sexta-feira, 13 de novembro de 2015

O DEDO QUE APERTA O GATILHO DA REVOLUÇÃO - Agualusa



José Eduardo Agualusa – Rede Angola, opinião

O dedo que aperta o gatilho da revolução é sempre o do ditador. Eis uma regra quase sem excepção. Muammar Kadhafi refugiado num esgoto. Muammar Kadhafi com a cabeça descoberta, o cabelo em desalinho, o rosto coberto de sangue e um ar estremunhado, espantado, tentando afastar com as mãos os duros socos que o atingem. Estas são imagens que tiram o sono a todos os ditadores do planeta.

A verdade é que quem colocou Muammar Kadhafi em Sirte, naquele esgoto, na manhã do dia 20 de Outubro de 2011, foi o próprio Muammar Kadhafi.

Em Fevereiro de 2011 surgiram na Líbia as primeiras manifestações, exigindo o afastamento do ditador. O que fez Kadhafi? Respondeu com extrema violência, recorrendo a mercenários, e dando ordens à aviação para bombardear os manifestantes. Centenas de pessoas foram assassinadas logo nos primeiros dias.

Kadhafi foi um ditador cruel, frequentemente errático e delirante, que durante os 42 anos que permaneceu no poder mandou prender, torturar e assassinar milhares de adversários políticos. Kadhafi foi acusado de sequestro e violação de centenas de mulheres, muitas delas menores de idade. “O Harém de Kadhadi”, da jornalista francesa Annick Cojean, documenta a utilização da violação como arma política por Kadhafi. A figura central do livro é uma mulher que, com apenas 15 anos foi sequestrada e transformada em escrava sexual do ditador – violada, espancada, forçada a embriagar-se e a cheirar cocaína – até ser finalmente integrada na famosa guarda-presidencial feminina.

Não há bela sem senão nem monstro sem virtudes. Kadhafi obteve alguns sucessos notáveis na sua governação. Investiu por exemplo no ensino básico, conseguindo alfabetizar a totalidade da população líbia. As primeiras manifestações na Líbia apelavam sobretudo ao combate contra a corrupção e exigiam mais liberdade. Kadhafi, que nessa época já fizera as pazes com o Ocidente e com os Estados Unidos, poderia ter dado início a um processo de democratização do regime, abrindo as portas ao diálogo com todas as forças políticas e sociais, convocando eleições livres e justas, e afastando-se a seguir. Ao longo desse processo poderia ter negociado uma amnistia geral para si, para a sua família e para os seus seguidores. Como todos sabemos, fez a opção contrária e, dessa forma, apertou o gatilho da revolução.

Não pode haver lição mais explícita.

A cegueira de muitas ditaduras que, à beira do fim, se recusam a ver o evidente, e se fecham e aumentam os níveis de repressão, ao invés de se abrirem, lembra muito a famosa história do lacrau e da rã: o lacrau pede à rã que o deixe atravessar o rio, montado às cavalitas dela. A rã hesita: “Não, porque me podes matar” – ao que o lacrau argumenta, muito sensatamente, que, matando-a, morrem os dois. A rã pensa um pouco, concorda, diz-lhe que suba. A meio da travessia, porém, o lacrau crava-lhe o ferrão. “Porque fizeste isso?”, queixa-se a rã: “agora morreremos os dois.” Ao que o lacrau responde: “Não consegui evitar. É a minha natureza.”

Quanto a mim, prefiro acreditar que mesmo o mais louco dos louco dos lacraus é sempre capaz de contrariar a sua natureza assassina, e de escolher a opção da vida. A opção que o salve a si e aos outros. No fundo, acredito que a bondade da rã pode ainda resgatar o lacrau.

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