O default é
a única justificação moral possível para os juros altos. Se o default não é
admissível, então os juros altos também não podem ser admissíveis.
O
capitalismo é um sistema social e económico baseado na competição, onde se
admitem grandes disparidades nos benefícios e no bem-estar de que gozam
diferentes pessoas que vivem numa mesma sociedade com base numa justificação
moral meritocrática.
Deixemos
de lado, momentaneamente, a realidade em que se traduz esta “meritocracia” — que
é, na realidade, uma oligarquia ferozmente protegida —e consideremos os
seus princípios teóricos. Num sistema capitalista, as desigualdades são não só
toleradas como consideradas um motor do progresso, pois demonstram como
funciona o sistema de recompensas. O mantra capitalista diz que os melhores
serão recompensados e os piores preteridos, prevendo alguns paliativos para
casos extremos como deficiências congénitas ou acidentes incapacitantes.
Quais
são os méritos que merecem recompensas? Em teoria, todos, em qualquer área. Pode ser a habilidade a dar pontapés numa bola ou a jogar xadrez, o raciocínio
abstracto ou o conhecimento da pintura maneirista, a capacidade negocial, a
habilidade manual, o jeito para tratar de animais, a competência técnica para
fazer sopa de legumes ou arranjos florais, a imaginação, a originalidade, a
beleza física, a persistência, etc. — ainda que seja duvidoso que,
prosseguindo o mesmo raciocínio moral, se possa atribuir maior “mérito” a
pessoas que possuem determinadas qualidades naturais em detrimento de quem não
as possua e que seja igualmente duvidoso que alguém que consegue obter melhores
resultados numa qualquer área sem o mínimo esforço tenha maior “mérito” que
quem se esforce afincadamente sem conseguir atingir as mesmas marcas.
Mas
a narrativa propagandística do capitalismo, que vemos martelada constantemente
no cinema e na televisão americana e não só, é esta: quem se esforça, quem
persiste, quem inova, quem arrisca, quem investe, ganha e alcança o american
dream. Quem não o faz, fica para trás.
Não
é só o trabalho e a competência que justificam moralmente os ganhos no
capitalismo. São principalmente a iniciativa e a assunção de risco. Os grandes
ganhos, em particular, só são justificáveis se corresponderem a um risco
assumido. São o prémio do risco. É lícito que alguém ganhe uma fortuna na Bolsa
se investir num projecto de elevado risco, que pode fracassar. Pode-se ganhar
muito porque se arrisca muito. Pode-se ganhar muito porque se pode perder tudo.
É
essa a lógica de quem investe numa fábrica que vai produzir um produto
inovador, que ninguém sabe ao certo se encontrará mercado. E é essa a lógica de
quem empresta dinheiro a um país muito endivididado (um empréstimo é um
investimento). O país endividado propõe-se pagar um juro alto porque tem um
risco elevado associado. Há o perigo de não poder pagar. E quem compra os seus
títulos de dívida aceita o risco porque pode ganhar muito se o devedor pagar
tudo. Mas tem de aceitar o risco de perder tudo ou uma parte.
As
pressões feitas pela troika e, principalmente, pela Comissão
Europeia, pelo Eurogrupo e pelo Banco Central Europeu nos últimos anos, no caso
da Grécia e de Portugal, significam que todos os que compraram dívida aceitam
os juros altos com que vão ser premiados se forem reembolsados, mas não aceitam
o risco inerente e querem forçosamente que os devedores paguem, seja como for,
nem que seja preciso vender o Pártenon às pedrinhas. E é evidente que muitos
dos bancos privados que compraram dívida grega com juro alto o fizeram porque
sabiam que, chegado o momento da verdade, haveria uma cartada política que
poderiam jogar para obrigar o devedor a pagar, fosse como fosse, ou que os
títulos de dívida na sua mão seriam resgatados pelas “instituições”.
O
que a negociata das dívidas soberanas mostra é a enorme hipocrisia dos
credores, que compram barato (ou seja: emprestam com juros altos) com a
justificação moral do risco que assumem, mas depois usam todos os meios ao seu
alcance, lícitos ou ilícitos, para garantir o pagamento e para afastar
totalmente a possibilidade de default.
A
questão é que o default é a única justificação moral possível para os
juros altos. Se o default não é admitido pelos credores, então os
juros altos também não podem ser admissíveis. Até se pode admitir, em tese, que
o default de um estado se torne impossível e que este seja obrigado a
vender monumentos e entregar uma libra de carne todos os meses para pagar as
dívidas até ao último cêntimo. Mas, se for assim, não há a mínima justificação
para os juros altos. Se o default da Grécia não é permitido, então a
Grécia deve poder contrair empréstimos com os juros negativos da Alemanha,
porque o seu risco será, como o da Alemanha, virtualmente nulo.
Se
os juros se mantêm altos e o default não é possível, como acontece
agora, deixamos de estar no reino das finanças ou da política. Estamos no reino
doracket, da chantagem, da extorsão, do crime organizado, da Mafia. O reino que
a União Europeia agora representa.
*Jornalista, jvmalheiros@gmail.com
Público, opinião - em 21.07.2015
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