terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Portugal. SE A MODERAÇÃO PAGASSE TAXA…



Mariana Mortágua – Jornal de Notícias, opinião

Vivemos num país de moderação. Radical, só a Esquerda, porque a Direita é ponderada, centrista, sensata, enfim, moderada. Todos reivindicam o 25 de Abril, a democracia e a liberdade. Todos erguem a bandeira dos valores constitucionais, mesmo tendo votado contra a constituição, mesmo achando o texto um pouco fora de moda. Neste país, em discurso, todos são a favor da educação pública, do Serviço Nacional de Saúde e da Segurança Social.

Vejamos o caso da morte trágica do doente de S. José por falta de assistência médica especializada. Não há quem não reze agora odes ao SNS e à sua importância nacional. Mas há quem, como Marcelo Rebelo de Sousa, tenha votado contra a sua criação. E há quem, como Marcelo Rebelo de Sousa, ao longo dos últimos quatro anos, tenha olhado para o lado de cada vez que mais um milhão era desinvestido na saúde pública. E há quem, como o antigo ministro da Saúde Paulo Macedo, tenha ignorado os quatro alertas feitos só pelo Bloco de Esquerda sobre a situação específica do S. José.

Dissemo-lo e repetimo-lo à exaustão: a austeridade mata. Não é um slogan ou demagogia. É a verdade, que se revelou da forma mais brutal neste caso que chocou o país, mas que acontece todos os dias. Acontece, em diferente níveis de gravidade, nos hospitais, nas casas dos idosos sem dinheiro para aquecimento ou medicamentos, nas vidas dos que perderam o emprego e o apoio social no momento em que mais precisavam. São o outro lado da moeda do ajustamento orçamental que tanto orgulha PSD e CDS.

A defesa do Estado social não é um estado de espírito. É, além de uma conceção de sociedade que há muito a Direita abandonou, uma prática. Não é compatível com as tentativas de privatização e concessão de que tem sido alvo (também, não vale a pena esconder, por parte de governos PS, mas sobretudo nos últimos quatro anos). Não é compatível com a transferência de hospitais para as misericórdias. Não é certamente compatível com mais de 1500 milhões de euros de cortes entre 2011 e 2014. Vale a pena ler, a este respeito, o estudo "O Sistema de Saúde Português no Tempo da Troika: A Experiência dos Médicos", feito no ISCTE, divulgado em junho. Entre 3000 médicos entrevistados, 80% dizem que os cortes afetaram os cuidados prestados, 40% referem já ter tido falta de medicamentos, 23% já deixaram de realizar técnicas invasivas por falta de material disponível, e 60% afirmam que aumentou o abandono de técnicas terapêuticas por parte dos doentes por motivos económicos.

Enquanto, depois do desastre, todos fazem juras de amor ao SNS, não há, à Direita, quem se responsabilize, ou responsabilize a troika, pelo caos que deixou e pelas vidas que pôs em risco. Não há, à Direita, quem faça a autocrítica da austeridade. Não há, à Direita, quem (no mínimo) tenha a decência de dizer ao que vem e o que propõe: um sistema de saúde reduzido ao básico para os mais pobres, e um negócio florescente de hospitais e clínicas privadas. Se não vivêssemos num país de cínica moderação, diria que esta é a ideia mais radical de todas.

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