quarta-feira, 5 de agosto de 2015

UNIÃO EUROPEIA: DO PÁRTERNON ATÉ À MÁFIA EM 57 ANOS




O default é a única justificação moral possível para os juros altos. Se o default não é admissível, então os juros altos também não podem ser admissíveis.

O capitalismo é um sistema social e económico baseado na competição, onde se admitem grandes disparidades nos benefícios e no bem-estar de que gozam diferentes pessoas que vivem numa mesma sociedade com base numa justificação moral meritocrática.

Deixemos de lado, momentaneamente, a realidade em que se traduz esta “meritocracia” — que é, na realidade, uma oligarquia ferozmente protegida —e consideremos os seus princípios teóricos. Num sistema capitalista, as desigualdades são não só toleradas como consideradas um motor do progresso, pois demonstram como funciona o sistema de recompensas. O mantra capitalista diz que os melhores serão recompensados e os piores preteridos, prevendo alguns paliativos para casos extremos como deficiências congénitas ou acidentes incapacitantes.

Quais são os méritos que merecem recompensas? Em teoria, todos, em qualquer área. Pode ser a habilidade a dar pontapés numa bola ou a jogar xadrez, o raciocínio abstracto ou o conhecimento da pintura maneirista, a capacidade negocial, a habilidade manual, o jeito para tratar de animais, a competência técnica para fazer sopa de legumes ou arranjos florais, a imaginação, a originalidade, a beleza física, a persistência, etc. — ainda que seja duvidoso que, prosseguindo o mesmo raciocínio moral, se possa atribuir maior “mérito” a pessoas que possuem determinadas qualidades naturais em detrimento de quem não as possua e que seja igualmente duvidoso que alguém que consegue obter melhores resultados numa qualquer área sem o mínimo esforço tenha maior “mérito” que quem se esforce afincadamente sem conseguir atingir as mesmas marcas.

Mas a narrativa propagandística do capitalismo, que vemos martelada constantemente no cinema e na televisão americana e não só, é esta: quem se esforça, quem persiste, quem inova, quem arrisca, quem investe, ganha e alcança o american dream. Quem não o faz, fica para trás.

Não é só o trabalho e a competência que justificam moralmente os ganhos no capitalismo. São principalmente a iniciativa e a assunção de risco. Os grandes ganhos, em particular, só são justificáveis se corresponderem a um risco assumido. São o prémio do risco. É lícito que alguém ganhe uma fortuna na Bolsa se investir num projecto de elevado risco, que pode fracassar. Pode-se ganhar muito porque se arrisca muito. Pode-se ganhar muito porque se pode perder tudo.

É essa a lógica de quem investe numa fábrica que vai produzir um produto inovador, que ninguém sabe ao certo se encontrará mercado. E é essa a lógica de quem empresta dinheiro a um país muito endivididado (um empréstimo é um investimento). O país endividado propõe-se pagar um juro alto porque tem um risco elevado associado. Há o perigo de não poder pagar. E quem compra os seus títulos de dívida aceita o risco porque pode ganhar muito se o devedor pagar tudo. Mas tem de aceitar o risco de perder tudo ou uma parte.

As pressões feitas pela troika e, principalmente, pela Comissão Europeia, pelo Eurogrupo e pelo Banco Central Europeu nos últimos anos, no caso da Grécia e de Portugal, significam que todos os que compraram dívida aceitam os juros altos com que vão ser premiados se forem reembolsados, mas não aceitam o risco inerente e querem forçosamente que os devedores paguem, seja como for, nem que seja preciso vender o Pártenon às pedrinhas. E é evidente que muitos dos bancos privados que compraram dívida grega com juro alto o fizeram porque sabiam que, chegado o momento da verdade, haveria uma cartada política que poderiam jogar para obrigar o devedor a pagar, fosse como fosse, ou que os títulos de dívida na sua mão seriam resgatados pelas “instituições”.

O que a negociata das dívidas soberanas mostra é a enorme hipocrisia dos credores, que compram barato (ou seja: emprestam com juros altos) com a justificação moral do risco que assumem, mas depois usam todos os meios ao seu alcance, lícitos ou ilícitos, para garantir o pagamento e para afastar totalmente a possibilidade de default.

A questão é que o default é a única justificação moral possível para os juros altos. Se o default não é admitido pelos credores, então os juros altos também não podem ser admissíveis. Até se pode admitir, em tese, que o default de um estado se torne impossível e que este seja obrigado a vender monumentos e entregar uma libra de carne todos os meses para pagar as dívidas até ao último cêntimo. Mas, se for assim, não há a mínima justificação para os juros altos. Se o default da Grécia não é permitido, então a Grécia deve poder contrair empréstimos com os juros negativos da Alemanha, porque o seu risco será, como o da Alemanha, virtualmente nulo.

Se os juros se mantêm altos e o default não é possível, como acontece agora, deixamos de estar no reino das finanças ou da política. Estamos no reino doracket, da chantagem, da extorsão, do crime organizado, da Mafia. O reino que a União Europeia agora representa.

*Jornalista, jvmalheiros@gmail.com

Público, opinião - em 21.07.2015

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