Luísa
Rogério – Rede Angola, opinião
A
semana começou com a boa notícia da suspensão da greve de fome por Luaty
Beirão. Depois de 36 dias a manifestar “um comportamento diferente em relação
aos alimentos” o activista voltou a comer para enorme satisfação dos
familiares, amigos e admiradores. Suspiraram também de alívio pessoas que,
apesar de não se reverem propriamente nas causas de Luaty, enalteceram a sua
determinação ao levar a cabo aquilo que, para a maioria dos seres comuns, não
passaria de um frustrado ensaio sobre a fome. As orações não foram em vão. A
seguir ao fim do “comportamento diferente” as redes foram inundadas de ovações.
Não faltaram, porém, as teorias inusitadas. Os absurdos incluíram suspeitas de
alimentação na calada da noite no quadro de um esquema de sobrevivência concebido
ao detalhe por Luaty apenas para chamar a atenção.
Nesse
capítulo do processo “15+1” prevaleceu o final feliz. Venceu o bem supremo.
Nenhuma vida humana foi ingloriamente sacrificada. De mártires está o “panteão”
nacional cheio. Agora, falta esperar pelo julgamento e acreditar que os
operadores de direitos são movidos apenas pela nobre finalidade de fazer
justiça. Nessa base cairiam por terra receios de interferências políticas
inadmissíveis num estado democrático e de direito.
Uma
fasquia considerável da população julga-se munida de indicadores para duvidar
da separação efectiva de poderes em Angola. Os apologistas do funcionamento
linear das instituições democráticas no país exultaram com a “desmistificação”
a partir de um esclarecimento julgado contundente em círculos simpáticos aos
poderes públicos. O apoio veio de onde menos se esperava: de Portugal. António
Martins da Cruz, embaixador de carreira, deu explicações inquestionáveis à luz
do direito internacional no que concerne a particularidade de, em Angola, Luaty
Beirão não poder recorrer a protecção consular de Portugal. Dispenso a análise
do debate entre o embaixador e Rafael Marques porque a versão integral
disponível na internet permite aos espectadores tirarem ilações próprias, na
medida em que oferece perspectiva mais ampla do que a dos vídeos editados.
Quem
acompanhou o “tira-teimas” promovido pela cadeia televisiva portuguesa TVI
ficou a saber por intermédio do diplomata que a justiça angolana funciona
melhor do que a de Portugal. Pelo menos teria superado a da ex-potência
colonizadora em relação a José Sócrates, tendo como elemento comparativo o
processo movido pelo Estado contra Luaty Beirão e companheiros. O embaixador
foi incisivo ao desvalorizar as críticas quanto ao poder judicial angolano.
Citou como exemplo de independência o facto de nos últimos três anos o Tribunal
Supremo angolano ter condenado dezassete vezes o Estado “a pagar indemnizações
fortíssimas”, inclusive em penas que condenavam responsáveis de departamentos
ministeriais. Na óptica do diplomata português, a constatação atesta a
existência de liberdade do poder judicial em Angola e que este não é
condicionado pelo poder político.
Factos
são factos. São inegáveis. Na falta de outros elementos de comparação, não deve
ser crime perguntar se os citados reflectem a realidade global do nosso sistema
judicial. Como o tempo continua a ser o melhor mestre, fica o benefício da
dúvida enquanto se aguarda pelo julgamento. Até lá, acreditar ou não vai ser a
questão. Acreditar na irrefutabilidade das declarações no embaixador, acreditar
nas intenções genuínas dos activistas e no que se quiser para analisar os
complexos dados do xadrez político nacional. Aproveitando a deixa, muita gente
acredita que a existência de palcos consagrados pelas normas internacionais
para discutir questões de direitos humanos não invalida a abordagem pública da
temática. Tanto pode ser no Rossio, em Lisboa, na Praça da Independência, em
Luanda, ou em outro qualquer lugar do mundo. Direitos humanos conformam valores
universais, independentemente do lugar em que se esmiuçam os argumentos. No
mesmo espaço cabem a liberdade de expressão, liberdade de imprensa, o direito
de aplaudir e de livremente discordar.
Na
semana finda, a cultura da intolerância ganhou maior visibilidade nas redes
inundadas de expressões como idiota, ignorante e vendilhões da pátria. O citado
debate teve o poder de desenterrar adjectivos e de reciclar rótulos. Ódios mal
resolvidos acompanharam a esquentada guerra das palavras. Porquê se está tudo
bem e se todos quantos ousam pensar diferente obedecem a agendas externas para
desestabilizar Angola? Podem até existir algures programas menos ortodoxos.
Acontece porém que o impacto de tais cabalas se situariam perto da nulidade se
os deveres de casa forem bem feitos. As hipotéticas mãos desestabilizadoras
teriam escassa margem de manobra para dar vazão ao velho ditado segundo o qual
“é no aproveitar que está o ganho”.
A
intervenção televisiva em defesa de Angola deixou uma curiosidade no ar. O
aclamado embaixador António Martins da Cruz é tão português quanto a
euro-deputada Ana Gomes, autora de relatórios que questionam a situação dos
direitos humanos em Angola. Que critérios colocam o primeiro na lista de
aliados da razão e a segunda na de personalidades acusadas de ingerência em
assuntos do Estado soberano de Angola?
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