rua e hoje
visitei o centro do Padre Arnaldo Janssen. Quis conhecer vários aspectos da
realidade angolana e falar com os meus amigos, de todos os quadrantes,
sobretudo do MPLA. Estive também com Isaías Samakuva (UNITA) e Justino
Pinto de Andrade e Filomeno Vieira Lopes (dirigentes do Bloco
Democrático). Fiz o que acho que é possível fazer numa semana.
Chegou
a visitar algumas zonas fora da capital?
Infelizmente,
não deu para sair de Luanda mas a estadia deu-me uma boa medida da percepção
das pessoas, em Angola, em relação à actual situação, quer no plano dos
direitos humanos, quer no plano económico. Tudo isto me interessa. Porque
cada vez mais, ao trabalhar na área dos direitos humanos, entendo que a
forma adequada de prosseguir este combate tem de estar interligada com
as questões económicas e com o combate à corrupção e à criminalidade
económica. No Parlamento Europeu o trabalho é feito na Comissão de
Liberdades Públicas, Justiça e Assuntos Internos. Estou também na comissão
de inquérito sobre a fiscalidade, que foi levantada pelo escândalo “LuxLeaks”e
fui co-redactora da nova directiva europeia contra o branqueamento de capitais.
Todos estes aspectos são muito importantes para a acção que eu entendo
desenvolver no combate à corrupção e contra o branqueamento de capitais a
nível europeu. Em tudo isto há óbvias implicações com Angola, dado o
relevo que o país tem em Portugal.
“Pelas
conversas que tive com os membros do governo posso concluir que há um
grande desfasamento entre o discurso oficial, até nas justificações que
são dadas sobre os diversos casos, e a realidade.”
Teve
a oportunidade de lidar e conversar com uma panóplia alargada de angolanos –
partidos políticos, membros da sociedade civil, ministros, familiares dos
15 jovens detidos, jornalistas. Qual é o sentimento que leva?
É
um sentimento de maior preocupação do que aquele com que cheguei. Porque agora
tenho mais detalhes da deterioração no que diz respeito às liberdades e
garantias democráticas. Também tenho uma melhor noção do impacto da crise
económica na classe média angolana, que tem sido duramente afectada. E
isso não pode deixar de se repercutir em termos democráticos. Sobretudo
nas repercussões que tem no bloqueio do sistema político angolano. Penso
que a situação está politicamente bloqueada sob vários aspectos. Vários
angolanos, de vários quadrantes, incluindo do próprio MPLA, deram-me a
entender isso.
Quais
são os principais bloqueios, na sua opinião?
Pelas
conversas que tive com os membros do governo posso concluir que há um
grande desfasamento entre o discurso oficial, até nas justificações que
são dadas sobre os diversos casos, e a realidade. Por exemplo, o discurso
oficial é que os “revús” foram presos em actos preparatórios de uma
subversão e de um golpe de estado. Não há ninguém, além dos governantes, que
acredite que estes jovens estão envolvidos num golpe de estado. Pelo
contrário, muitas pessoas dizem-me que os “revús” primam pela
desorganização. Este desfasamento entre a versão oficial, a realidade e
a percepção dos cidadãos é muito preocupante. Ouvir governantes a defender
(já aconteceu em público e também já aconteceu comigo pessoalmente) a
apropriação ilícita de capital devido a direitos divinos relacionados com
o seu papel na luta armada parece-me revelar um grande alheamento da
realidade. Porque, mais do que nunca, oiço vozes a pedir contas à
governação angolana.
Confidenciou-nos
que um dos ministros fez questão de lhe dizer que as redes sociais tinham sido
palco de uma onda de grandes especulações sobre a visita do Presidente da
República à China e respectivos compromissos. A especulação não será
consequência da falta de informação concreta e fiável?
Essas
especulações só existem porque o poder político não presta informações. Nem
sequer o faz junto da Assembleia Nacional e muito menos da administração
pública. Este desfasamento total entre o discurso oficial e a percepção
dos cidadãos comuns, a diferentes níveis, leva-me a pensar que o sistema
está bloqueado. O facto das pessoas não saberem se o Presidente da República se
vai recandidatar, ou não, é outro exemplo da falta de sintonia dentro do
sistema político.
Em
primeira instância, pelo menos, essa será uma decisão interna do MPLA. Questionou
os ministros e membros do partido com quem falou sobre esse tema?
Não, penso que não seria fácil abordar este assunto abertamente, sobretudo com a presença da equipa ministerial que os responsáveis tinham ao seu lado. Mas abordei o tema com outras pessoas. Abordar esse assunto abertamente e sem tabús, seja qual for o sector da sociedade, tem sido um grande problema. Senti que dentro do próprio MPLA muita gente considera que a situação está bloqueada. Até porque boa parte das vozes com autoridade dentro do partido está manietada. São, de alguma maneira, cúmplices do estado de coisas.
E
quem não está acomodado também não tem peso institucional para liderar um
debate deste género dentro do MPLA.
Exactamente.
Ainda por cima o espaço para a oposição, por muito relevantes que sejam as
suas chamadas de atenção, também está completamente cerceado. Vejo muita
apreensão exactamente por este bloqueio. Incluindo a questão da sucessão de
José Eduardo dos Santos – a lei da vida imporá essa sucessão a qualquer
momento. Vejo as pessoas muito preocupadas sobre como se fará a transição.
“O
fim da guerra e, por outro lado, o espaço de desenvolvimento pessoal e
empresarial que a paz permite mostra a resiliência, a capacidade e o
trabalho da sociedade angolana.”
Também
é um facto que a sociedade angolana está a viver a passagem de uma
sociedade marcada pela guerra e pela destruição social e económica para
uma outra fase do país. Há uma série de dinâmicas sociais que nos levam a
esta conclusão. Os jovens, sobretudo, começam a exigir e a confrontar a
governação.
Penso
que houve uma euforia no tempo em que o preço do petróleo esteve elevado. Os
recursos do Estado, apesar de serem grosseiramente apropriados por uns
poucos, ao mesmo tempo iam deslizando para um amplo sector da classe
média. E havia toda uma promessa de melhorias sociais. Acho é que, hoje, a
crise económica bateu forte e a classe média é a mais fustigada, em
particular pela crise de divisas numa sociedade que
vive completamente da importação. É claro que todo o processo de
diversificação e qualificação dos quadros angolanos nunca seria fácil. E
também não poderia ser feito de um dia para o outro por muita força de
vontade e estratégia política nesse sentido. O problema é que as pessoas
dizem-me que se essa estratégia existiu nunca passou do papel.
Fizeram-se
algumas coisas: há uma nova rede de estradas, novos aeroportos, muito
mais alunos a frequentar o sistema de ensino, novas universidades.
Sim,
mas toda a gente me diz que essas infra-estruturas têm problemas sérios de
manutenção. Todos estes prédios faustosos que se vêem em Luanda estão
vazios. E dizem-me que se criou uma bolha imobiliária e que o investimento
principal na qualificação das pessoas não foi devidamente acautelado.
Também
há muitas cidades, sobretudo no interior e em províncias menos habitadas, que
estão bastante diferentes daquilo que eram há dez anos.
Sem
dúvida. O fim da guerra e, por outro lado, o espaço de desenvolvimento pessoal
e empresarial que a paz permite mostra a resiliência, a capacidade e o
trabalho da sociedade angolana.
“Há
aqui tremendos problemas de governação económica que estão a ser
questionados pela classe média angolana.”
Já
falámos das dinâmicas e das novas gerações que clamam por mudança. Isto choca
com um governo do MPLA que, quer pela prática enraizada ao longo de
décadas no poder, quer pela longa liderança, representa uma outra época?
Por
isso mesmo é que lhe digo que se isto continuasse em período de “vacas gordas”
se calhar haveria menos incentivos ao questionamento. Os revús, que, agora
são o assomo da sociedade pela falta de liberdade e contra uma sistema
totalitário, ficariam confinados. Mas hoje os “revús”, pelo que percebo,
representam muito mais para a sociedade devido aos problemas recentes – porque
vêm a público dar a cara e mobilizar as pessoas para contestar o poder.
Ainda não de forma organizada mas as pessoas já não têm medo de falar. E
têm falado comigo.
E
o que lhe têm dito?
Que
no período de “vacas gordas” os rendimentos do petróleo foram enormes. Onde
estão esses valores? Ninguém presta contas. Enquanto isto há uns nababos a
viver na opulência e na ostentação. E há pessoas a passar fome na
periferia de Luanda. E há centros, como o do Padre Arnaldo Janssen, que
têm financiamento da UE mas não têm financiamento do Ministério da Assistência
e Reinserção Social (MINARS), que no entanto manda para lá crianças. Há
aqui tremendos problemas de governação económica que estão a ser
questionados pela classe média angolana. É preocupante ver o governo com
um discurso completamente desfasado da realidade, com teses que ninguém
compra na opinião pública, de quem as pessoas se riem e escarnecem. O governo
está inseguro e tem cometido erros. A prisão dos revús só pode ser um
tremendo erro. Se houve uma estratégia da inteligência ou da segurança
para prender os revús quem a delineou é muito tosco. Porque, obviamente, é
um tremendo erro. Só transforma os revús em heróis de um
sentimento popular muito forte e que cada vez mais exige prestação de
contas.
“Há
os vendidos aos interesses económicos, que vão a ditaduras dizer que elas
são democráticas só para fazerem contratos de petróleo e outros negócios.”
Neste
cenário, neste contexto que acabamos de analisar, qual é o papel da UE em
Angola?
É
muito limitado. Por um lado porque a UE, nos últimos dez anos, teve boa parte
da sua intervenção em Angola liderada pelo ex-presidente da Comissão Europeia,
Durão Barroso, que era o principal apoiante e desculpador do regime
angolano na Europa. Basta ver que, quando veio a Angola, respaldou o
regime dizendo que não era preciso fazer uma missão europeia de observação
eleitoral (para as eleições de 2012) porque Angola já era uma democracia
madura. Obviamente que era um insulto à inteligência das pessoas.
Mas
não é só Durão Barroso. François Hollande, presidente francês, que não é
propriamente da mesma família política de Durão Barroso (que é
social-democrata enquanto Hollande é socialista) veio recentemente a
Luanda e aceitou não responder a perguntas dos jornalistas e não fazer
declarações sobre direitos humanos.
O
senhor Durão Barroso é representativo de uma intervenção europeia que não toca
apenas em Angola. Veja-se a crise das migrações. É um exemplo da falta de
apego aos princípios europeus. É um exemplo da política sem princípios,
que põe os interesses económicos e os negócios à frente de tudo o resto. E
que se esquece das lições da História. É uma deriva que está a ser perigosa,
não apenas para a credibilidade da UE aos olhos de cidadãos como os angolanos,
mas aos olhos dos próprios cidadãos europeus. São estas pessoas que estão
a comprometer o processo europeu, como a crise na Grécia tem demonstrado.
Angola
vive basicamente do petróleo. Quem faz a extracção e a comercialização de
crude (Angola apenas tem uma refinaria, em Luanda, ainda do tempo
colonial) é a Sonangol. Mas sempre em parceria com grandes empresas
americanas, francesas, italianas, portuguesas, chinesas. São as empresas
ocidentais, na sua maioria, que operam os blocos petrolíferos angolanos.
Tudo depende deles. Há muitos angolanos que se perguntam: afinal o que é a UE?
Assim
como há gente corajosa e persistente em Angola, que não deixa o MPLA desvirtuar
os direitos fundamentais consagrados na Constituição, também na UE há todo
o tipo de gente. Há os vendidos aos interesses económicos, que vão a
ditaduras dizer que elas são democráticas só para fazerem contratos de
petróleo e outros negócios. E há aqueles que se batem pelos princípios,
pelos valores e que utilizam todos os mecanismos para de facto fazerem
valer esses princípios. Não só na UE como fora dela. Por exemplo, não é
por acaso que nos últimos anos tenho vindo a trabalhar cada vez mais na
área da segurança interna e externa e na área do combate ao terrorismo,
branqueamento de capitais e ao crime económico. Garanto-lhe que por essa
via vamos sanear o que é preciso ser saneado nos esquemas de branqueamento
de capitais a que o sistema financeiro europeu se prestou. É por essa via
que pretendemos influenciar o que se passa noutros países que se relacionam com
a Europa, como por exemplo Angola. Não é por acaso que vocês chamam a
Portugal “a lavandaria”. Ou não chamam?
Hoje
em dia, a ideia que me fica (mesmo sendo uma consideração pessoal) é que o
regime angolano é bastante querido junto das principais praças do poder
internacional. Temos alguns exemplos: a Espanha (independentemente do
partido no governo) é um aliado tradicional do MPLA desde os primeiros
dias de independência, a Itália também (a ENI é um dos maiores
investidores no sector petrolífero), Angola é dos principais, se não o
principal, fornecedor africano de petróleo aos EUA e acabou de ser eleito
membro não-permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas. A
eleição aconteceu e não ouvimos uma única crítica negativa internacional,
de qualquer governo, sobre o facto. Mas se recuássemos, por exemplo, 20
anos, os ataques internacionais teriam surgido de diversas origens. Estando
o governo alinhado com o grande poder internacional, como está
actualmente, os direitos humanos passam logo para a última das
preocupações externas. Concorda?
Acho
que isso está relacionado com a degeneração do poder na Europa. E tem
repercussões. Há uma interligação. Mas, na Europa, temos cada vez mais
posturas deste tipo à conta das teses neo-liberais, que têm dominado governos
compostos por gente sem sentido de Estado. Fazem políticas de curto prazo
para serem eleitos nas próximas eleições e estão, muitas vezes, ao serviço
de interesses económicos. E não ao serviço do interesse público em geral.
É contra isso que eu combato, em todo o lado. É por isso que faço as denúncias
na Europa e é por isso que me empenho contra o branqueamento de capitais e
contra a criminalidade económica. Faço-o por perceber as implicações na
Europa e num país como Portugal. Não o faço apenas sobre Angola.
Também queremos combater outros esquemas de lavagem de dinheiro que sejam
altamente predadores de recursos, de países e de sociedades como a
angolana. Eu não sou contra os negócios e o empreendedorismo – desde que
feitos de forma leal e no total respeito pelas leis. E não na base
da apropriação ilícita e do branqueamento de capitais. Há um saneamento a
fazer em Portugal, como aliás o caso BESA e os restantes casos que
ocorreram no sistema financeiro português (BPN, Banif, entre outros)
demonstram.
Mas
a UE continua a ter uma relação muito boa, de “portas abertas”, de protecção,
com a Suíça (só para citar um exemplo concreto). A Suíça tem sido um país
claramente conivente com o crime económico e com o branqueamento de
capitais.
Já
não é tanto como era e estamos a trabalhar no sentido de controlar isso.
A
Suíça não tem um único comentário negativo sobre direitos humanos. É
largamente considerado como um grande país.
Não
conheço concretamente essa realidade. Mas posso dizer-lhe que, boa parte dos
nossos trabalhos, vão no sentido de apertar a legislação e os mecanismos
de controlo contra o branqueamento de capitais. E vão incidir fortemente
sobre a Suíça. Mas há outros países da UE que funcionam como destino de
fundos ilícitos, a começar por Portugal ou a Holanda. Há uma concorrência,
uma selva fiscal, que favorece estes esquemas. Estamos a mobilizar-nos contra
isto. Como lhe digo há um combate terrível entre os que querem fazer
negócios de forma sã, com respeito pela concorrência leal e pelo
cumprimento das leis e aqueles que vivem dos buracos escuros da
criminalidade e da legalidade.
É
diplomata de carreira. Actualmente, a teoria académica e mesmo o lugar comum na
análise política, diz-nos que os países não têm relações de proximidade ou
amizade mas relações assentes em supostos “interesses”. O conceito abre
espaço para questionar a doutrina de valores e as relações inter-pessoais
fraternas. Qual é a sua opinião sobre a “diplomacia dos interesses”?
Repugna-me.
Sobre a academia não tenho opinião porque já sou de outro tempo. Sou de um
tempo em que os valores e o sentido ético eram muito fortes. É por isso
que faço dos direitos humanos uma orientação de vida. E uma orientação de
vida política. Como diplomata pude fazer isso. Tive a sorte de ter estado
directamente envolvida no apoio português à independência de Timor Leste.
Foi representativo de uma política externa de princípios e que valorizou a
ética e os direitos humanos. Timor Leste deu aos portugueses um capital de
credibilidade. Mas estivemos sempre a combater com os interesses presentes
na Indonésia. Mesmo dentro de Portugal havia vozes que defendiam uma certa
neutralidade em relação à Indonésia porque é uma potência muito forte. E que
o importante era não chatear a Indonésia e fazer negócios com eles. Havia
portugueses com esta perspectiva. Esse combate agravou-se nos últimos anos
graças às teses neo-liberais que imperam no sistema económico. E que nos
trouxeram a crise económica global. Não sou apenas eu que o digo: o Papa
tem denunciado o sistema económico voraz. Onde os princípios da dignidade
humana estão esquecidos e os interesses predadores determinam tudo. Sou
contra esse tipo de política. Sou contra a política dos interesses.
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