Bissau,
30 ago (Lusa) - Um álbum de fotografias está em cima da mesa e não se deve
abrir. "Essas imagens impressionam e já puseram muitas 'fanatecas' a
chorar", conta Fatumata Baldé.
As
"fanatecas" são as mulheres que fazem a excisão a outras mulheres. O
álbum mostra os ferimentos e malformações que surgem mais tarde às que foram
sujeitas à Mutilação Genital Feminina (MGF) e aos seus filhos.
Quando
ainda alguém tem dúvidas sobre os males provocados pela MGF, "logo
desaparecem ao ver estas fotografias", descreve.
Fatumata
lidera o Comité Nacional para o Abandono das Práticas Nefastas na Guiné-Bissau
que tem levado "fanatecas" de todo o país a abandonar a atividade.
A
Assembleia Nacional Popular (ANP) guineense aprovou em 2011 uma lei que proíbe
a excisão, mas agora há um movimento liderado por um punhado de homens que quer
abolir essa legislação.
Para
o efeito, este grupo já entregou um abaixo-assinado no parlamento, em que dizem
reunir 12 mil subscritores que querem que a MGF volte a ser uma prática livre.
Porquê?
Iaia Rachido, 64 anos, acredita que a excisão "não faz mal a
ninguém". E se lhe pedissem para cortar nele próprio? Diz que
"não", que não deixava. "Mas nas mulheres também não se corta
tudo: cortam um pouco, como o profeta ensinou".
Para
este homem, que dirige uma mesquita em Bissau e é filho de um "sábio"
muçulmano, a mutilação é um corte com medida divina -- e quando confrontado com
ferimentos, casos de morte provocada pela excisão ou com a interpretação do
Corão (livro sagrado muçulmano) livre do corte, diz que tudo isso "não
corresponde à realidade".
Desvaloriza
também as cartas e convenções internacionais (das Nações Unidas e suas agências,
como a Organização Mundial de Saúde, entre outras entidades) que condenam a
prática.
"Quando
há americanos ou europeus que fazem uma regra, toda a gente vai atrás da
regra", queixa-se, considerando, por isso, que essas convenções não deviam
ser consideradas universais.
Para
ele, não deve ser assim e chega a dar um exemplo que contraria a carta dos
Direitos Humanos. "Fala do direito da criança em escolher a religião, mas
nós, muçulmanos, não nos importamos com isso".
Mesmo
que se diga que a lei é para toda a gente, "eles sabem quem é que pratica
isto", refere Iaia Rachido, apontando o dedo ao poder político.
Por
outro lado, "na Guiné-Bissau há crimes de droga, de sangue e corrupção.
Até à data ninguém foi julgado, mas há duas senhoras que estão a cumprir pena
por praticarem a excisão".
"Deviam
prender primeiro aqueles que cometeram crimes mais graves", acrescenta.
Não
há argumentos que demovam Iaia Rachido. A conclusão é sempre esta: "no
nosso entender [a MGF] é obrigatória", de acordo com os preceitos
religiosos e com a tradição em que se incluem mães, irmãs e até as cinco filhas
de Iaia.
Mas
"pode haver quem entenda que é facultativo".
"Quem
quiser faz, quem não quiser, não faz" e o movimento até aceita isso, mas o
objetivo é acabar com a proibição: "vamos continuar pela via legal, longe
da violência, para conseguir a abolição desta lei".
Apesar
de desvalorizar a importância dos intervenientes, Fatumata Baldé considera
gravíssima a posição assumida pelo grupo e pede a intervenção do
Procurador-Geral da República (PGR) da Guiné-Bissau.
"O
PGR devia chamar esse senhor para lhe perguntar o que se está a passar",
porque está a instigar a população "contra uma lei adotada por um Estado.
Ele merece ser chamado ao Ministério Público". "Estamos num país
democrático em que cada um pode expressar-se livremente, mas sem contrariar as
leis", sublinha.
Fatumata
Baldé acredita que a oposição à excisão na Guiné-Bissau e a caminhada com vista
à sua erradicação já chegou a um ponto sem retorno: a lei passou no parlamento
quase por unanimidade e a os principais líderes islâmicos rejeitam que a
religião obrigue à MGF.
Os
mais recentes indicadores revelam uma diminuição da prática, apesar de
continuar a ser expressiva.
Segundo
o Inquérito aos Indicadores Múltiplos (MICS) de 2010, promovido pelo Governo e
Nações Unidas, a excisão afetava metade (50%) das mulheres da Guiné-Bissau com
idades entre os 15 e os 49 anos, valor que desceu para 45% no MICS 2014.
Há
um senão: com medo da lei, há cada vez mais pais a sujeitar as filhas à MGF
quando ainda são bebés, para haver menos possibilidades de denúncia.
E
aos recém-nascidos nada resta senão depender dos adultos, num país onde ainda
se defende a mutilação.
LFO
// VM
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