Nota
Prévia. Este humilde texto é uma singela homenagem a esse jovem que, entre a
vida e a morte, mostra ao mundo que José Eduardo dos Santos e o seu regime já
estão mortos. Só que ainda não sabem. De seu nome Luaty Beirão.
Orlando
Castro* – Folha 8
O Presidente
da República, nunca nominalmente eleito e no poder desde 1979, José Eduardo dos
Santos, assume o seu papel de autocrata e dá lições (aos angolanos) daquilo que
desconhece: ética, democracia, verdade, moral e liberdade.
Nas
reunião do MPLA, Eduardo dos Santos puxa dos galões para, perante uma plateia
subserviente e amorfa, dizer que os angolanos não devem ser expostos a
situações dramáticas idênticas à do 27 de Maio de 1977, onde foi parte activa
no assassinato de milhares e milhares de militantes do MPLA, entre os quais
Nito Alves, supostamente por tentar um golpe de Estado.
“Não
se deve permitir que o povo angolano seja submetido a mais uma situação
dramática, como a que viveu em 27 de Maio de 1977, por causa de um golpe de
Estado”, afirma José Eduardo dos Santos.
Falando,
por exemplo, na abertura da terceira sessão extraordinária do Comité Central do
MPLA, o também presidente do partido, aconselhou os cidadãos interessados a
conquistar o poder para formarem um partido político e concorrem às eleições.
“Quem
quer alcançar a Presidência da República e formar o governo que crie, se não
tiver, um partido político nos termos da Constituição e da Lei, e se candidate
às eleições”, sugeriu o chefe de Estado, acrescentando que “quem escolhe a via
da força para tomar o poder ou usa meios anti-constitucionais, não é democrata.
É tirano ou ditador. Acusaram o MPLA e os seus militantes de intolerantes, mas
a mentira tem pernas curtas, hoje todos sabem onde estão os intolerantes e nem
é preciso dizer os seus nomes”, concluiu José Eduardo dos Santos.
Como
Eduardo dos Santos não é, embora julgue ser, dono da verdade, falemos então
desse 27 de Maio de 1977.
Os
acontecimentos de 27 de Maio de 1977, que provocaram – repita-se – muitos
milhares de mortos, foram o resultado de um “contra-golpe” que foi
pacientemente planeado, tendo como responsável máximo Agostinho Neto, que temia
perder o poder. Tal como agora acontece com José Eduardo dos Santos que até
vislumbra na sua sombra um golpe de Estado.
Nessa
altura, Nito Alves, então ministro da Administração Interna sob a presidência
de Agostinho Neto, liderou uma manifestação para protestar contra o rumo que o
MPLA estava a tomar. Tal como hoje fazem muitos angolanos descontentes com o
rumo que o MPLA está a dar ao país.
E
isso era inaceitável pelos ortodoxos que, por interesses pessoais, blindavam o
presidente. Exactamente o que hoje se passa. Com o fantasma do Congresso,
previsto para o final desse ano, urgia calar os nitistas pois, se o não
fizessem, poderiam ver os congressistas renderem-se a Nito Alves. Tudo leva a
crer que Neto temia mesmo perder o poder e, por isso, engendrou a tramóia.
Perante
a blindagem que ainda hoje o regime faz ao que se passou, situação que impede
consulta de documentos e que atemoriza muitos dos intervenientes cujo
testemunho é imprescindível para um conhecimento que chegue perto da verdade, a
história do massacre vai continuar com muitos capítulos especulativos mas,
igualmente, como instrumento na mão do poder, como agora demonstrou Eduardo dos
Santos.
Na
versão oficial, através de uma declaração do Bureau Político do MPLA, divulgada
a 12 de Julho de 1977, o 27 de Maio foi uma “tentativa de golpe de Estado” por
parte de “fraccionistas” do movimento, cujos principais “cérebros” foram Nito
Alves e José Van-Dunem, versão que seria alterada mais tarde para
“acontecimentos do 27 de Maio”.
Nito
Alves e José Van-Dúnem tinham sido formalmente acusados de fraccionismo em
Outubro de 1976. Os visados propuseram a criação de uma comissão de inquérito,
que foi liderada por José Eduardo dos Santos, para averiguar se havia ou não
fraccionismo no seio do partido. As conclusões nunca chegaram a ser divulgadas
publicamente mas, segundo alguns sobreviventes, revelariam que não existia
fraccionismo no seio do MPLA.
Tal
como hoje os jovens activistas não lideram nenhuma tentativa de golpe de Estado.
Eduardo dos Santos sabe disso, mas é-lhe conveniente não saber.
Consta
que o próprio José Eduardo dos Santos, tal como o então primeiro-ministro, Lopo
do Nascimento, seriam alvos a abater pela cúpula do MPLA. Ao actual Presidente
terá valido a intervenção do comissário provincial do Lubango, Belarmino
Van-Dúnem.
Os
apoiantes de Nito Alves consideravam que o golpe já estava a ser feito por uma
ala maoísta do partido, liderada pelo secretário administrativo do movimento,
Lúcio Lara, que terá instrumentalizado os principais centros de decisão do
partido e os média, em especial o Jornal de Angola, pelo que consideraram que a
manifestação convocada por Nito Alves foi “um contra-golpe”.
Em
relação ao número de mortos, os números vaiam segundo as fontes. Terão sido
mais de 15 mil e menos de 100 mil. É claro que, como continua a ser prática,
nessa altura os ditos fraccionistas sofreram horrores terríveis, desde prisões
arbitrárias, a tortura, condenações sem julgamento ou execuções sumárias.
O
apontado líder do alegado golpe de Estado terá sido fuzilado, mas o seu corpo
nunca foi encontrado, tal como o dos seus mais directos apoiantes como José
Van-Dúnem e Sita Valles, que foi dirigente da UEC, ligada ao Partido Comunista
Português, do qual se desvinculou mais tarde, e foi expulsa do MPLA.
Em
Abril de 1992, o governo angolano reconheceu que foram “julgados, condenados e
executados” os principais “mentores e autores da intentona fraccionista”, que
classificou como “uma acção militar de grande envergadura” que tinha por
objectivo “a tomada do poder pela força e a destituição do presidente Agostinho
Neto”.
Exactamente
os mesmos argumentos que hoje o MPLA utiliza.
Moralmente,
pelo menos, o principal responsável foi Agostinho Neto que, assessorado por
alguns dos mais radicais membros do MPLA, não se preocupou em apurar a verdade,
dispensou os tribunais, admitiu que fizessem justiça por suas próprias mãos.
Relatos
dispersos dizem que o Presidente Agostinho Neto foi, antes de tudo, chefe duma
facção e não o árbitro, o unificador, estando completamente dominado pela
arrogância, inflexibilidade e cegueira.
Certo
é, contudo, que Angola perdeu muitos dos seus melhores quadros: combatentes
experimentados em mil batalhas, mulheres combativas, jovens militantes,
intelectuais e estudantes universitários. Dessa forma o MPLA decapitou os que
sonhavam com um futuro melhor, mais igualitário e mais fraterno para os
angolanos.
O
mais recente livro da jornalista britânica Lara Pawson (“Em Nome do Povo – O
massacre que Angola silenciou”) sobre este assunto, “levanta mais perguntas do
que respostas” sobre as verdadeiras intenções, envolvidos e número de mortos.
O
livro, que demorou sete anos a escrever, representa uma investigação de sete
anos da antiga correspondente da BBC em Angola (1998-2000), demora que a autora
atribui à própria “lentidão” e à incerteza criada pelos testemunhos que
recolheu entre Londres, Lisboa e Luanda.
“Todas
as pessoas com quem eu falava pareciam ter visões muito facciosas e eu achava
difícil confiar em alguém. Esse é um dos interesses do livro, porque levanta a
questão do rigor da informação sobre Angola e qual é a informação em que
podemos confiar”, explica Lara Pawson.
O
27 de Maio de 1977 é descrito como uma tentativa de golpe de Estado por
“fraccionistas” do próprio MPLA, então já no poder do país recém-independente,
contra o Presidente Agostinho Neto e “bureau político” do partido.
Segundo
vários relatos, milhares terão morrido na reacção das FAPLA, nomeadamente os
dirigentes Nito Alves, então ministro da Administração Interna, e José
Van-Dúnem, mas foi difícil para Lara Pawson alcançar uma “versão definitiva”
sobre os interesses e objectivos daquele movimento, que alegou tratar-se de um
`contragolpe`.
“Uma
das discussões foi saber se foi manifestação ou golpe de Estado e o que aprendi
após falar com angolanos, em particular o povo, é que muito deles acreditavam
estar a participar numa manifestação pacífica. Mas, por outro lado, o facto de
a 9ª Brigada se ter envolvido, de a rádio ter sido ocupada durante várias horas
por homens com armas e as prisões invadidas parece difícil negar que não houve
tentativa de golpe”, salienta a autora.
Outra
questão controversa que tentou esclarecer foi o número de mortos resultantes da
resposta do regime, e que variam, segundo as versões, entre 20 mil a 30 mil
mortos, número dado à autora pelo irmão de José Van-Dúnem, João, a 100 mil
mortos reivindicados pela Fundação 27 de Maio.
“O
mais próximo que consegui de uma versão oficial foi de Fernando Costa Andrade,
antigo director do Jornal de Angola. Ele disse que o ministro de Defesa da
altura tinha estimado pelo menos 2.000 mortos. Se um ministro diz isto, é
porque no mínimo foram 2.000 mortos, mas podem ter sido mais”, referiu Lara
Pawson.
O
envolvimento de Moscovo, a existência de fracturas entre os próprios
fraccionistas são outras questões que continuam em aberto, bem como o papel do
actual Presidente angolano, José Eduardo dos Santos, que sucedeu a Agostinho
Neto no poder.
A
“complexidade e contradições” que rodeiam o assunto contribuíram para a
“obsessão” de Lara Pawson em querer escrever este livro num tom romanceado, mas
descobriu que o assunto continua a ser um “tabu” e que muitos dos envolvidos
têm medo de falar, pelo que a identidade teve de ser preservada no livro.
O
próprio receio do MPLA em “abrir a ferida” abriu espaço para que Nito Alves
seja actualmente idolatrado por jovens angolanos opositores ao regime, disse a
jornalista britânica, concluindo: “Esconder a verdade está a criar cada vez
mais o peso do próprio mito”.
MPLA
desde 1975. Dos Santos desde 1979
O
MPLA está no poder desde 1975 e por lá vai ficar. Com o poder absoluto que tem
nas mãos (é também o presidente do MPLA e chefe do Governo), José Eduardo dos
Santos é um dos ditadores ou, na melhor das hipóteses, um presidente
autocrático, há mais tempo em exercício.
África,
em nada abona do ponto de vista democrático e civilizacional a seu favor. Sabe
todo o mundo, mas sobretudo e mais uma vez África, que se o poder corrompe, o
poder absoluto corrompe absolutamente. É o caso em Angola.
Só
em ditadura, mesmo que legitimada pelos votos comprados a um povo que quase
sempre pensa com a barriga (vazia) e não com a cabeça, é possível estar tantos
anos no poder. Em qualquer estado de direito democrático tal não seria
possível.
Aliás,
e Angola não foge infelizmente à regra, África é um alfobre constante e
habitual de conflitos armados porque a falta de democraticidade obriga a que a
alternância política seja conquistada pela linguagem das armas. Há obviamente
outras razões, mas quando se julga que eleições são só por si sinónimo de
democracia está-se a caminhar para a ditadura.
Com
Eduardo dos Santos passa-se exactamente isso. A guerra legitimou tudo o que se
consegue imaginar de mau. Permitiu ao actual presidente perpetuar-se no poder,
tal como como permitiu que a UNITA dissesse que essa era (e pelo que se vai
vendo até parece que teve razão) a única via para mudar de dono do país.
É
claro que, é sempre assim nas ditaduras, o povo foi sempre e continua a ser (as
eleições não alteraram a génese da ditadura, apenas a maquilharam) carne para
canhão.
Por
outro lado, a típica hipocrisia das grandes potências ocidentais, nomeadamente
EUA e União Europeia, ajudou a dotar José Eduardo dos Santos com o rótulo de
grande estadista. Rótulo que não corresponde ao produto. Essa opção estratégica
de norte-americanos e europeus tem, reconheça-se, razão de ser sobretudo no
âmbito económico.
É
muito mais fácil negociar com um regime ditatorial do que com um que seja
democrático. É muito mais fácil negociar com alguém que, à partida, se sabe que
irá estar na cadeira do poder durante toda a vida, do que com alguém que pode
ao fim de um par de anos ser substituído pela livre escolha popular.
É,
como acontece com José Eduardo dos Santos, muito mais fácil negociar com o
líder de um clã que representa quase 100 por cento do Produto Interno Bruto, do
que com alguém que não seja dono do país mas apenas, como acontece nas
democracias, representante temporário do povo soberano.
Bem
visível na caso angolano é o facto de, como em qualquer outra ditadura, quanto
mais se tem mais se quer ter, seja no país ou noutro qualquer sítio. Por muito
pequeno que seja o ditador, o que não é o caso de José Eduardo dos Santo, a
História mostra-nos que tem sempre apreciável fortuna espalhada pelo mundo,
seja em bens imobiliários (como era tradição) ou mais modernamente nos paraísos
fiscais.
Reconheça-se,
entretanto, a estatura política de José Eduardo dos Santos, visível sobretudo a
partir do momento em que deixou de poder contar com Jonas Savimbi como o bode
expiatório para tudo o que de mal se passava em Angola.
Desde
2002, o presidente vitalício de Angola tem conseguido fingir que democratiza o
país e, mais do que isso, conseguiu (embora não por mérito seu mas, isso sim,
por demérito da UNITA) domesticar completamente todos aqueles que lhe poderiam
fazer frente.
Não
creio que, até pelo facto de o país ter estado em guerra dezenas de anos, José
Eduardo dos Santos tenha as mãos limpas de sangue. Aliás, nenhuma ditador com
36 anos de permanência seguida no poder, tem as mãos limpas.
Mas
essa também não é uma preocupação. Quando se tem milhões, pouco importa como
estão as mãos. Aliás, esses milhões servem também para branquear, para limpar,
para transplantar, para comprar (quase) tudo e (quase) todos.
Tudo
isto é possível com alguma facilidade quando se é dono de um país rico e, dessa
forma, se consegue tudo o que se quer. E quando aparecem pessoas que não estão
à venda mas incomodam e ameaçam o trono, há sempre forma de as fazer chocar com
uma bala.
Acresce,
e nisso os angolanos não são diferentes dos portugueses ou de qualquer outro
povo, que continua válida a tese de que “se não consegues vencê-los junta-te a
eles”. Não admira por isso que José Eduardo dos Santos tenha cada vez mais
fiéis seguidores, sejam militares, políticos, empresários e até supostos
jornalistas.
É
claro que, enquanto isso, o Povo continua a ser gerado com fome, a nascer com
fome, e a morrer pouco depois… com fome. E a fome, a miséria, as doenças, as
assimetrias sociais são chagas imputáveis ao Poder. E quem está no poder há 36
anos é sempre o mesmo, José Eduardo dos Santos. Até um dia, como é óbvio.
*Chefe
de Redação do Folha 8
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