sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

VIAGEM INSÓLITA À PERIFERIA DOS EUA



Retratos da Desigualdade: em Baltimore, 25% da população está abaixo da linha de pobreza; índice de homicídios é duas vezes maior que no Rio; polícia agride negros e há bizarros “desertos de comida”

Pedro Abramovay, no Quebrando o Tabu – em Outras Palavras - imagens: Patrick Joust

A cerca de 40 minutos de trem da capital dos EUA e um pouco mais de duas horas de Nova York fica a cidade de Baltimore, capital do estado de Maryland.

Acabo de sair de lá depois de um dia bastante intenso visitando projetos da Fundação Open Society na cidade.

Logo de manhã ouvi o depoimento de uma moça chamada Jabria. Jabria, quando tinha 16 anos, estava discutindo com sua avó. A avó teve um ataque do coração durante a discussão. Jabria foi presa, em um estabelecimento para adultos, por homicídio. Após cerca de um ano experimentando todo tipo de violências no cárcere, Jabria poderia ter direito a liberdade condicional. O pedido foi negado pelo juiz pelo fato de Jabria ter tido mais de 30 suspensões na escola. As suspensões foram ocasionadas por Jabria chegar na escola com o uniforme sujo, pois sua avó não a deixava lavar o uniforme quando elas discutiam.

Jabria hoje lidera uma iniciativa contra a prisão de adolescentes nos Estados Unidos e sabe que histórias como essa são a regra na sua comunidade.

Depois fui a uma escola. Uma escola que, como todas as outras nos bairros pobres de Baltimore convivia com altos níveis de violência, de suspensão de alunos e, não surpreendentemente, péssimos resultados acadêmicos.

Vale dizer que, até recentemente, Baltimore distribuía seus recursos educacionais da mesma forma perversa com que esses recursos são distribuídos na maioria dos EUA. A escola recebe impostos de acordo com a arrecadação de IPTU no bairro em que ela fica. Assim, escolas de bairros ricos recebem uma enormidade de recursos públicos. Em bairros pobres, vivem na miséria. Felizmente, após uma batalha judicial, foi possível mudar isso em Baltimore.

Fiquei muito impressionado ao entrar na escola. Cinquenta anos após os movimentos contra a segregação racial nos EUA, todos, todos, os alunos na escola são negros. O trabalho de justiça restaurativa feito na escola em que eu fui era incrível. As brigas caíram, as suspensões praticamente acabaram e os níveis acadêmicos melhoraram muito. Mas isso ainda é uma gota no oceano em um bairro onde 1/3 dos alunos foram suspensos no ano passado.

Depois da escola fui a uma igreja, ver o trabalho social que eles faziam. Uma senhora, especialista em segurança alimentar, me explicou que um dos maiores problemas da cidade, que contabiliza 25% dos seus habitantes abaixo da linha de pobreza, eram os food deserts (algo como desertos de comida). Áreas da cidade nas quais os moradores não têm acesso a comida. Não há um supermercado ou uma loja que venda comida em um raio de mais de 8 quilômetros. O sistema de transporte público é precário. Assim, as pessoas têm que andar grandes distância para ter acesso a comida. Muitas vezes elas não fazem isso. E acabam comprando Doritos e balas na loja da esquina para alimentar suas famílias, gastando muito mais do que gastariam se comprassem alimentação decente. Ou, simplesmente, passam fome.

Vale lembrar que essa é uma cidade na qual o comparecimento eleitoral chega a 17% da população com idade de votar. O voto, como em todos os EUA, é facultativo.

A taxa de homicídios em Baltimore é altíssima (55 por 100.000 habitantes), equivalente à taxa de cidades da baixada fluminense. Mais que o dobro da taxa do Rio de Janeiro.

Em abril, a polícia matou um rapaz, negro, chamado Freddie Gray. Jovens negros incendiaram a cidade em protesto.

Esse panorama é fundamental para que possamos entender que o capitalismo norte-americano não pode ser visto como um modelo a ser replicado. Baltimore não é um caso isolado nos EUA, não é um acidente. Baltimore é produto de uma sociedade desigual, racista, violenta, injusta e pouco democrática.

Atualmente, sempre que alguém faz um comentário em defesa de mais justiça social, rapidamente ouve-se a resposta: Vai pra Cuba! Não considero Cuba um modelo a ser seguido pelo Brasil. Mas um dia em Baltimore reforçou a ideia de que o modelo de sociedade baseado em um Estado que pune adolescentes, que fortalece o capital privado na decisão de como alocar recursos públicos, que ignora as desigualdades raciais, que acha que o voto facultativo salva a política, esse modelo de sociedade defendido por tanta gente raivosa na internet e inspirada nos EUA. Esse modelo não nos leva ao mundo mágico da Disneyworld. Esse modelo nos leva a Baltimore.

E não vou responder aos #vaipraCuba! que eu ouço com um #vaipraBaltimore. A Baltimore que eu conheci hoje não desejo para ninguém.

Talvez seja difícil saber o que queremos para o Brasil. Mas certamente começar o debate sabendo que não queremos ser nem Cuba nem Baltimore já seria um bom começo.

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