Carvalho
da Silva – Jornal de Notícias, opinião
Nas
últimas décadas do XIX falou-se muito de possibilismo para designar estratégias
sindicais e políticas que, adotando a tendência de fuga à dureza do combate por
utopias emancipadoras, procuravam as oportunidades possíveis para obter
melhorias, nomeadamente nas condições de vida dos trabalhadores, no quadro das
instituições e das relações de poder existentes.
Aquele
possibilismo foi inviabilizado pela agudização da luta de classes, em
particular entre as duas grandes guerras do século XX para, de certa forma,
renascer depois, reformulado com nuances, em contexto novo e desafiador.
Sobressaía então, para milhões e milhões de seres humanos, a esperança na
construção de sociedades socialistas, processo esse em marcha em múltiplos
países, que deu imensa força à luta geral dos trabalhadores e dos povos. O
possibilismo surgia agora bastante enriquecido por valores da liberdade e da
democracia que se afirmaram na luta plural contra o nazismo.
O
espaço temporal que vai do final da II Guerra ao início dos anos 80 foi de
conquistas importantes para os trabalhadores e os povos, e de consolidação da
democracia. Este episódio de conciliação entre democracia e capitalismo - a que
alguns, sem rigor, chamam "intervalo" da luta de classes - ocorreu em
grande parte da Europa (e não só), num quadro em que ainda existia uma
limitação à liberdade de movimento dos capitais e das mercadorias, facto que
proporcionava às instituições políticas de Estados Sociais de Direito
Democrático um considerável ascendente sobre o poder económico.
Entretanto,
foi sendo, cada vez mais, tempo de acomodação descuidada a um pretenso sistema
misto que prometia o melhor de dois mundos. O estilo de vida propagandeado
dificilmente podia ser universal, mantinha-se a prevalência de lógicas
neocoloniais e foi-se instalando um conceito de competitividade negador do
desenvolvimento humano e da harmonização no progresso. Sob o pano de fundo
daquela trégua social, os capitais foram descobrindo novas formas de quebrar as
amarras que os mantinham ligados à terra dos compromissos e aceleraram novos
voos globais de domínio na produção e na finança.
Do
sucesso desses voos resultou uma forte compressão do poder das instituições
políticas democráticas e a perda do seu ascendente sobre o poder económico e
financeiro, fatores que nos levaram ao ponto onde hoje nos encontramos: o tempo
em que os "poderes soberanos" já não são capazes de cobrar impostos
aos capitais móveis e, pelo contrário, pagam-lhes tributo para os seduzir,
atrair ou impedir de escolherem outras paragens.
Este
tempo apresenta-nos esgotados os possibilismos ensaiados. Deixou de existir
espaço, entre os pingos da chuva das imposições do poder financeiro/económico,
para o progresso das condições de trabalho e de vida das populações. Os
governos que optam pelas receitas e regras do possibilismo instituído acabam
satisfazendo os interesses dos mercados e negando os mandatos populares com que
foram eleitos. Por tudo isso, as lutas tornaram-se muitas vezes defensivas,
quantas vezes de sucesso impossível e/ou reduzidas a rituais para persistência
de valores. O "possibilismo conservador" intrínseco ao pensamento
único, ao neoliberalismo, esse jamais será motor de mudança. O tempo de agora
é, pois, imperiosamente, o da afirmação do impossibilismo, em que a política não
pode ser já apenas a arte do possível.
É
preciso afinar a arte de forçar constrangimentos externos e internos. Inventar
vacas que voam, tentar o impossível uma e outra vez para que outros possíveis
aconteçam (Max Weber), partir "arcos da governação", estalar dentes a
pactos de estabilidade, moldar de outra forma ou até fazer estalar "uniões
de aço".
Há
que não fugir à exigência de realizar o aparentemente impossível, ou
desaguaremos rapidamente em desastre. Trabalhemos a ampliação de movimentos
sociais e culturais que alteram a favor dos povos as condições objetivas e
subjetivas necessárias a alternativas, trabalhemos a construção de identidades
entre os anseios dos povos e as agendas políticas, afirmando a natureza do
futuro a construir.
*Investigador
e professor universitário
Sem comentários:
Enviar um comentário