Como
a ocupação de praças pelos jovens, contra a “reforma” trabalhista, a
desigualdade e a desesperança, pode acordar um país acossado por terror, Estado
de Emergência e política reduzida a simulacro
Geoffrey
Pleyers – Outras Palavras - Tradução: Antonio Martins e Inês
Castilho
Há
dez dias, desde 31 de março, milhares de pessoas reúnem-se todas as noites na
Praça da República, em Paris para compartilhar suas desilusões com a política
institucional e para colocar em prática formas de democracia direta em
assembleias populares e centenas de pequenos grupos de discussão. Mais de 80
mil pessoas seguiram a assembleia geral online de último domingo, 3/4, e
milhares tomaram a praça, em vários dias. A “Nuit Debout” (“Noite Desperta”)
tornou-se agora um movimento nacional, com reuniões em 15 cidades francesas, e
mesmo algumas tão distantes quanto Bruxelas, Barcelona e Berlim.
A
ascensão do movimento na França não é, de forma alguma, casual. Desde
fevereiro, foram se reunindo todos os ingredientes para que
emergisse um movimento semelhante aos Indignados da Espanha ou
ao Occupy norte-americano, em 2011. Em seguida a uma discussão pública em
23 de fevereiro, organizada pela revista ativista de esquerda Fakir, um grupo informal de dezenas
de cidadãos imaginou uma ocupação da praça, depois da grande manifestação de
31 de março contra a proposta de reforma trabalhista do governo. Eles
difundiram suas iniciativas com sucesso. Desde aquele dia, uma multidão reúne-se toda
noite. As pessoas compartilham suas demandas e projetos em
assembleias populares, conversam e celebram juntas, e criam “comissões”
horizontais para organizar seu movimento, para preparar ação, comunicar, cantar
e trabalhar em questões específicas (migrantes, nova economia, nova Constituição…).Partilham
seus sonhos de outra sociedade e clamam por uma confluência de lutas.
Contra-reforma
trabalhista detonou movimento
Uma
frustração latente, mesmo quando compartilhada por milhares de cidadãos, não é
suficiente para desencadear uma ampla mobilização. “Somos muito gratos a essa
lei por nos despertar de nossa letargia política”. Um detonador é necessário,
uma centelha que propicia a oportunidade para uma primeira sequência de
mobilizações. O pacote da “reforma” dos direitos trabalhistas apresentado pelo
governo francês em fevereiro foi a fagulha perfeita. Tocou fogo na injúria
acumulada nos cidadãos e cidadãs progressistas contra as reformas neoliberais
conduzidas pelo governo do Partido Socialista. Fixou uma meta comum; abriu um
debate na mídia mainstream; facilitou o alastramento da mobilização para além
dos círculos do ativismo clássico e promoveu a confluência entre sindicatos,
estudantes e redes de cidadãos.
O
pacote ambém proporcionou um calendário de mobilizações, com marchas semanais e
assembeias gerais em universidades e sindicatos – algo indispensável numa fase
em que um movimento nascente não é ainda capaz de fixar sua própria
temporalidade e agenda. Um novo ataque aos direitos trabalhistas era tudo de
que os ativistas precisavam para iniciar um movimento vibrante. Eles nunca se
esquecem de agradecer ao governo por esta proposta de “reforma”. Como disse Frédéric Lordon –
um economista da esquerda radical e um dos iniciadores da “Noite Desperta” – em
seu discurso no início do movimento, em 31 de março: “somos gratos a esta lei,
por nos acordar de nossa letargia política”. [Nota de Outras Palavras: vale
ler, em especial, seu
ensaio sobre a necessidade de a esquerda pensar uma Europa sem euro].
Da
oposição à contra-reforma à construção de outra sociedade
O
que distingue um movimento social de todas as demais formas de mobilização é o
fato de que ele não se foca numa reivindicação específica (como a
contra-reforma trabalhista), mas desafia alguns dos valores centrais de uma
sociedade. Desde seu primeiro chamado, para protestos em 9 de março, o
foco das coalizões estudantis foi mais amplo que o combate à contra-reforma
trabalhista. Jovens entrevistados durante as marchas de protesto expressaram
seu desapontamento com “um governo que finge ser de esquerda mas é o
contrário”. Como no movimento dos Indignados (15M) na Espanha, ou no Occupy
norte-amricano, estuantes do ensino superior e médio denunciam
a articulação entre as elites econômicas, políticas e a mídia.
Intelectuais franceses progressistas já demonstraram que a “reforma” proposta
pelo governo não está relacionada à alardeada criação de novos empregos, mas ao
crescimento ainda maior do poder do “1%” francês. Um número crescente de
membros do Partido Socialista e de deputados denuncia abertamente os excessos
neoliberais do presidente François Hollande e de seu governo.
Sem
alternativas na politica institucional
A
falta de alternativas entre os partidos estabelece um panorama muito favorável
para a ascensão de um movimento do tipo Indignados/Occupy. A esquerda
francesa tem denunciado a série de contra-reformas neoliberais conduzidas pelo
governo do Partido Socialista. O ataque aos direitos trabalhistas é apenas mais
um epiódio, da sequência que incluiu um vasto conjunto de leis propostas pelo
ministro social-liberal da Economia, Emmanuel Macrom, e o longo debate sobre a
exclusão da nacionalidade francesa, para os cidadãos binacionais associados a
ataques terroristas. Há cinco anos, foi exatamente esta falta de uma
alternativa política entre os socialistas e o Partido Popular, de dirita, que
levou milhares de pessoas a ocupar a Plaza del Sol, em Madrid, e as praças de
cada cidade na Espanha. Denunciava-se uma “democracia sem escolha”.
O
cenário francês parace ainda mais sombrio, porque dispustas e rachas internos
também estão devastando o Partido Verde e a Frente de Esquerda. A Frente
Nacional, de Marine Le Pen, nacionalista e xenófoba, procura apresentar-se com
a única alternativa. Denuncia o Partido Socialista e Os Republicanos (a direita
convencional), como falsos oponentes, e parte de um mesmo jogo. Esta atitude
repercutiu bastante entre os eleitores e tornou o partido o favorito, entre os
mais jovens.
Neste
cenário, ocupar uma praça e propor mudar a política a partir de baixo é a única
opção que resta aos cidadãos progressitas desapontados. Questionar a
centralidade da democracia representativa e dar poder aos cidadãos, nas
decisões locais, é, na verdade, o principal objetivo das “Noites Despertas”. Os
cidadãos nas ruas mantêm distância de todos os partidos políticos, denunciam
fortemente a “traição” do Partido Socialista e se opõem de maneira decidida à
Frente Nacional, em especial ao dar as boas-vindas aos imigrantes e refugiados
que chegam ao movimento.
Juventude
sem futuro?
Embora com diferenças, em relação à Península Ibérica em 2011, a situação econômica e o desemprego são realidades duras para muitos jovens na França de hoje. Em 2012, quando se elegeu, Fançois Holande anunciou que a “juventude” seria uma prioridade em seu mandato. Desde então, os jovens têm se sentido abandonados, pouco ouvidos e atacados pelo governo. A “geração precária” é a primeira vítima da flexibilização do mercado de trabalho e da crescente concentração de riquezas.
Em
31 de março, o “France Stratégie”, um thinktank adjunto ao gabinete
do primeiro-ministro, publicou um relatório que
confirma esta impressão: 23,3% das pessoas entre 18 e 24 anos vivem em condição
de pobreza (eram 17,6%, em 2002); 23,4% dos que têm entre 15 e 24 anos estão
desempregados. Como destacou o Le
Monde, “Pobreza, desembrego e padrões de vida: a situação dos jovens
degradou-se, comparada com a de outros grupos etários“.
O
que ultraja os jovens, mais ainda que suas condições de vida atuais, é o
sentimento de que estão sendo “privados de seu futuro”. Eles expressam este
sentimento na Praça da República e nas redes sociais. “O governo quer que
acreditemos que não temos escolha, a não ser um futuro precário. É o que
rejeitamos”. Ressoa como um eco claro da situação na Espanha e Portugal em
2011, onde as redes chamadas “Jovens sem futuro” estiveram entre os principais
iniciadores e protagonistas das mobilizações de 2011. Cinco anos depois, na
França, a reivindicação dos jovens por construir seu futuro está novamente em jogo.
Como sintetizou alguém de nome Florence, num tweet, “Precisamos pensar a
sociedade de amanhã com humanismo, liberdade, igualdade, fraternidade”. Nas
“Noites Despertas” da França, assim com nos movimentos pós-2011, os jovens
estão se construindo como indivíduos, como geração e como cidadãos que exigemmuito mais democracia e um
mundo mais justo.
As
infraestruturas da mobilização: redes e calendário escolar
Se
o ultraje e o desejo de um mundo diferente estão no núcleo dos movimentos
sociais, o início de uma mobilização também depende de “infra-estruturas” que
facilitem sua emergência e duração. Também em relação a isso, todos os sinais
estão verdes para uma vibrante primavera francesa.
O
governo francês não poderia ter escolhido uma ocasião melhor para lançar sua
proposta para uma “reforma” dos direitos trabalhistas. O final de fevereiro e
início de março são o melhor período para iniciar uma mobilização de
estudantes. Como é o inicio do segundo semestre docalendário escolar anual [que
vai de fevereiro a junho], as redes pessoais e de ativismo já estão bem
constituídas e os exames finais ainda estão distantes: sobram tempo e energia
para a articulação e o protesto. O Maio de 1968, em Paris, bem como as grandes
manifestações estudantis de 2006 começaram por volta deste período – e o mesmo,
aliás, ocorreu com o movimento dos Indignados, na Espanha, em 2011.
A
emergência de um movimento nunca é tão espontânea como frequentemente parece,
na mídia mainstream. A mobilização em torno da Cúpula do Clima, da ONU [em
dezembro de 2015]; pequenas mobilizações contra a decretação do Estado de
Emergência [pós-atentados em Paris] e a violência policial na França; e
diversas batalhas ecológicas que se espalharam pelo país permitiram aos
ativistas construir conexões e acumular experiência.
O
grupo de ativistas que propôs e preparou o encontro na Praça da República, após
o protesto de 31 de Março, jogou um papel-chave como “empreendedores de
mobilização”, providenciando o espaço no qual o movimento pode florescer. A
organização de sociedade civil “Droit Au Logement” (“Direito à Habitação”) já
havia recebido autorização para instalar algumas barracas na praça, para
protestar contra despejos e tinha condições de oferecer apoio logístico e
alguns conselhos úteis para ativistas menos experientes que chegaram à praça.
Um
movimento diferente?
As
“Noites Despertas” seriam, então, apenas um retorno de movimentos como o dos
Indignados e o Occupy? As “Noites Despertas” emprestam seus códigos, muito de
seua visaão de mundo e desejo de democracia participativa. O movimento de 2016,
porém, ainda precisa encontrar seus próprios caminhos, tanto porque o contexto
político é diferentes do de cindo anos atrás quanto porque deve levar em conta
o que ocorrer com seus predecessores durante e após as ocupações de praças
O
entusiasmo generalizado por movimentos democráticos, que marcou o início dos
anos 2010, parece distante. O clima político é agora muit mais solene, marcado
por terror, Estado de Emergência, sucesso dos partidos de extrema direita e
expansão de seus valores. A Praça da República carrega a memória dos ataques
terroristas de 13 de novembro. Está a poucas quadras do Bataclan e da maior
parte dos bares atacados naquela noite.
Na
França e na Europa a guerra contra o terrorismo está no topo das agendas
políticas. A Frente Nacional, de extrema direita, seduz mais de 25% dos
eleitores e atrai muitos jovens. O Estado de Emergência não reprime apenas
potenciais terroristas. Ativistas ambientais foram presos em suas casas, em
Dezembro. Muçulmanos e jovens são frequentemente espancados pela polícia e
manifestações estudantis recentes foram violentamente reprimidas. A “Noite
Desperta” é uma resposta a este ambiente. Ela permite que os cidadãos
manifestam seu apoio a uma Europa aberta, defendam as demandas de migrantes e
refugiandos e os saúdem diretamente na praça.
Por
outro lado, assim como a ocupação de praças pelos Indignados espanhóis e pelos
movimentos Occupy está no DNA das “Noites Despertas”, também estão os limites e
os desfechos destes movimentos anteriores. O projeto das “Noites Despertas”
baseia-se nesta herança, mas precisa também reinventar o movimento e suas
práticas, para tentar escapar de alguns destes limites.
Desde
2011, as demandas de horizontalidade e o desejo de criar formas de democracia
participativa fora dos marcos da política institucional confrontou os atores,
movimentos e praças com os limites de movimentos estruturados de maneira débil
e com resultados menos claros do que gostariam muitos ativistas. Será possível
“mudar o mundo sem tomar o poder”, abraçando o ativismo, a horizontalidade e as
iniciativas cidadãs, ou deve-se “ocupar o Estado” e entrar no jogo eleitoral
para construir uma sociedade democrática?
Em
2011, os Indiganos espanhóis e os ativistas do Occupay rejeitram claramente a
segunda hipótese. Desde então, diversos atores dos movimentos de 2011 decidiram
cruzar a ponte e participar da arena institucional. Alguns alimentaram o
sucesso do novo líder do Partido Trabalhista da Grã-Bretanha, Jeremy Corbyn, e
a vibrante campanha de Bernie Sanderes à presidência dos EUA. Na Espanha, o
novo partido Podemos mostra que os movimentos populares podem criar novas
realidades políticas – mas, ao passar do ultraje à política partidária, Pablo
Iglesias e seus colegas contrariaram alguns de seus valores originários, como a
rejeição de líderes, a primazia da dinâmica cidadã e a recusa a aceitar mutas
das regras da política partidária e do “jogo” eleitoral.
No
contexto internacional, depois de alguns anos marcados por esperanças de mais
democracia, justiça social e dignidade, baseando-se particularmente na cultura
e práticas horizontais, estes movimentos vivem hoje sob o poder sem disfarces
das elites políticas e econômicas. Em países como Turquia e Egito, os
atores das “revoluções” das praças são agora vítimas de repressão violenta.
As
“Noites Despertas”, que começaram em Paaris, em 31 de Março, podem tirar proveito
da experiência dos movimentos e ocupações de praças que sacudiram o mundo desde
2011. Precisam, porém, inventar seu caminho, a partir do sucesso e limites das
experiências anteriores. Não é possível antecipar o futuro de tal mobilização,
mas reunir milhares de cidadãos, de distintas gerações, para reafirmar que
“outro mundo é possível”; recepcionar migrantes e refugiados; estabelecer
trabalho coletivo, em torno de projetos alternativos baseados em democracia
cidadão, mais justiça social e dignidade – tudo isso representa um êxito
considerável, num contexto fortemente marcado pela regressão social e o ambiente
depressor do Estado de Emergência.
Sem comentários:
Enviar um comentário