Retratos
da Desigualdade: em Baltimore, 25% da população está abaixo da linha de
pobreza; índice de homicídios é duas vezes maior que no Rio; polícia agride
negros e há bizarros “desertos de comida”
Pedro
Abramovay, no Quebrando o Tabu –
em Outras Palavras - imagens: Patrick Joust
A
cerca de 40 minutos de trem da capital dos EUA e um pouco mais de duas horas de
Nova York fica a cidade de Baltimore, capital do estado de Maryland.
Acabo
de sair de lá depois de um dia bastante intenso visitando projetos da Fundação
Open Society na cidade.
Logo
de manhã ouvi o depoimento de uma moça chamada Jabria. Jabria, quando tinha 16
anos, estava discutindo com sua avó. A avó teve um ataque do coração durante a
discussão. Jabria foi presa, em um estabelecimento para adultos, por homicídio.
Após cerca de um ano experimentando todo tipo de violências no cárcere, Jabria
poderia ter direito a liberdade condicional. O pedido foi negado pelo juiz pelo
fato de Jabria ter tido mais de 30 suspensões na escola. As suspensões foram
ocasionadas por Jabria chegar na escola com o uniforme sujo, pois sua avó não a
deixava lavar o uniforme quando elas discutiam.
Jabria
hoje lidera uma iniciativa contra a prisão de adolescentes nos Estados Unidos e
sabe que histórias como essa são a regra na sua comunidade.
Depois
fui a uma escola. Uma escola que, como todas as outras nos bairros pobres de
Baltimore convivia com altos níveis de violência, de suspensão de alunos e, não
surpreendentemente, péssimos resultados acadêmicos.
Vale
dizer que, até recentemente, Baltimore distribuía seus recursos educacionais da
mesma forma perversa com que esses recursos são distribuídos na maioria dos
EUA. A escola recebe impostos de acordo com a arrecadação de IPTU no bairro em
que ela fica. Assim, escolas de bairros ricos recebem uma enormidade de
recursos públicos. Em bairros pobres, vivem na miséria. Felizmente, após uma
batalha judicial, foi possível mudar isso em Baltimore.
Fiquei
muito impressionado ao entrar na escola. Cinquenta anos após os movimentos
contra a segregação racial nos EUA, todos, todos, os alunos na escola são
negros. O trabalho de justiça restaurativa feito na escola em que eu fui era
incrível. As brigas caíram, as suspensões praticamente acabaram e os níveis
acadêmicos melhoraram muito. Mas isso ainda é uma gota no oceano em um bairro
onde 1/3 dos alunos foram suspensos no ano passado.
Depois
da escola fui a uma igreja, ver o trabalho social que eles faziam. Uma senhora,
especialista em segurança alimentar, me explicou que um dos maiores problemas
da cidade, que contabiliza 25% dos seus habitantes abaixo da linha de pobreza,
eram os food deserts (algo como desertos de comida). Áreas da cidade nas quais
os moradores não têm acesso a comida. Não há um supermercado ou uma loja que
venda comida em um raio de mais de 8 quilômetros. O sistema de transporte
público é precário. Assim, as pessoas têm que andar grandes distância para ter
acesso a comida. Muitas vezes elas não fazem isso. E acabam comprando Doritos e
balas na loja da esquina para alimentar suas famílias, gastando muito mais do
que gastariam se comprassem alimentação decente. Ou, simplesmente, passam fome.
Vale
lembrar que essa é uma cidade na qual o comparecimento eleitoral chega a 17% da
população com idade de votar. O voto, como em todos os EUA, é facultativo.
A
taxa de homicídios em Baltimore é altíssima (55 por 100.000 habitantes),
equivalente à taxa de cidades da baixada fluminense. Mais que o dobro da taxa
do Rio de Janeiro.
Em
abril, a polícia matou um rapaz, negro, chamado Freddie Gray. Jovens negros
incendiaram a cidade em protesto.
Esse
panorama é fundamental para que possamos entender que o capitalismo
norte-americano não pode ser visto como um modelo a ser replicado. Baltimore
não é um caso isolado nos EUA, não é um acidente. Baltimore é produto de uma
sociedade desigual, racista, violenta, injusta e pouco democrática.
Atualmente,
sempre que alguém faz um comentário em defesa de mais justiça social,
rapidamente ouve-se a resposta: Vai pra Cuba! Não considero Cuba um modelo a
ser seguido pelo Brasil. Mas um dia em Baltimore reforçou a ideia de que o
modelo de sociedade baseado em um Estado que pune adolescentes, que fortalece o
capital privado na decisão de como alocar recursos públicos, que ignora as
desigualdades raciais, que acha que o voto facultativo salva a política, esse
modelo de sociedade defendido por tanta gente raivosa na internet e inspirada
nos EUA. Esse modelo não nos leva ao mundo mágico da Disneyworld. Esse modelo
nos leva a Baltimore.
E
não vou responder aos #vaipraCuba! que eu ouço com um #vaipraBaltimore. A
Baltimore que eu conheci hoje não desejo para ninguém.
Talvez
seja difícil saber o que queremos para o Brasil. Mas certamente começar o
debate sabendo que não queremos ser nem Cuba nem Baltimore já seria um bom
começo.
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