terça-feira, 3 de novembro de 2015

Angola. DEBATES E CRITÉRIOS DÚBIOS



Luísa Rogério – Rede Angola, opinião

A semana começou com a boa notícia da suspensão da greve de fome por Luaty Beirão. Depois de 36 dias a manifestar “um comportamento diferente em relação aos alimentos” o activista voltou a comer para enorme satisfação dos familiares, amigos e admiradores. Suspiraram também de alívio pessoas que, apesar de não se reverem propriamente nas causas de Luaty, enalteceram a sua determinação ao levar a cabo aquilo que, para a maioria dos seres comuns, não passaria de um frustrado ensaio sobre a fome. As orações não foram em vão. A seguir ao fim do “comportamento diferente” as redes foram inundadas de ovações. Não faltaram, porém, as teorias inusitadas. Os absurdos incluíram suspeitas de alimentação na calada da noite no quadro de um esquema de sobrevivência concebido ao detalhe por Luaty apenas para chamar a atenção.

Nesse capítulo do processo “15+1” prevaleceu o final feliz. Venceu o bem supremo. Nenhuma vida humana foi ingloriamente sacrificada. De mártires está o “panteão” nacional cheio. Agora, falta esperar pelo julgamento e acreditar que os operadores de direitos são movidos apenas pela nobre finalidade de fazer justiça. Nessa base cairiam por terra receios de interferências políticas inadmissíveis num estado democrático e de direito.

Uma fasquia considerável da população julga-se munida de indicadores para duvidar da separação efectiva de poderes em Angola. Os apologistas do funcionamento linear das instituições democráticas no país exultaram com a “desmistificação” a partir de um esclarecimento julgado contundente em círculos simpáticos aos poderes públicos. O apoio veio de onde menos se esperava: de Portugal. António Martins da Cruz, embaixador de carreira, deu explicações inquestionáveis à luz do direito internacional no que concerne a particularidade de, em Angola, Luaty Beirão não poder recorrer a protecção consular de Portugal. Dispenso a análise do debate entre o embaixador e Rafael Marques porque a versão integral disponível na internet permite aos espectadores tirarem ilações próprias, na medida em que oferece perspectiva mais ampla do que a dos vídeos editados.

Quem acompanhou o “tira-teimas” promovido pela cadeia televisiva portuguesa TVI ficou a saber por intermédio do diplomata que a justiça angolana funciona melhor do que a de Portugal. Pelo menos teria superado a da ex-potência colonizadora em relação a José Sócrates, tendo como elemento comparativo o processo movido pelo Estado contra Luaty Beirão e companheiros. O embaixador foi incisivo ao desvalorizar as críticas quanto ao poder judicial angolano. Citou como exemplo de independência o facto de nos últimos três anos o Tribunal Supremo angolano ter condenado dezassete vezes o Estado “a pagar indemnizações fortíssimas”, inclusive em penas que condenavam responsáveis de departamentos ministeriais. Na óptica do diplomata português, a constatação atesta a existência de liberdade do poder judicial em Angola e que este não é condicionado pelo poder político.

Factos são factos. São inegáveis. Na falta de outros elementos de comparação, não deve ser crime perguntar se os citados reflectem a realidade global do nosso sistema judicial. Como o tempo continua a ser o melhor mestre, fica o benefício da dúvida enquanto se aguarda pelo julgamento. Até lá, acreditar ou não vai ser a questão. Acreditar na irrefutabilidade das declarações no embaixador, acreditar nas intenções genuínas dos activistas e no que se quiser para analisar os complexos dados do xadrez político nacional. Aproveitando a deixa, muita gente acredita que a existência de palcos consagrados pelas normas internacionais para discutir questões de direitos humanos não invalida a abordagem pública da temática. Tanto pode ser no Rossio, em Lisboa, na Praça da Independência, em Luanda, ou em outro qualquer lugar do mundo. Direitos humanos conformam valores universais, independentemente do lugar em que se esmiuçam os argumentos. No mesmo espaço cabem a liberdade de expressão, liberdade de imprensa, o direito de aplaudir e de livremente discordar.

Na semana finda, a cultura da intolerância ganhou maior visibilidade nas redes inundadas de expressões como idiota, ignorante e vendilhões da pátria. O citado debate teve o poder de desenterrar adjectivos e de reciclar rótulos. Ódios mal resolvidos acompanharam a esquentada guerra das palavras. Porquê se está tudo bem e se todos quantos ousam pensar diferente obedecem a agendas externas para desestabilizar Angola? Podem até existir algures programas menos ortodoxos. Acontece porém que o impacto de tais cabalas se situariam perto da nulidade se os deveres de casa forem bem feitos. As hipotéticas mãos desestabilizadoras teriam escassa margem de manobra para dar vazão ao velho ditado segundo o qual “é no aproveitar que está o ganho”.

A intervenção televisiva em defesa de Angola deixou uma curiosidade no ar. O aclamado embaixador António Martins da Cruz é tão português quanto a euro-deputada Ana Gomes, autora de relatórios que questionam a situação dos direitos humanos em Angola. Que critérios colocam o primeiro na lista de aliados da razão e a segunda na de personalidades acusadas de ingerência em assuntos do Estado soberano de Angola?

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