Mariana
Mortágua – Jornal de Notícias, opinião
Vivemos
num país de moderação. Radical, só a Esquerda, porque a Direita é ponderada,
centrista, sensata, enfim, moderada. Todos reivindicam o 25 de Abril, a
democracia e a liberdade. Todos erguem a bandeira dos valores constitucionais,
mesmo tendo votado contra a constituição, mesmo achando o texto um pouco fora
de moda. Neste país, em discurso, todos são a favor da educação pública, do
Serviço Nacional de Saúde e da Segurança Social.
Vejamos
o caso da morte trágica do doente de S. José por falta de assistência médica
especializada. Não há quem não reze agora odes ao SNS e à sua importância
nacional. Mas há quem, como Marcelo Rebelo de Sousa, tenha votado contra a sua
criação. E há quem, como Marcelo Rebelo de Sousa, ao longo dos últimos quatro
anos, tenha olhado para o lado de cada vez que mais um milhão era desinvestido
na saúde pública. E há quem, como o antigo ministro da Saúde Paulo Macedo,
tenha ignorado os quatro alertas feitos só pelo Bloco de Esquerda sobre a
situação específica do S. José.
Dissemo-lo
e repetimo-lo à exaustão: a austeridade mata. Não é um slogan ou demagogia. É a
verdade, que se revelou da forma mais brutal neste caso que chocou o país, mas
que acontece todos os dias. Acontece, em diferente níveis de gravidade, nos
hospitais, nas casas dos idosos sem dinheiro para aquecimento ou medicamentos,
nas vidas dos que perderam o emprego e o apoio social no momento em que mais
precisavam. São o outro lado da moeda do ajustamento orçamental que tanto
orgulha PSD e CDS.
A
defesa do Estado social não é um estado de espírito. É, além de uma conceção de
sociedade que há muito a Direita abandonou, uma prática. Não é compatível com
as tentativas de privatização e concessão de que tem sido alvo (também, não
vale a pena esconder, por parte de governos PS, mas sobretudo nos últimos
quatro anos). Não é compatível com a transferência de hospitais para as
misericórdias. Não é certamente compatível com mais de 1500 milhões de euros de
cortes entre 2011 e 2014. Vale a pena ler, a este respeito, o estudo "O
Sistema de Saúde Português no Tempo da Troika: A Experiência dos Médicos",
feito no ISCTE, divulgado em junho. Entre 3000 médicos entrevistados, 80% dizem
que os cortes afetaram os cuidados prestados, 40% referem já ter tido falta de
medicamentos, 23% já deixaram de realizar técnicas invasivas por falta de
material disponível, e 60% afirmam que aumentou o abandono de técnicas
terapêuticas por parte dos doentes por motivos económicos.
Enquanto,
depois do desastre, todos fazem juras de amor ao SNS, não há, à Direita, quem
se responsabilize, ou responsabilize a troika, pelo caos que deixou e pelas
vidas que pôs em risco. Não há, à Direita, quem faça a autocrítica da
austeridade. Não há, à Direita, quem (no mínimo) tenha a decência de dizer ao
que vem e o que propõe: um sistema de saúde reduzido ao básico para os mais
pobres, e um negócio florescente de hospitais e clínicas privadas. Se não
vivêssemos num país de cínica moderação, diria que esta é a ideia mais radical
de todas.
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