Com
apoio social e práticas adaptadas aos novos tempos, o Podemos foi capaz de
mudar para sempre a forma de se fazer política na Espanha.
Roberto
Vasques e Rose Segurado, desde Madrid, especial para Carta Maior
Neste
alvorecer de século, como um sopro premonitório daquilo que poderia marcar uma
época de mudança civilizatória, os povos de distintas partes do planeta
lograram mover as estruturas do sistema-mundo político e questionar seus
oligarcas.
O que mal parecia uma suave brisa em Tunes ganhou corpo, atravessou o deserto
e, como um tufão, culminou na Primavera Árabe. Sem perder força, cruzou o
Mediterrâneo, inspirou o surrado povo grego e propiciou o surgimento do
Movimento dos Indignados na Espanha.
Conhecidos como Movimento 15M – em referência à data do início da ocupação da
Porta do Sol (praça central de Madri), 15 de Maio de 2011– os indignados
espanhóis foram a resposta cidadã aos efeitos da crise econômica internacional
sobre aquele povo ibérico. Esse descontentamento, em virtude da dramática
deterioração das condições socioeconômicas, abrirá passo à incorporação de uma
dimensão política a esta crise e resultará no questionamento de velhos
consensos estabelecidos no Pacto da Moncloa. A Instituição Monárquica, o
Concordato com a Igreja Católica, a questão territorial (e suas tensões
independentistas) eo modelo de representação política (partidos, seus líderes e
a legislação eleitoral) eregidos na Constituição de 1978 serão postos em cheque
Essa contundente interpelação cidadã ao status quo advogaria por mais
democracia e participação política e revelaria o profundo mal-estar social com
a classe política (principalmente dos dois grandes partidos), identificada como
autocentrada e corrupta. Palavras de ordem como “Lo llaman democracia y no lo
es” e “No nos representan” foram entoadas à exaustão por multidões que ocuparam
as praças ao longo de todo o território nacional. Uma crise de legitimidade que
ficaria conhecida como a “crisis del Régimen”.
Entretanto, dado seu caráter eminentemente multitudinário e autogestionário,
assim como sua desconfiança com o sistema político, o 15M não vislumbrou em sua
agenda a construção de uma alternativa política que pudesse canalizar
institucionalmente suas demandas.
Paradoxalmente, nas eleições presidenciais de novembro de 2011, alguns meses
após o ciclo de manifestações, o Partido Popular conseguiria o seu melhor
resultado desde a redemocratização, alcançando uma maioria absoluta que lhe
permitiria governar sem restrições. Não obstante, em termos nominais, sua
votação seria muito próxima à adquirida nas presidenciais anteriores, de março
de 2008, quando obtivera pouco mais de 10 milhões de votos. O triunfo do PP
resultava portanto, em grande medida, da vertiginosa queda no total de votantes
do PSOE que, com mais de 4 milhões de eleitores perdidos, alcançaria seu pior
resultado desde a redemocratização do país em 1977. A desastrosa gestão da
crise no segundo governo de Zapatero, tanto econômica como política, custaria
caro aos socialistas.
Os biênio subsequente (2012-2013) colocaria em evidência a decomposição do
sistema político vigente. Governo e oposição – assim como os demais
partidos, monarquia, sindicatos patronais e de trabalhadores, meios de comunicação
e demais instituições – promoveram um espetáculo de insensibilidade social e
abuso de velhas práticas políticas para a perplexidade da cidadania.
Aproveitando-se do poder conferido por sua maioria parlamentar, o PP, sob a
escusa de enfrentar a crise e dar conta da herança maldita recebida, poria em
prática um duríssimo ajuste fiscal, assim como um conjunto de medidas
arbitrárias e casuísticas, fragilizando o Estado de Direito, os direitos
humanos, as liberdades civis e a pluralidade política. Autoritário e arrogante,
não por acaso foi o último partido a incorporar, ainda que timidamente e com
muita relutância, as mudanças na forma e na agenda políticas trazidas pelo
Podemos.
O PSOE – aturdido após seu pior resultado eleitoral pós-redemocratização e com
dificuldades de rearticular seu discurso frente às críticas às políticas do
final do Governo Zapatero – não lograva se reoxigenar, elegendo como Secretario
Geral a Alfredo Perez Rubalcaba, velha guarda do partido e último
Vice-Presidente político de Zapatero. Com discurso e imagem vinculados à velha
política, Rubalcaba se mostrou um líder frágil frente ao pacote de maldades
levado adiante pelo governo Rajoy. Não emplacou. Não sem razão, seria
pressionado a renunciar, abrindo espaço para que, em julho de 2014, Pedro
Sanchez, um economista madrileno de 43 anos, assumisse a secretaria geral do
partido. Como a grande maioria dos partidos, o PSOE se via obrigado a seguir o
paradigma imposto por Podemos e iniciar uma operação de “câmbio cosmético”,
acudindo um líder jovem, com discurso jovem, que “jogasse fora a gravata e
dobrasse a mangas da camisa”.
Nessa cruzada, o governo contaria com o total apoio dos setores empresariais
que, por sua vez, exigiriam mais rigor fiscal e flexibilização laboral, sob a
égide de lograr maior competitividade à economia. Os meios de comunicação em
uníssono, com maior ou menor fervor, apoiariam o duríssimo ajuste econômico e
ecoariam o mantra do governo pelo qual a responsabilidade pela crise seria de
todos os espanhóis que “haviam vivido por cima de suas possibilidades” nos anos
que anteriores.
Os principais sindicatos, também debilitados pela crise de legitimidade que
golpeava a todas as instituições democráticas do país, se revelavam sem força
para encampar e liderar as reivindicações das classes trabalhadoras e populares
e se veriam arrastados para a lama, imersos em alguns dos sem número de casos
de corrupção que viriam a luz nesse período.
Simultaneamente, a semente do 15M começava a germinar, principiando o
surgimento de uma série de novos movimentos sociais. Entre eles, merecem
destaque as Marés (“Las Mareas”, em relação a “enxurrada” de pessoas
participantes) contra os cortes em saúde (Maré Branca) e em educação (Maré
Verde), bem como os movimentos a favor dos direitos dos imigrantes (alvo das
políticas xenófobas e racista executadas pelo Governo) e dos desempregados
(desde 2009 a Espanha se depararia com índices de desemprego ao redor de 25% de
sua força de trabalho).
Também merece destaque o Movimento Juventude Sem Futuro – que pôs em evidência
o drama social resultante dos alarmantes índices de desemprego juvenil,
superiores aos 50%, e o consequente processo de emigração massiva sofrido por
aquela que seria reconhecida pela sociedade espanhola como a geração mais preparada
e estuda (gerando outra Maré, a Granate/Lilás) de toda sua história. Das
fileiras deste movimento proveriam, mais adiante, grande parte dos quadros
políticos e militantes do Podemos.
Significativas também, foram as iniciativas populares de apoio aos setores
sociais em risco de pobreza e exclusão social. Segundo dados da Cáritas/Oxfam,
esses setores abarcariam quase 30% da população espanhola. Este drama social
levou, inclusive, ao aparecimento de ações diretas, como o saque a
supermercados na Andaluzia ou os “escraches”, espécie de caricaturas
intimidadoras nas casas dos políticos indentificados como corruptos e
pertencentes à casta.
No entanto, a cara mais visível desses novos movimentos sociais possivelmente
tenha sido assumida pela “PAH”: Plataforma dos Afetados pelas Hipotecas. Espaço
responsável pela articulação e defesa das dezenas de milhares de famílias que
se viram obrigadas a abandonarem suas casas frente à impossibilidade de
honrarem com o pagamento de seus empréstimos imobiliários, em virtude do
estouro da famosa bolha imobiliária que arrasou a Espanha (basta recordar que a
recém eleita prefeita de Barcelona, Ada Colau, era a porta-voz dessa entidade.
Do mesmo modo, diversos líderes das distintas Marés se elegeram vereadores e
deputados estaduais). Esta bolha se caracterizou por um processo através do
qual se generalizava o crédito imobiliário às famílias, a taxas subsidiadas,
mas em condições draconianas (como não prever a dação como amortização da
dívida). Com a crise, se multiplicaram exponencialmente os casos de
descumprimento contratual (inadimplência), levando centenas de milhares de
famílias a devolverem seus imóveis e, ainda assim, continuarem responsáveis
pelo pagamento das dívidas contraídas.
Em decorrência desta perversão contratual, não pouco foram os casos de
suicídios de chefes e chefas de família que – já desmoralizados frente a uma
perversa situação na qual eram socialmente recriminados como únicos
responsáveis pela perda de seus empregos e de suas casas – preferiram tirar
suas vidas para evitar a vergonha social e por acreditar que com isso
diminuiriam o sofrimento de seus familiares ao lhes desobrigar de continuarem a
pagar suas dívidas imobiliárias.
Frente a esta situação, o governo espanhol não demonstraria a menor sensibilidade,
negando-se a discutir a agenda sugerida pela PAH – que advogava a suspensão
temporária dos despejos, a instituição da “dación en pago” nos contratos
hipotecários (ou seja, o cancelamento da dívida mediante a entrega do imóvel) e
a criação de uma política de aluguel social
Se a intransigência foi a regra para as famílias despejadas, com a outra ponta
dos contratos, ou seja, os bancos credores, imperaria a camaradagem. Com a
justificativa de evitar-se um “risco financeiro sistêmico”, o governo aceitaria
ser “resgatado” pela União Europeia, destinando mais de 60 milhões de euros ao
“salvamento” das instituições financeiras credoras. Como resultado, os bancos
seriam beneficiados com generosas quantias a juros ultra-subsidiados (as quais
ainda não se está claro se serão devolvidas) para reequilibrarem seus balanços,
ao mesmo tempo em que seguiam tomando os imóveis de seus credores
inadimplentes, chegando-se a pitoresca situação na qual os bancos se
transformavam em enormes agências imobiliárias, administrando milhares de
imóveis residenciais entre seus ativos .
A situação encontra sua dimensão mais burlesca quando, ao mesmo tempo em que os
cidadãos são responsabilizados pela crise e os bancos perdoados, os escândalos
de corrupção se multiplicam vertiginosamente, maculando ainda mais a já
desgastada imagem dos partidos políticos.
Contudo, até o final de 2013 as mobilizações iniciadas com o 15M e continuadas
pelos novos movimentos sociais não encontrarão alternativas institucionais.
Levada a um ponto insustentável, será a partir de janeiro de 2014 que
começarão a surgir os primeiros sinais de alternativa institucional, quando, em
um manifesto intitulado “Mover Ficha”, assinado no Teatro do Bairro de
Lavapiés, é fundado o Podemos.
Evitando renunciar à disputa político-parlamentar e buscando uma alternativa de
regeneração democrática, o Podemos se apresenta a sociedade como um instrumento
que pudesse canalizar institucionalmente o conjunto de demandas surgidas no
calor do 15M: o partido da mudança.
Definindo-se como um Partido-movimento, o Podemos se apresenta como uma
alternativa cidadã para disputar as eleições ao Parlamento Europeu de 25 de
maio de 2015. Sob a batuta de Pablo Iglesias, um jovem professor de ciências
políticas, em apenas 4 meses e com um orçamento irrisório vindo da contribuição
voluntária dos cidadãos, o partido logra inscrever-se na junta eleitoral,
convocar primárias abertas ao conjunto da cidadania e percorrer todo o país
realizando comícios em praças públicas. Contrariando todas as pesquisas, elege
5 eurodeputados
O ponto de partida de sua estratégia – ao tempo que incorporava as
diversas reinvindicações dos movimentos emergidos do 15M em seu programa – foi
a construção de uma nova narrativa social capaz de articular um discurso
através do qual se desacreditava o relato de que “todos somos responsáveis”
pela crise por havermos vividos “por cima de nossas possibilidades” .
Segundo esse novo relato, os verdadeiros responsáveis pela crise seriam, em
primeiro lugar, a casta política (figura de linguagem utilizada pelos líderes
do Podemos), isto é, uma elite política corrupta e envelhecida que manejaria a
coisa pública de forma patrimonialista, como de seus negócios privados se
tratasse, distribuindo entre grupos de empresários e banqueiros amigos
contratos e obras públicas. As críticas também se dirigiriam à subserviência
dos governos do PP e do PSOE aos ditames da Troika (formada pelo Banco Central
Europeu, Comissão Europeia e FMI) e da “Sra Angela Merkel”, responsabilizando-lhes
pela mitigação da soberania nacional e pelo desmantelamento do estado de bem
estar social espanhol em favor dos interesses financeiros dos bancos alemães e
franceses, em detrimento do já empobrecido povo espanhol. Como repetirião a
exaustão os líderes do Podemos: “Se portam como se fossem mordomos de um
minoria de privilegiados, quando deveriam se portar como carteiros dos
cidadãos”.
Além de definir novos responsáveis pela crise, o discurso da Formação “Morada”
(Rouxa) – em referência à cor do partido, homenagem à Bandeira Republicana, na
qual o roxo se somava ao amarelo e vermelha da bandeira monárquica – subverterá
também a velha lógica de confrontação política entre esquerda e direita,
apresentando-se como um partido transversal, orientado a busca de um novo pacto
social no país, realocando a fronteira política entre a defesa dos interesses
de “los de abajo” versus a de “los de arriba”: os interesses do povo frente aos
da Troika, cuidadosamente zelados pela “Casta”.
A difusão desse discurso seguiu uma estratégia revolucionaria em termos de
comunicação política. Se fundamentou em uma utilização estratégica das redes
sociais associada ao trabalho da imagem do jovem líder político que, a partir
de seu programa de debate político em uma emissora de tv à cabo, é alçado a
debatedor habitual de programas de tertúlia política nos principais canais
televisivos. Assim, fez-se conhecido pela maioria do eleitorado e difundiu
amplamente sua mensagem.
O acerto e precisão no diagnóstico e estratégia de comunicação não foram fruto
do acaso. Seus líderes fundadores foram capazes de ler a situação política com
maestria. Atentos às mais avançadas críticas contemporâneas à democracia, os
líderes “podemitas” lograram inclusive estabelecer uma nova forma de fazer política,
ou seja, definiram um conjunto de novas práticas, diferenciando-lhes das
formações políticas tradicionais, a partir de três princípios básicos:
transparência, austeridade e democratização.
A promoção da transparência política se faz através da disponibilização em seu
portal de internet, em tempo real, de toda a movimentação financeira do
partido. Também, ainda que não exigido pelo legislação espanhola, todos os
cargos da direção do partido, bem como seus representantes eleitos,
disponibilizam nesse portal suas declarações de renda.
Quanto à austeridade e exemplaridade no cumprimento da função política, todos
os cargos do Podemos, orgânicos ou eletivos, estão sujeitos a um teto salarial
de três salários mínimos (aproximadamente 1950 euros), assim como a viajar
somente em classe turista e renunciar aos benefícios eventualmente oferecidos
aos seu parlamentares, como planos de pensão e saúde privados, motoristas e
carros oficiais, cartões corporativos entre outros. Também está limitado, pelo
Estatuto do Partido, o período de participação em cargos públicos. Foi definido
um máximo de 8 anos, prorrogáveis por mais quatro, mediante aprovação prévia
pela Assembleia do Partido. Com essa iniciativa, busca-se promover um novo
entendimento do exercício de representação política, por meio do qual a
atividade parlamentar deixa de ser entendida como um fim em si mesma e passa a
ser compreendida como uma contribuição temporal do cidadão à gestão dos temas
coletivos. Ao final do período de dedicação política, o cidadão regressa
à sua carreira profissional, abrindo espaço para que outros participem.
Nesse sentido, resulta paradigmática a proibição estatutária à indicação de
ex-representantes do Podemos a que participem dos Conselhos de Administração de
empresas privadas prestadoras de serviços aos órgãos do estado. Combater essa
situação amplamente condenada socialmente, conhecida como “Portas Giratórias”,
resultou uma das principais bandeiras do Podemos. Vista como caso paradigmático
de tráfico de favores e influências entre os velhos partidos e as grandes
empresas, as Portas giratórias alcançaram sua expressão máxima nas figuras dos
ex-presidentes José Maria Aznar e Felipe González, assim como mais de uma
dezena de ex-ministros dos governos do PP e do PSOE.
Outra medida emblemática diz respeito ao financiamento do partido. Os estatutos
partidários proíbem a solicitação de empréstimos bancários, restringindo seu
financiamento à realização de aporte de militantes e simpatizantes. Nesse
sentido, o Partido aceita doações mensais de pessoas físicas que variam entre 5
e 50 euros, além de recorrem, em cada campanha eleitoral, aos mecanismos de
crowfounding e de microcrédito através do qual os cidadãos emprestam entre 100
e 1.000 euros ao partido, valores devolvidos alguns meses após as eleições
quando, segundo a legislação espanhola, o governo ressarce aos partidos parte
de seus gastos de campanha.
No que tange ao impulso democratizante, o partido se caracteriza por ser o
primeiro a ter eleições abertas através de sua página na internet para todos os
cargos eletivos. Também de forma direta e aberta a toda a cidadania, se elegem
todos os cargos do partido, assim como o programa de governo para as eleições
presidenciais. Da mesma forma, são escolhidos os projetos sociais a serem
financiados pelo fundo partidário formado pelos recursos oriundos da diferença
entre os salários recebidos e o salários pagos (3 salários mínimos) aos cargos
públicos do partido.
Apoio social, discurso e práticas políticas adaptados aos novos tempos e novas
lideranças representando o frescor, preparo e honestidade almejados. Com isso,
o Podemos foi capaz de mudar para sempre a forma de se fazer política na
Espanha. Porém, ainda faltava constituir uma estrutura partidária forte, capaz
de cruzar o país.
Ciente da oportunidade aberta, Pablo Iglesias faz um emblemático discurso na
praça diante do Museu Rainha Sofia, noite do dia 25 de maio de 2014, após
conhecer os resultados das eleições que outorgaram ao partido as surpreendentes
5 vagas no Parlamento Europeu. Contrariando todas as expectativas, Iglesias se
apresenta com semblante sério, cenho franzido e vaticina: “Por enquanto não
cumprimos nosso objetivo de superar nossos adversários... Não nascemos para ser
uma força política testemunhal. Nascemos para ocupar a centralidade do
tabuleiro político, para ganhar. A partir de amanhã vamos trabalhar sem
descanso para tirar a ‘Casta’ do Poder e voltar a por as instituições ao
serviço dos interesses de seus cidadãos”.
A partir de então, começa o processo de criação do Partido. Se de início a
constituição emergencial de uma sigla política foi, nas palavras de seu
líder, um “imperativo legal” que permitiu lançar uma alternativa política às
eleições europeias, agora se tratava de construir coletivamente um partido
capaz de abrigar e representar os novos anseios populares.
Ao longo do segundo semestre de 2014, o Podemos passa por um longo processo
participativo que culmina na Assembleia Cidadã de Vista Alegre (em referência
ao nome análogo do ginásio poliesportivo que acolheu o evento), na qual se
votam, contando com a participação de mais de 100 mil pessoas, os
princípios políticos, éticos e organizativos do partido. Também desse processo,
resulta Pablo Iglesias eleito Secretário Geral do Partido. Além disso, se
definem os “Círculos” como a estrutura de organização de base do partido,
responsável por promover a participação, tanto territorial como temática, e os
rumos da legenda. Centenas de círculos aparecem não só na Espanha como fora do
país.
O Podemos inicia o ano de 2015 consciente do calendário eleitoral. Assim,
convoca uma manifestação multitudinária para o último dia do mês de janeiro.
Iglesias é apoiado por mais de 200 mil pessoas que enfrentam o rigoroso
inverno madrilenho e abarrotam a “Puerta del Sol” em apoio ao Podemos e
ao seu líder.
O partido provoca uma verdadeira reviravolta política. As pesquisas de opinião
são unanimes em apontar seu crescimento exponencial, chegando a leva-lo a quase
30% de intenção de votos para presidente e, por conseguinte, principal força
política do país.
É quando se acendem as luzes de emergência do status quo e o Podemos passa a
ser alvo de um ataque político-midiático orquestrado e sem precedentes. De
jovem simpático que ajudava a regenerar o sistema político (tirando os
políticos de turno de suas zonas de conforto), Iglesias se transforma em uma
verdadeira ameaça aos poderes constituídos, que intensificam o ataque visando
enfraquecê-lo.
Nos dois meses seguintes, o partido e seus líderes ocuparão, de forma negativa,
as manchetes, editoriais e colunas de opinião de todos os grandes jornais e
emissoras de radio e televisão do país. Terão suas vidas minuciosamente
vasculhadas, analisadas e devassadas. Sofrerão golpes diuturnamente, à exaustão.
O fato é que esses ataques surtem parcial efeito, debilitando a jovem
organização. Em menos de dois meses, de líder nas pesquisas de opinião, o
Podemos volta a situar-se como terceira força política. Por sua vez, o pequeno
partido de perfil liberal, “Ciudadanos”, criado em 2006, vai ganhando enorme
respaldo midiático. Em contraposição ao que se chamaria da mudança populista,
em relação ao Podemos, é apresentado ao eleitorado como o verdadeiro
representante da “mudança responsável”. Louvado por empresários, Ciudadanos
viria a dividir o espaço político da mudança. Surfando na onda impulsionada por
Podemos, apresenta-se como alternativa de regeneração democrática, contra a
corrupção sistêmica e pelo frescor político. Seu líder, assim como o de
Podemos, é um jovem político, Albert Rivera, de 35 anos. Esse administrador de
empresas e ex-bancário, que vinha construindo sua carreira política de forma
marginal, há 8 anos, conquista, quase sem esforço, um espaço privilegiado. O
sistema se acalma. O perigo representado pelo Podemos encontrava mais uma
contenção.
Enquanto isso, dava início ao que se convencionou chamar “ciclo político
acelerado”. Em menos de um ano se realizam eleições estaduais na Andaluzia
(março), seguida de eleições municipais em todo o país e na maioria dos estados
(maio), de eleições para o governo da Catalunha (setembro) e se convocam para
20 de dezembro as eleições presidenciais. Descontadas as eleições para
governador na Galícia e no País Basco, ambas previstas para 2016, todos os
demais cargos eletivos do país foram ou serão se submetidos ao escrutínio
popular ainda este ano. Essa situação sem precedentes no país, acentuou ainda
mais o processo de “crise de Régimen”, reforçando o fim do bipartidarismo do
PP-PSOE vigente durante 40 anos.
Desse ciclo eleitoral, resultará um quadro político bastante novo. Ainda que o
PP e PSOE tenham se mantido como maiores partidos, a sangria de votos é
inequívoca. PP e PSOE perderam todas as maiorias absolutas que possuíam nos
governos estaduais (“Comunidades Autónomas”), sendo obrigados a uma experiência
absolutamente nova para governar: pactuar. O Podemos e o Ciudadanos surgem como
forças políticas novas, transformando o bipartidarismo em uma espécie de
tetrapartidarismo. Por conseguinte, seja quem for o ganhador das eleições
presidenciais, se virá obrigado a pactuar para chegar ao “Palacio de la
Moncloa”.
Paralelamente, as gestões dos “gobiernos del cambio” (alianças populares em sua
maioria impulsionadas e encabeçadas por Podemos), como no caso das duas maiores
cidades do país, até aqui muito bem avaliadas pela população, serão um
permanente elemento de pressão e contraponto entre a velha e nova política. Nas
palavras de Iglesias: “Madrid y Barcelona son el motor del cambio”.
No entanto, embora continuem em franca decomposição, os dois grandes partidos
resistem, concentrando ainda a maior parcela de poder, sobretudo nos rincões do
país. Por sua vez, os novos partidos, Podemos e Ciudadanos, continuam se
fortalecendo, sem contudo assumir o protagonismo almejado. O velho não termina
de morrer e o novo não termina de nascer. Nada mais preciso que as palavras de
Gramsci para explicar o momento de transformações no sistema político espanhol.
Há menos de um mês das eleições presidenciais, as perspectivas seguem abertas.
Ainda que as pesquisas apontem para uma vitória do PP, que alcançaria entre 23%
e 27%, o grau de incerteza é grande, deixando aberto o resultado.
A partir de uma campanha eleitoral exemplar, o Podemos retomou o fôlego e
disputa palmo a palmo com o PSOE o segundo lugar, com intenções votos ao redor
dos 20%. Ciudadanos, ao contrário, vê suas intenções de votos baixarem nas
últimas semanas.
O caso do Ciudadanos é curioso. Nas eleições estaduais e municipais de maio o
partido havia obtido um resultado bastante abaixo do que previam as pesquisas,
relegado a quarta força política, bem atrás do Podemos. Ensinando sua vocação
pelo poder, o partido laranja não hesitou em apoiar a investidura de governos
do PP e do PSOE. Foi a muleta ideal para, por exemplo, garantir a permanência
dos governo do PP de Madrid e do PSOE de Andaluzia, tidos como expressões
máximas desses partidos quanto às tramas de corrupção e ao clientelismo
político. No entanto, nas eleições de setembro para o governo da Catalunha o
partido alcança uma excelente votação, ao mesmo tempo que Podemos obtém seu
pior resultado.
Em função da blindagem mediática e do êxito nas eleições catalãs, Ciudadanos
começa a campanha presidencial da melhor maneira possível. Algumas pesquisas
chegaram a apontar a possibilidade de passar ao PSOE, colocando-o inclusive com
possibilidades de superar ao PP e ser o grande vencedor da disputa
presidencial. Contudo, o partido não conseguirá decolar e irá desinflando
progressivamente. A inconsistência de suas propostas, o permanente ir e vir de
uma postura ideológica a outra, assim como as derrapadas de seu candidato (com
questões de gênero, com propostas contra o sentido comum, como um salário de
300 mil euros anuais para o Presidente de Governo etc) exporiam suas fragilidades
e fariam com que o partido chegue ao dia da eleição, ao que parece, já relegado
a sua posição anterior de linha assessoria dos velhos partidos.
Não é de se estranhar que faltando 48h para a votação, Albert Rivera viesse a
público apontar, ao contrário do que havia dito durante toda a campanha, sua
disposição em abster-se no processo de votação do governo, abrindo passo para
que o PP voltasse a governar o país. Desde os bastidores, a explicação seria a
pressão advinda dos poderes econômico-midiáticos que apoiaram ao partido,
exigindo-lhe que, frente à sua caída expressiva, voltasse a assumir seu viés de
centro-direita e seu papel de muleta do PP.
De forma diametralmente oposta, o Podemos inicia a campanha eleitoral
fragilizado. Algumas pesquisas chegam dar-lhe exíguos 11% de intenção de votos,
vaticinando ao Partido o papel de nova IU (Izquierda Unida, conglomerado entre
o PC español e outras forças de esquerda), ou seja, a força de extrema esquerda
marginal no sistema político. No entanto, o partido seria capaz de rearticular
o diálogo com as forças políticas emergentes ao longo do território espanhol.
Não por acaso, apresenta-se em listas conjuntas com os movimentos populares e
cidadãos nas Comunidades Autônomas de Catalunha, Valência e Galícia. Nesses
comunidades, a sigla “Podemos” será substituída, respectivamente, por “En Comun
Podem”, “Compromís-Podemos” e “En Marea”.
De forma complementar, o partido voltou a mostrar ser o mais preparado e hábil
na elaboração e realização de uma campanha política. Com um reduzido orçamento
(2,2 milhões de euros), menor inclusive que o orçamento da Izquierda Unida, mas
com o melhor dos candidatos, o partido promoverá uma “remontada”(virada)
verdadeiramente emocionante. Nesse sentido, será determinante a atuação de
Pablo Iglesias nas entrevistas televisivas e, sobretudo, nos debates
eleitorais: um verdadeiro monstro político, nocauteando impiedosamente a seus
adversários, sem perder a elegância, com muita inteligência, contundência e
sagacidade.
Por sua vez, o PP fez uma campanha conservadora, ciente de sua cômoda vantagem
nas pesquisas. Ainda que perda 40% dos votos que teve em 2011, o partido
assumiu que melhor seria perder os anéis e conservar os dedos: perde-se a
maioria absoluta, mas fica com a maior votação.
Ao PSOE, a campanha será marcada pelo desespero em tentar se conservar como
segunda força política. O fantasma de uma “pasokização” (em referência ao seu
homólogo grego, o “Pasok”, grande partido social democrata que junto com o
“Nova Democracia” hegemonizou a política grega mas que atualmente se reduziu a
força política marginal, incapaz de alcançar 10% dos votos nas 3 últimas
eleições).
Em todo caso já se pode falar de perdedores e vencedores. No primeiro caso os
partidos tradicionais. O Bipartidarismo, que nas seis eleições presidenciais
celebradas nos últimos vinte anos somava entre 73% e 83% dos votos, dessa vez
dificilmente alcançará os 50%. Além disso, as recentes e desesperadas
manifestações do PSOE tentando associar o Podemos a União Soviética, Venezuela
e Grécia, bem como sua postura frente ao “independentísmo” catalão e aos
atentados de Paris, os aproximam ao PP e a Ciudadanos e mostram seu grau de
anacronismo. No segundo caso, dos vencedores, o Podemos, que foi capaz de mudar
profundamente a forma de fazer política no país. A agenda social e regeneração
democrática voltaram ao centro do debate. Todos os partidos lançaram candidatos
jovens, tiraram as gravatas e modernizaram os discursos e práticas políticas.
Podemos inicia a campanha com voto consolidado entre os eleitores jovens,
urbano e com elevado nível educacional. Não por acaso, constitui-se como força
política preferida entre estudantes. A tarefa pendente é ampliar seu voto aos
eleitores de municípios pequenos e com menores níveis de escolaridade. Quanto à
faixa etária, embora tenho maior concentração de votos entre os mais jovens,
Podemos apresenta um apoio repartido de forma equilibrada entre os distintos
segmentos etários. A exceção se dá entre eleitores maiores de 55 anos, onde o
voto do partido diminui consideravelmente, permanecendo em aberto sua
capacidade de penetração nesse extrato etário.
De forma geral, o desafio para Podemos passaria por buscar situar-se à frente
do PSOE (“sorpaso”) e se legitimar como grande partido de oposição a um
eventual governo do PP. Caso seja a segunda força, outra possibilidade seria
formar governo com apoio dos parlamentares do PSOE e da IU. Assim, forçaria ao
velho PSOE, como acontece na prefeitura de Madrid, a dar um giro em suas
políticas e resgatar bandeiras esquecidas nos últimos anos. Caso contrário, com
o PSOE à frente, o Podemos dificilmente conseguiria pressionar-lhe para que
promovesse as mudanças necessárias para que o país voltasse a crescer e a
promover a justiça social. Em todo caso, ser terceira ou quarta força com algo
entre 15% e 20% já seria um excelente resultado para a formação “morada”, ainda
mais num cenário no qual nenhum partido alcançaria os 30%.
Como mostram as pesquisas da última semana, Podemos vem em trajetória ascendente
e, na última pesquisa eleitoral, da véspera da eleição, finalmente se situa
como segunda força política, tanto em intenção direta de voto (16% contra 13,3%
do PSOE) como na intenção de voto estimulada (21,5 contra 20,1% do PSOE).
Também por primeira vez nas pesquisas, há menos de 24h das eleições, o
Podemos consegue o que parecia impossível: ultrapassar ao PSOE no número de
vagas no parlamento, com um intervalo estimado entre 80 e 84 deputados, frente
ao intervalo de 76-80 deputados para o PSOE.
Em todo caso, o grande vencedor dessas eleições é o conjunto dos povos deste
lindo e diverso espaço plurinacional (para alguns, mal) chamado Espanha.
Decididos a não esquecer as patifarias de sua casta plutocrática, hoje,
eles votam, votam “cambio”! E votam com um sorriso, porque o anelo de mudança
se faz realidade: já o acariciamos a vitória com as pontas dos dedos.
Pablo Iglesias não se cansa de repetir: “Mudamos a política deste país. Agora
nos falta mudar o parlamento e o governo”. Que assim seja, neste domingo! Sí se
puede!