Em
resposta a atentados na Europa, Ocidente tornou-se menos livre e tolerante;
mais brutal e xenófobo. É exatamente o que os fundamentalistas desejavam
Roberto
Savio – Outras Palavras - Tradução: Inês Castilho
O
massacre de Bruxelas causou uma reação a curto prazo que não considera uma
projeção mais estratégica. Todo o debate é agora sobre segurança, reforço
policial, novas estratégias militares, como se o terrorismo pudesse ser
resolvido simplesmente como uma questão de ordem pública.
Seria
também necessário adotar um enfoque mais global e integral, e aceitar que
estamos diante de um problema que deve ser abordado por vários ângulos. Isso
faz com que este artigo enfrente o costumeiro problema da falta de espaço, para
uma análise mais profunda. Vou pedir, portanto, ao leitor que abra os links de
alguns artigos anteriores, para assim contar com mais informação sobre questões
impossíveis de tratar adequadamente no presente artigo.
1)
Falta de debate político. Vemos as lideranças políticas europeias
mobilizando-se, depois de cada evento, somente com alguma declaração retórica
sobre a solidariedade e o horror, mas sem esforço nenhum para construir uma
resposta comum e singular. É supreendente ver que as autoridades francesas e
belgas nem sequer tratam de vincular as ações dos terroristas com sua vida
anterior e seus antecedentes, quando é realmente necessário fazer uma análise
sociológica e cultural, além de adotar medidas meramente policiais. Ainda que
isso seja importante, não é relevante para o debate político (ver link).
2)
Não se faz nenhum esforço para explicar que o terrorismo islâmico é, antes de
mais nada, uma batalha interna do mundo muçulmano, empregada na Europa somente
por conveniência. O ramo sunita é o principal do Islã, com 88% dos muçulmanos.
Mas não foi descoberto nenhum terrorista que não fosse praticante do wahabismo,
ou ramo salafista dos sunitas, originário da Arábia Saudita, de onde foi
ativamente exportado pela família real Al-Saud.
Riad
construiu mais de 1.600 mesquitas e dotou-as de pessoal e imans salafistas,
gastando anualmente mais de 80 milhões de dólares para apoiar seu ramo sunita.
Para os salafistas, várias outras correntes do Islã são consideradas infieis,
como os Sufi e os Yazidis. Os xiitas são o principal inimigo. A maioria dos
xiitas vive no Irã, o principal inimigo da Arábia Saudita. Esses dois países
lutam entre si através das guerras subsidiárias ou guerras por procuração,
desde a Síria até o Iemên, com um número de vítimas milhares de vezes superior
ao de todas as vítimas dos atentados na Europa. Qualificar todo o Islã de
promotor do terrorismo é, portanto, um erro dramático. (Veja o link)
3)
Até que seja controlada pela Rússia e pelos Estados Unidos, a disputa entre a
Arábia Saudita e o Irã continuará em todo lugar, ou até que a Arábia Saudita
entre numa crise grave. Seu nível de gastos atual não será, em breve,
compatível com o preço do petróleo. O Fundo Monetário Internacional já avisou
Riad que, a menos que reduza seus gastos, irá à falência em 10 anos. Até agora,
a Arábia Saudita tem sido apoiada por todo o Ocidente, em especial pelos
Estados Unidos, por sua importância como principal exportador de petróleo.
O
painel de especialistas da ONU no Iêmen documentou violação das leis de guerra
em 119 voos de combate da coalizão [liderada pela Arábia Saudita, que invadiu o
país]. A informação é da Human Rights Watch, que pede, junto com a Anistia
Internacional e outras organizações, um embargo sobre a venda de armas a Riad.
Mas a Arábia Saudita é o segundo maior importador de armas do mundo.
De
qualquer modo, é muito pouco provável que a Arábia Saudita e seus aliados,
emires e xeques dos países do Golfo, possam assumir a liderança do mundo
sunita, porque eles são seguidores do ramo intolerante do Islã e, a longo
prazo, não parecem capazes de competir com um Irã muito maior e mais
desenvolvido. Mas, no momento, todo o mundo tem feito vistas grossas às
responsabilidades da Arábia Saudita na difusão do salafismo.
4)
O salafismo nos leva ao ISIS, que assumiu essa tendência do Islã como religião
oficial, inclusive radicalizando-a ainda mais. Sem dúvida, existe um consenso
crescente de que o Estado Islâmico está usando a religião como meio para o
recrutamento, reunindo todos aqueles que se sentem frustrados com o secularismo
e a modernização. O ISIS, como entidade tangível, poderia ser derrotado por
duas brigadas mecanizadas em poucas semanas, segundo especialistas militares.
Mas
isso seria dissolvê-lo entre as 600 mil pessoas que vivem em seu território,
resultando num excelente apoio a sua teoria: a de que os muçulmanos estão
sempre sujeitos aos cruzados cristãos, que instalaram reis e emires em seus
tronos e manipularam o mundo árabe com eficácia, segundo seus interesses.
Os
cruzados nunca aceitarão o poder de uma autêntica entidade árabe, e continuarão
a controlar o mundo árabe por meio de seus marionetes. Essa visão e o
chamamento à guerra santa contra os invasores e governos árabes continuarão
depois da morte do ISIS como entidade territorial, porque tocam um ponto
sensível em todo o mundo árabe, já que se baseiam em fatos históricos. Ou seja,
o chamamento do ISIS sobreviverá ao Califado. (Veja o link)
5)
A reação da Europa foi não intervir seriamente contra o ISIS, mas dar apoio às
facções na guerra da Síria. Sua responsabilidade na onda de refugiados que
fogem da Síria e da Líbia são claras, mas sem consequências. (Veja este link) Além de adotar uma decisão
totalmente ilegal sobre como tratar os refugiados, a Europa entrou num pacto de
Fausto com a Turquia, país que fez vistas grossas ao ISIS e se posiciona
claramente contra os princípios da democracia professados pela Europa. O Alto
Comissariado das Nações Unidas e o Médicos sem Fronteiras retiraram-se da
Grécia, declarando que o plano é ilegal.
Claro
que isso não passa desapercebido no mundo árabe, e faz aumentar o abismo em
relação ao Ocidente. Na retórica dos países da direita radical da Europa
(Polônia, Hungria, Eslováquia) e dos partidos mais à direita, os refugiados
converteram-se em portadores do terrorismo na Europa. A Europa sequer foi capaz
de aplicar medidas óbvias de coordenação em matéria de terrorismo, devido ao
zelo crescente dos governos. Não há nenhuma estratégia sobre essa questão, além
da retórica, que é muito útil à estratégia do ISIS.
6)
A direita radical e os partidos xenófobos são, portanto, aliados de fato do
ISIS. É evidente que, sem uma estratégia de sensibilização e informação, a
discriminação contra os árabes aumentará, e essa é exatamente a esperança do
ISIS, que pede aos muçulmanos que vivem na Europa para decidir: ou se integram
ao Ocidente e se convertem em apóstatas, ou auxiliam o grupo, atacando em todos
os lugares.
7)
Nenhum terrorista veio do mundo árabe. Todos os implicados até agora são
europeus, nascidos e criados na Europa. Todos eram pequenos delinquentes e
marginais. Nem todos eram muçulmanos praticantes, mas convertidos, doutrinados
na prisão ou através das redes sociais. Eram, de fato, niilistas que
encontraram no ISIS dignidade e a possibilidade de escapar de uma vida sem
trabalho e sem futuro. A Europa destinou 6 bilhões de euros para impedir a
entrada de refugiados, depois de aplicar mais de 7 bilhões em gastos militares
no Oriente Médio. Se esse dinheiro tivesse sido investido nos guetos dos árabes
que vivem na Bélgica, França e Grã Bretanha, provavelmente as condições para
que o terrorismo se expandisse teriam sido drasticamente reduzidas.
8)
É fato que, sem imigrantes, a Europa não terá viabilidade para competir em
nível internacional e manter a estabilidade social. (Veja olink) A população ativa está em
declínio desde 2010. A Alemanha necessita de 800 mil pessoas. Em 2060, haverá
50 milhões de pessoas a menos na Europa e o sistema previdenciário, com uma
população muito mais idosa, vai entrar em colapso.
Atualmente,
a expectativa de vida é de 80 anos para o homem e 85,7 para as mulheres. Em
2060 será de 91 para o homem e 94,3 para a mulher. A idade de 82% dos
refugiados sírios é inferior a 34 anos, e um estudo do ministério do Interior
da Áustria revelou que eles têm, em média, nível educacional superior ao do
cidadão austríaco. Por isso, o cidadão europeu deve ver os imigrantes como um
recurso e um apoio. Nenhuma campanha de sensibilização sobre este tema está em
marcha, porque politicamente não seria bem vista.
9)
A tendência é a contrária. Os partidos xenófobos cresceram em todas as últimas
eleições e pedem a expulsão dos imigrantes, como Donald Trump está fazendo nos
Estados Unidos. Isso, além de ser impossível, é também um erro político
trágico. A animosidade contra os muçulmanos, sem nenhum esforço para
compreender a complexa realidade, vai favorecer o terrorismo e radicalizar os
imigrantes que vêm para a Europa trabalhar e viver com dignidade.
10)
A conclusão final é que estamos caindo na armadilha de um choque de
civilizações, em que defendemos uma Europa cristã contra um mundo muçulmano
hostil. Este é o pior erro possível. Cai muito bem para a retórica do ISIS, já
que qualquer choque requer polarização. O aumento do medo e da insegurança
ajuda os partidos de direita radical e xenófobos a se apoderar da Europa.
A
polarização nunca foi útil para a democracia e a tolerância. Um grupo de no
máximo 50 mil militantes, num universo de 1,5 bilhões de muçulmanos, é capaz de
mudar nossa vida, reduzir nossa privacidade e as liberdades individuais, e
aumentar o militarismo e a vigilância.
Se
não conseguirmos escapar da armadilha do choque de civilizações, a Europa vai
mudar profundamente, porque o fenômeno do terrorismo permanecerá durante uma ou
duas gerações. Foram necessários quase dois séculos para a Europa se desfazer
das guerras de religião. Na Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), numa população
total de 79 milhões de pessoas, morreram oito milhões, em sua maioria civis.
Será
que a história nos ajudará a enfrentar o presente?
Sem comentários:
Enviar um comentário