José
Eduardo Agualusa – Rede Angola, opinião
O
dedo que aperta o gatilho da revolução é sempre o do ditador. Eis uma regra
quase sem excepção. Muammar Kadhafi refugiado num esgoto. Muammar Kadhafi com a
cabeça descoberta, o cabelo em desalinho, o rosto coberto de sangue e um ar
estremunhado, espantado, tentando afastar com as mãos os duros socos que o
atingem. Estas são imagens que tiram o sono a todos os ditadores do planeta.
A
verdade é que quem colocou Muammar Kadhafi em Sirte, naquele esgoto, na manhã
do dia 20 de Outubro de 2011, foi o próprio Muammar Kadhafi.
Em
Fevereiro de 2011 surgiram na Líbia as primeiras manifestações, exigindo o
afastamento do ditador. O que fez Kadhafi? Respondeu com extrema violência,
recorrendo a mercenários, e dando ordens à aviação para bombardear os
manifestantes. Centenas de pessoas foram assassinadas logo nos primeiros dias.
Kadhafi
foi um ditador cruel, frequentemente errático e delirante, que durante os 42
anos que permaneceu no poder mandou prender, torturar e assassinar milhares de
adversários políticos. Kadhafi foi acusado de sequestro e violação de centenas
de mulheres, muitas delas menores de idade. “O Harém de Kadhadi”, da jornalista
francesa Annick Cojean, documenta a utilização da violação como arma política
por Kadhafi. A figura central do livro é uma mulher que, com apenas 15 anos foi
sequestrada e transformada em escrava sexual do ditador – violada, espancada,
forçada a embriagar-se e a cheirar cocaína – até ser finalmente integrada na
famosa guarda-presidencial feminina.
Não
há bela sem senão nem monstro sem virtudes. Kadhafi obteve alguns sucessos
notáveis na sua governação. Investiu por exemplo no ensino básico, conseguindo
alfabetizar a totalidade da população líbia. As primeiras manifestações na
Líbia apelavam sobretudo ao combate contra a corrupção e exigiam mais
liberdade. Kadhafi, que nessa época já fizera as pazes com o Ocidente e com os
Estados Unidos, poderia ter dado início a um processo de democratização do
regime, abrindo as portas ao diálogo com todas as forças políticas e sociais,
convocando eleições livres e justas, e afastando-se a seguir. Ao longo desse
processo poderia ter negociado uma amnistia geral para si, para a sua família e
para os seus seguidores. Como todos sabemos, fez a opção contrária e, dessa
forma, apertou o gatilho da revolução.
Não
pode haver lição mais explícita.
A
cegueira de muitas ditaduras que, à beira do fim, se recusam a ver o evidente,
e se fecham e aumentam os níveis de repressão, ao invés de se abrirem, lembra
muito a famosa história do lacrau e da rã: o lacrau pede à rã que o deixe
atravessar o rio, montado às cavalitas dela. A rã hesita: “Não, porque me podes
matar” – ao que o lacrau argumenta, muito sensatamente, que, matando-a, morrem
os dois. A rã pensa um pouco, concorda, diz-lhe que suba. A meio da travessia,
porém, o lacrau crava-lhe o ferrão. “Porque fizeste isso?”, queixa-se a rã:
“agora morreremos os dois.” Ao que o lacrau responde: “Não consegui evitar. É a
minha natureza.”
Quanto
a mim, prefiro acreditar que mesmo o mais louco dos louco dos lacraus é sempre
capaz de contrariar a sua natureza assassina, e de escolher a opção da vida. A
opção que o salve a si e aos outros. No fundo, acredito que a bondade da rã
pode ainda resgatar o lacrau.
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