José Eduardo
Agualusa – Rede Angola, opinião
Certos
erros parecem capazes de desacreditar uma obra inteira. Imagino Deus
observando, de longe, o confuso desfile da humanidade. Vem Miguel Ângelo e Deus
se alegra. Vem Louis Armstrong e Deus quase ri. Vem Josephine Baker,
rodopiando, com os alegres seios soltos e Deus perde a gravidade e aplaude e
ri. Mas eis então que surge um Mussolini, um Kangamba, um Bolsonaro e Deus
estremece, horrorizado:
“Também
isto é obra minha?!”
Ou
talvez Deus olhe para os homens cruéis e estúpidos como um escritor olha para os
seus personagens cruéis e estúpidos, não enquanto erros, mas enquanto seres
humanos em transitório estado de erro que, por vezes, a morte interrompe antes
que se corrijam.
Um
homem que fosse inteiramente um erro, um erro definitivo e denso, não seria
humano. Há (tem de haver) em todos os homens errados, uma, ainda que muito
remota, possibilidade de acerto. Hitler que era um medíocre pintor de aguarelas
– ainda assim pintou aguarelas. Ou seja, havia algures dentro dele um homem que
buscava a beleza. Que se alegrava diante da beleza.
Penso
nisto enquanto leio as sombrias notícias que todos os dias me chegam de Angola.
Não obstante a pavorosa soma de erros quero acreditar que ainda existe uma
porta à espera de ser aberta por aqueles que tanto vêem errando. Dizer que
quando um tirano prende um homem justo, é o tirano quem se torna prisioneiro
desse mesmo homem, pode ser um clichê; é, certamente, um clichê. Contudo, há
nisso uma sólida verdade. Os clichês não são outra coisa senão verdades às
quais deixamos de prestar atenção.
O
tirano torna-se prisioneiro dos seus erros. Hitler, no bunker onde se
suicidou, olhava para a juventude distante e sentia possivelmente saudades do
pintor (falhado) que poderia ter sido. Um artista mal sucedido é alguém que
acerta, mesmo enquanto falha o alvo. Um ditador bem sucedido é alguém que
alcança êxito no próprio erro.
Ao
libertar os seus prisioneiros o ditador estaria a corrigir-se a si mesmo.
Estaria a libertar-se. Essa primeira correcção daria um sinal de esperança.
Aberta a primeira porta, outras se abririam a seguir. A liberdade é um caminho
que se vai alargando à medida que se percorre. A liberdade é um vício que se
entranha.
O
futuro modifica o passado. Regressemos, por exemplo, àquele humilde pintor de
aguarelas, de vinte anos, chamado Adolf Hitler. É difícil olhar para ele, hoje,
sem ser com horror. Nenhum horror despertaria, contudo, se tivesse sido a vida
inteira um medíocre pintor de aguarelas.
Se
o ditador for ainda capaz de se libertar a si próprio – libertando os seus
prisioneiros – pode ser que amanhã consigamos olhar para ele e vê-lo não como
um erro definitivo, mas como um homem que errou e se corrigiu. Porém, se a
morte o interromper antes que se corrija, aí sim, será para sempre um erro.
Eternamente um erro. Um erro do princípio ao fim.
2 comentários:
Para oprimir um pouco:
https://www.youtube.com/watch?v=ytstUHk8rg4
Para que algum angolano reflita:
https://www.youtube.com/watch?v=NZmvogXnmRs
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