Pedro
Rosa Có* - O Democrata, opinião
O
país esteve cerca de dois meses sem Governo efectivo (teve Governo de gestão),
resultado da exoneração pelo Presidente da República (PR) do então
Primeiro-ministro (PM), Domingos Simões Pereira (DSP), e da nomeação do Baciro
Djá, seguida da exoneração deste pelo PR, em observância do acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça (STJ) que, em sede Constitucional, declarou
inconstitucional o Decreto que o nomeara para o posto. O mesmo STJ deferiu um
requerimento do PAIGC que reclamou a atribuição de poderes de gestão ao Governo
do DSP e fez, assim, repristinar o Decreto que exonerara o DSP, que se manteve
vigente como o acto jurídico-constitucional que conferiu poderes de gestão
corrente ao Governo do DSP. Só que o DSP durou pouco nesta qualidade, porque
foi logo nomeado o Carlos Correia. Não discuto nem o Acórdão nem o referido
Despacho do STJ. Tomo-os como dados de facto.
Da
crise resultam várias lições, que enumeramos sem nenhuma ordem de importância:
Primeira,
lidamos mal com o diálogo. Não fosse isso, não teria feito sentido a polémica a
volta da convocação de Partidos com assento parlamentar e do Conselho de Estado
pelo PR para audições, por se tratar de um instrumento constitucional formal e
solene de diálogo político entre os Partidos e o PR quando este pretende
demitir o PM ou dissolver a ANP. Ainda que os partidos discordassem (como era o
caso) da intenção do PR, poderiam se poupar a expedientes que só acabaram por
prejudicar o diálogo e/ou agudizar a crise.
Segunda,
o PR tem fortes poderes de demissão (a tal bomba atómica) e limitados poderes
na nomeação, pelo menos nos termos do Acórdão do STJ. Pode vetar mas não pode
substituir. Por isso se diz que a nomeação do PM e do Governo resulta da
negociação política entre os Partidos, e entre estes e o PR. E isso é assim
mesmo quando há maiorias confortáveis, porque, no mínimo, o PR pode sempre
vetar. Dessa negociação política resultou o Governo ora empossado.
Terceira,
os Partidos esquivaram-se de fazer uso do seu principal instrumento
político-constitucional de contrapeso à decisão do PR de nomear um PM que não
querem, o Baciro Djá, que era provocar a queda deste, chumbando o seu Programa
na ANP, que seria apresentado dentro de 60 dias. Preferiram transferir a
solução de um problema político para os Tribunais, com o risco de os politizar
ou, pelo menos, os envolver numa disputa com cariz essencialmente político
partidária.
Quarta,
voltamos a demonstrar a nossa propensão para internacionalizar crises internas,
ao submetermos, sem hesitar, à mediação externa, sinal claro da nossa crónica
incapacidade para encontrar soluções endógenas. As nossas crises servem sempre
de pretexto para os outros exercitarem o seu poder de influência sobre o nosso
país, para tirar da letargia algumas organizações sem agenda clara, e para dar
azo a que a Guiné-Bissau seja o centro de “confronto” entre a Comunidade
Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) e a Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa (CPLP), e entre países que tutelam ou lutam pela tutela de
ambas as organizações.
Quinta,
a cultura de matchundadi (bravura, força) ainda prevalece. A palavra de ordem é
o confronto. Nona madjal (vamos esmagá-lo ou cair em cima dele). Não utilizamos
a linguagem do diálogo. São escassas as expressões como “discordar”,
“respeitar”, “pedir a reconsideração ou melhor ponderação” ou a algo que
favoreça a manutenção do clima de diálogo. Já nos habituamos a “condenar com
veemência”, a “repudiar fortemente ou com todas as letras e forças”, a
caracterizar de “imponderada”, “mentiras repetidas”, “agendas obscuras”, ou a
adjectivar da pior forma possível as opções dos outros, para no fim pedir o
diálogo. Pede-se “diálogo” com linguagem de “guerra”.
Sexta,
a sociedade civil organizada, louvando-se embora o seu papel na defesa da
democracia e do Estado de direito, não se resguardou o suficiente para manter o
seu papel de mediador. Excepção feita às autoridades religiosas (cristãs,
muçulmanas e o poder tradicional). Lembro-me que depois do 12 de Abril de 2012,
a mesma sociedade civil não conseguiu visitar o Carlos Gomes Jr e Raimundo
Pereira, para saber se estavam de vida e em que condições. Foi necessário
esperarmos pela Cruz Vermelha senegalesa para sabermos que estavam de vida e em
condições aceitáveis de detenção. Motivo para a nossa Sociedade Civil repensar
a sua forma de gestão de crises e de relacionamento com as partes.
Sétima,
os militares não são o principal problema do país. Normalmente, subordinam-se
ao poder político. A insubordinação é excepção. Só intervêm quando forem
aliciados. Têm estado acantonados nos quartéis porque não foram chamados para a
crise, nem são visados por nenhuma das partes na contenda.
Oitava,
a principal reforma a ser feita no país é a do sistema político, em particular
dos partidos políticos. A democracia é incompatível com a cultura do inimigo,
forjada nos longos séculos de colonização e nos duros anos da luta pela
liberação nacional. Na guerrilha, havia inimigos da Luta, do Partido e do Povo,
que devem ser eliminados totalmente. Na democracia, há adversários, que só
devem ser vencidos democraticamente e a vitória contra eles nunca é total. Em
termos de cultura política e democrática, o inimigo continua a povoar a nossa
mente. Nas disputas partidárias, os concorrentes se vêm como inimigos. Depois
das eleições, mantém esse estado de alma.
Nona,
os problemas internos requererem soluções internas. A Comunidade internacional
não tem Decreto (acto do PR), não vota na Assembleia Nacional Popular (acto de
Deputados), não produz Acórdãos (acto do STJ) nem propõe nomes para PM (acto de
Partidos). Portanto, a nacionalidade das soluções ficou clara quando, não
obstante as intervenções ao mais alto nível de parceiros e da comunidade
internacional, caiu o Governo do DSP, e nomeado o do Baciro Djá, seguido do
Acórdão do STJ que declarou inconstitucional a nomeação do Baciro Djá, e, por
fim, foi nomeado Carlos Correia sob proposta do PAIGC. Tudo isso dá para
perguntar, com devido respeito e consideração para com a pessoa, que ama a
Guiné e os guineenses: qual foi a novidade que o Presidente Obasanjo levou a
Bissau? Dizer ao PAIGC para trocar o DSP pelo Carlos Correia, e ao PR para
aceitar o nome proposto pelo PAIGC, ou ainda dizer ao PAIGC para desistir da
entrada ou permanência de alguns nomes no Governo acabado de empossar?!
Décima,
a crise plasmou que, apesar de tudo, a democracia funciona minimamente no nosso
país. Os militares foram afastados ou se afastaram da contenda. Os mecanismos
democráticos e legais funcionaram. O STJ decidiu, o PR acatou, e o PAIGC,
ciente que o STJ não declarou inconstitucional a demissão do DSP, voltou ao PR
com o Carlos Correia, o que facilitou o início de saída da crise. Tudo soluções
internas, próprias de um país democrático e de direito, mas que para todos os
efeitos têm a chancela aparente de terem vindo do exterior.
Repensemos a submissão desnecessária à tutela externa, que expõe o país e os guineenses a uma publicidade internacional negativa. Temos que pensar com as nossas cabeças, marchar com os nossos próprios pés, dizia o fundador das nacionalidades guineense e cabo-verdiana, o Amílcar Cabral.
*Jurista,
na foto
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