domingo, 1 de novembro de 2015

Guiné-Bissau. DEZ LIÇÕES DA CRISE POLÍTICA



Pedro Rosa Có* - O Democrata, opinião

O país esteve cerca de dois meses sem Governo efectivo (teve Governo de gestão), resultado da exoneração pelo Presidente da República (PR) do então Primeiro-ministro (PM), Domingos Simões Pereira (DSP), e da nomeação do Baciro Djá, seguida da exoneração deste pelo PR, em observância do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que, em sede Constitucional, declarou inconstitucional o Decreto que o nomeara para o posto. O mesmo STJ deferiu um requerimento do PAIGC que reclamou a atribuição de poderes de gestão ao Governo do DSP e fez, assim, repristinar o Decreto que exonerara o DSP, que se manteve vigente como o acto jurídico-constitucional que conferiu poderes de gestão corrente ao Governo do DSP. Só que o DSP durou pouco nesta qualidade, porque foi logo nomeado o Carlos Correia. Não discuto nem o Acórdão nem o referido Despacho do STJ. Tomo-os como dados de facto.

Da crise resultam várias lições, que enumeramos sem nenhuma ordem de importância:

Primeira, lidamos mal com o diálogo. Não fosse isso, não teria feito sentido a polémica a volta da convocação de Partidos com assento parlamentar e do Conselho de Estado pelo PR para audições, por se tratar de um instrumento constitucional formal e solene de diálogo político entre os Partidos e o PR quando este pretende demitir o PM ou dissolver a ANP. Ainda que os partidos discordassem (como era o caso) da intenção do PR, poderiam se poupar a expedientes que só acabaram por prejudicar o diálogo e/ou agudizar a crise.

Segunda, o PR tem fortes poderes de demissão (a tal bomba atómica) e limitados poderes na nomeação, pelo menos nos termos do Acórdão do STJ. Pode vetar mas não pode substituir. Por isso se diz que a nomeação do PM e do Governo resulta da negociação política entre os Partidos, e entre estes e o PR. E isso é assim mesmo quando há maiorias confortáveis, porque, no mínimo, o PR pode sempre vetar. Dessa negociação política resultou o Governo ora empossado.

Terceira, os Partidos esquivaram-se de fazer uso do seu principal instrumento político-constitucional de contrapeso à decisão do PR de nomear um PM que não querem, o Baciro Djá, que era provocar a queda deste, chumbando o seu Programa na ANP, que seria apresentado dentro de 60 dias. Preferiram transferir a solução de um problema político para os Tribunais, com o risco de os politizar ou, pelo menos, os envolver numa disputa com cariz essencialmente político partidária.

Quarta, voltamos a demonstrar a nossa propensão para internacionalizar crises internas, ao submetermos, sem hesitar, à mediação externa, sinal claro da nossa crónica incapacidade para encontrar soluções endógenas. As nossas crises servem sempre de pretexto para os outros exercitarem o seu poder de influência sobre o nosso país, para tirar da letargia algumas organizações sem agenda clara, e para dar azo a que a Guiné-Bissau seja o centro de “confronto” entre a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) e a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), e entre países que tutelam ou lutam pela tutela de ambas as organizações.

Quinta, a cultura de matchundadi (bravura, força) ainda prevalece. A palavra de ordem é o confronto. Nona madjal (vamos esmagá-lo ou cair em cima dele). Não utilizamos a linguagem do diálogo. São escassas as expressões como “discordar”, “respeitar”, “pedir a reconsideração ou melhor ponderação” ou a algo que favoreça a manutenção do clima de diálogo. Já nos habituamos a “condenar com veemência”, a “repudiar fortemente ou com todas as letras e forças”, a caracterizar de “imponderada”, “mentiras repetidas”, “agendas obscuras”, ou a adjectivar da pior forma possível as opções dos outros, para no fim pedir o diálogo. Pede-se “diálogo” com linguagem de “guerra”.

Sexta, a sociedade civil organizada, louvando-se embora o seu papel na defesa da democracia e do Estado de direito, não se resguardou o suficiente para manter o seu papel de mediador. Excepção feita às autoridades religiosas (cristãs, muçulmanas e o poder tradicional). Lembro-me que depois do 12 de Abril de 2012, a mesma sociedade civil não conseguiu visitar o Carlos Gomes Jr e Raimundo Pereira, para saber se estavam de vida e em que condições. Foi necessário esperarmos pela Cruz Vermelha senegalesa para sabermos que estavam de vida e em condições aceitáveis de detenção. Motivo para a nossa Sociedade Civil repensar a sua forma de gestão de crises e de relacionamento com as partes.

Sétima, os militares não são o principal problema do país. Normalmente, subordinam-se ao poder político. A insubordinação é excepção. Só intervêm quando forem aliciados. Têm estado acantonados nos quartéis porque não foram chamados para a crise, nem são visados por nenhuma das partes na contenda.

Oitava, a principal reforma a ser feita no país é a do sistema político, em particular dos partidos políticos. A democracia é incompatível com a cultura do inimigo, forjada nos longos séculos de colonização e nos duros anos da luta pela liberação nacional. Na guerrilha, havia inimigos da Luta, do Partido e do Povo, que devem ser eliminados totalmente. Na democracia, há adversários, que só devem ser vencidos democraticamente e a vitória contra eles nunca é total. Em termos de cultura política e democrática, o inimigo continua a povoar a nossa mente. Nas disputas partidárias, os concorrentes se vêm como inimigos. Depois das eleições, mantém esse estado de alma.

Nona, os problemas internos requererem soluções internas. A Comunidade internacional não tem Decreto (acto do PR), não vota na Assembleia Nacional Popular (acto de Deputados), não produz Acórdãos (acto do STJ) nem propõe nomes para PM (acto de Partidos). Portanto, a nacionalidade das soluções ficou clara quando, não obstante as intervenções ao mais alto nível de parceiros e da comunidade internacional, caiu o Governo do DSP, e nomeado o do Baciro Djá, seguido do Acórdão do STJ que declarou inconstitucional a nomeação do Baciro Djá, e, por fim, foi nomeado Carlos Correia sob proposta do PAIGC. Tudo isso dá para perguntar, com devido respeito e consideração para com a pessoa, que ama a Guiné e os guineenses: qual foi a novidade que o Presidente Obasanjo levou a Bissau? Dizer ao PAIGC para trocar o DSP pelo Carlos Correia, e ao PR para aceitar o nome proposto pelo PAIGC, ou ainda dizer ao PAIGC para desistir da entrada ou permanência de alguns nomes no Governo acabado de empossar?!

Décima, a crise plasmou que, apesar de tudo, a democracia funciona minimamente no nosso país. Os militares foram afastados ou se afastaram da contenda. Os mecanismos democráticos e legais funcionaram. O STJ decidiu, o PR acatou, e o PAIGC, ciente que o STJ não declarou inconstitucional a demissão do DSP, voltou ao PR com o Carlos Correia, o que facilitou o início de saída da crise. Tudo soluções internas, próprias de um país democrático e de direito, mas que para todos os efeitos têm a chancela aparente de terem vindo do exterior.

Repensemos a submissão desnecessária à tutela externa, que expõe o país e os guineenses a uma publicidade internacional negativa. Temos que pensar com as nossas cabeças, marchar com os nossos próprios pés, dizia o fundador das nacionalidades guineense e cabo-verdiana, o Amílcar Cabral.

 *Jurista, na foto

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