Pelotas/RS
– Para a professora Olga Pereira, doutora em Letras e Coordenadora de
Ações Inclusivas da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura do Instituto Federal Sul
Riograndense (IFSUL), o racismo no Brasil “envolto a uma frágil e capenga
democracia racial, ainda faz sangrar diariamente os verdadeiros protagonistas
da história: os negros e as negras”.
“Gritar
que vivemos numa democracia racial é apenas uma forma confortável de
esconder por debaixo do tapete a vergonha de uma herança histórica que
persiste em criar fronteiras entre o eu e o outro. Infelizmente,
vivemos numa sociedade racista, onde o pigmento de uma pele parece se sobrepor
a valores e sentimentos de humanidade já tão esquecidos”, afirma.
Licenciada
em Literatura brasileira e portuguesa pela Universidade (UCPel), ela acaba de
lançar os livros “Reinterpretando silêncios – Reflexões sobre a docência negra
na cidade de Pelotas/RS” e “Cicatrizes da escravidão: da história ao
silenciamento”, respectivamente, pelas Nandyala e Um2, em que trata dos temas
relacionados a presença negra no Brasil e as sequelas da escravidão.
“Algo
que sempre me chama muito a atenção é o questionamento dos não negros pelo
interesse e causa que abraço como ideal. É como se ainda soasse estranho uma
mulher branca se comprometer e participar de eventos e discussões relacionados
a negros e negras. No entanto, há muito aprendi que não devemos alimentar
discussões diante de pessoas que, infladas por preconceitos em relação ao
próximo, em nada nos acrescentam. Sinto-me gratificada quando sou acolhida com
esse refrão: chegou a nêga Olga!”, acrescenta.
Confira,
na íntegra, a entrevista concedida por Olga Pereira, ao editor de Afropress,
jornalista Dojival Vieira.
Afropress
- A senhora acaba de lançar o livro “Cicatrizes da escravidão: da história ao
silenciamento” pela Editora Um2, e também “Reinterpretando silêncios –
reflexões sobre a docência negra na cidade de Pelotas/RS” pela editora
Nandyala. A que conclusões chega nesses dois livros acerca da persistência do
racismo no Brasil?
Olga
Pereira - Não sou pessimista, tampouco, ignoro os direitos
conquistados a duras penas pelos negros e negras do nosso país,no entanto,
não posso negar que o racismo, envolto a uma frágil e capenga democracia
racial, ainda faz sangrar diariamente os verdadeiros protagonistas da
história: os negros e negras. São manifestações e atitudes racistas que
se proliferam nas redes sociais, no cotidiano das relações pessoais e, a mais danosa,
àquelas que, no velado das relações mais próximas entre o eu e o outro,
continuam a menosprezar o negro e sua intelectualidade a partir do
pigmento de sua pele. Gritar que vivemos numa democracia racial é apenas uma
forma confortável de esconder por debaixo do tapete a vergonha de uma herança
histórica que persiste em criar fronteiras entre o eu e o outro.
Infelizmente, vivemos numa sociedade racista, onde o pigmento de uma pele
parece se sobrepor a valores e sentimentos de humanidade já tão esquecidos. Os
avanços tecnológicos e científicos que a cada dia têm servido para enaltecer a
singularidade e intelectualidade do homem parecem somas contraditórias quando
comparadas a atitudes tão preconceituosas que se reverberam a todo instante.
No
livro “Reinterpretando silêncios: reflexões sobre a docência negra na cidade de
Pelotas-RS” podemos identificar a persistência de uma racismo institucional que
nos envergonha como educadores. Se a escola, fonte primeira de
valorização do ser humano e de sua história, ainda se mostra repetidora de
vícios tão indesejáveis, creio que é chegado o momento de rever seus
conceitos e posicionamentos. Não podemos mais permitir que o critério cor
ou raça ainda seja usado como desculpa para a depreciação de docentes negros/as
espalhados em cada cidade e estado do Brasil. As vozes dos docentes negros
presentes na minha pesquisa demonstram nitidamente a persistência de atitudes
racistas e preconceituosas tanto nas escolas como na própria sociedade. No
livro “Cicatrizes da escravidão: da história ao silenciamento”, coletânea de
artigos apresentados em eventos sobre a temática afro-brasileira e africana,
trago reflexões sobre as diversas formas usadas pelo brancos para manter
acesa as fronteiras das desigualdades alimentadas pelo critério “cor”.
Por
isso, em cada artigo que compõe os dezesseis capítulos do livro, tragos
reflexões de Franz Fanon, Carlos Moore, Aimé Cesáire, Marcien Towa, Munanga ,
Abdias do Nascimento, Milton Santos, Petronilha Gonçalves, Nelson Mandela,
Martin Luther King e muitos outros pesquisadores que, através de um olhar
diferenciado, nos faz refletir sobre a verdadeira história do negro
descontaminada pela narrativa eurocêntrica.
Afropress
- Como tem vivido a experiência de ser uma intelectual não negra e antirracista
numa cidade como Pelotas?
OP -
Posso dizer que sou muito respeitada pelo trabalho que venho desempenhando ao
longo da minha trajetória acadêmica. Na verdade, o meu interesse pela
problemática enfrentada pelos irmãos negros, começou bem antes de ingressar na
universidade. O despertar por tais narrativas, como bem sinalizado por um amigo
da Frente Negra Pelotense, talvez possa ser explicado somente através de um
olhar espiritual. Nasci e me criei na cidade de Pelotas, historicamente marcada
pelo longo período charqueadense, e posso afirmar que, em se tratando de
racismo e preconceito pela cor, o presente ainda se escara com cara de
passado. Algo que sempre me chama muito a atenção é o questionamento dos
não negros pelo interesse e causa que abraço como ideal. É como se ainda soasse
estranho uma mulher branca se comprometer e participar de eventos e discussões
relacionados a negros e negras.
No
entanto, há muito aprendi que não devemos alimentar discussões diante de
pessoas que, infladas por pré-conceitos em relação ao próximo, em nada nos
acrescenta. Vou continuar lutando por uma sociedade melhor com pessoas
melhores. Sei que os meus livros são sementes solitárias que vão se
fortalecendo através do olhar e da reflexão de muitos outros. Isso é o que
realmente importa: fazer do meu trabalho um exercício-reflexivo em prol
da valorização e protagonismo do negro em nosso país.
Afropress
- Como vê a situação do movimento negro no Brasil?
OP -
Como bem nos faz lembrar um provérbio africano “Até que os leões tenham
suas histórias, os contos de caça glorificarão sempre o caçador”, e é dessa
forma que vejo a situação e mobilização do povo negro em nosso país. A história
tem demonstrado as lutas diárias enfrentadas pelo povo negro em busca da
efetivação de seus direitos. São conquistas importantes que, na contramão
de tudo que podemos chamar de democracia racial, são batalhas intermináveis e
dolorosas. Percebemos legislações ainda frágeis transformadas em
retratações de pouca relevância. Um cenário conflituoso onde o negro a todo
instante precisa afirmar sua negritude e identidade, caso contrário, sua
história e contribuição cultural tende a ser usurpada eurocentricamente.
Acredito nos Movimentos Negros espalhados em cada canto do nosso país como
sinônimos singulares de uma luta permanente contra tudo que se possa chamar de
uma única versão da história. A caminhada é lenta e os enfrentamentos bem
complexos e velados, no entanto, somente através dessa mobilização coesa é que
podemos ter expectativas de um mundo com mais equidade.
Afropress - Pretende
lançar os livros nacionalmente?
OP
- Escrever no Brasil ainda representa um exercício solitário, desafiador e
pouco valorizado. Dependendo do tema proposto, posso dizer que se torna
mais complexo essa caminhada. Os gastos com editora, gráfica e todo processo
que envolve a publicação de um livro são alarmantes. Depois nos deparamos com o
percentual estipulado pelas livrarias que, na maioria das vezes, acaba nos
privando do mínimo que investimos ao longo do processo como um todo. Quero aqui
ressaltar que os dois livros que estou publicando em 2015 sobre a temática do
negro e sua história, não tive nenhum tipo de ajuda ou patrocínio. Escrevi e
arquei com todas as despesas porque acredito que, de alguma forma, minhas
reflexões tendem a ser aprofundadas através de outros e inquietantes
olhares. Nenhum escritor escreve para deixar suas palavras escondidas numa
velha prateleira, assim como tantos outros, gostaria que os mesmos alcançassem
outros universos. Os livros encontram-se em algumas livrarias da cidade
de Pelotas, no entanto, seria gratificante vê-los em outros espaços e ocupando
a relevância merecida diante do tema escolhido.
O
Brasil está engatinhando em relação à literatura africana, e quando falo isso é
porque tenho uma biblioteca-afro particular que só me foi possível construir a
partir da compra desses livros em eventos específicos. Caso contrário, somente
mediante compra via internert podemos ter acesso a tais referenciais.
Afropress - Como
começou a se interessar pelo tema e como tem sido sua interação com o movimento
negro brasileiro?
OP -
Como dito anteriormente, é algo talvez possa ser explicável espiritualmente.
São pesquisas que não se esgotaram com os trabalhos desenvolvidos tanto no
mestrado, como, no doutorado. Continuo escrevendo e divulgando artigos sobre o
negro e sua história. Continuo participando de eventos e encontros onde as
discussões e reflexões sobre o preconceito, racismo e discriminação racial, são
contextualizadas a partir das vozes e experiências desses sujeitos.
Enquanto
viver sei que trarei como bandeira acadêmica e pessoal o uso da linguagem e da
escrita como fontes de reflexões em prol de uma igualdade racial de fato e de
direito. Sinto-me gratificada quando nesses espaços sou acolhida com esse
refrão: chegou a nêga Olga!
Afropress - Faça
as considerações que julgar pertinentes.
OP
- Quero agradecer imensamente ao amigo Dojival Vieira, responsável pelaAfropress -
Agência Afroétnica de Notícias, pelo caloroso convite e valorização do meu
trabalho e da minha trajetória em prol de uma sociedade mais justa e com
pessoas melhores. A Afropress traz esse diferencial que considero um
dos mais relevantes: um espaço específico para tratar de temas ainda pouco
valorizados em nossa sociedade. Que Deus o ilumine e que tais sementes
plantadas por você possam germinar em outros estados e regiões.
Sem comentários:
Enviar um comentário