domingo, 4 de dezembro de 2016

O TRABALHO É A NOSSA POLÍTICA


Manuel Carvalho da Silva* - Jornal de Notícias, opinião

"O trabalho é a minha política". Quantas vezes já ouvimos esta frase? Em regra, tal afirmação tem por objetivo passar uma mensagem de perigosa desvalorização da política. Mas se quem a usa e dela abusa for capaz de refletir dois minutos sobre o que diz, pode descobrir que a frase talvez tenha impregnada uma excelente afirmação do sentido que a política deve ter. O trabalho é mesmo central, não apenas na economia, mas sim nas mais diversas áreas da sociedade e nas dimensões individual e coletiva da vida das pessoas. Por isso, ele tem de estar no centro da política.

Há setores políticos dos chamados centro e centro-esquerda que prosseguem num exercício de quadratura do círculo: tentam encontrar repostas para bloqueios económicos e sociais com que todos nos deparamos mantendo quase intactos os fatores geradores de precariedades, de inseguranças, de desvalorização dos salários, e credibilizando quadros de relações laborais assentes em poderes absolutamente desequilibrados, com os sindicatos em "estado de necessidade" e os trabalhadores entregues ao seu poder individual e à sua capacidade de "empregabilidade". Estas opções são essência do neoliberalismo, sustentam as injustiças, as desigualdades e a pobreza, e jamais permitirão à generalidade das pessoas melhorar as suas condições de vida.

O Governo do Partido Socialista - que tem base parlamentar de toda a esquerda - não pode fazer exercícios de encanar a perna à rã e resvalar para aquele caminho, por muito que se invoque a "realidade" do contexto europeu e internacional. Esta solução governativa, que sem dúvida vem gerando esperança e está a ser muito positiva para o país, precisa de ampliar e consolidar a sua identidade com a base social que a sustenta, sob pena de vir a criar uma enorme desilusão com consequências políticas desastrosas. Ao contrário do que afirmam alguns pregadores de serviço, as reformas de que Portugal necessita para se desenvolver terão de nascer de propostas e plataformas de políticas construídas com base à Esquerda, como aconteceu ao longo da nossa história. Isso não significa, de modo algum, diminuir diálogo social e político, colocar de lado ou secundarizar os outros setores da sociedade. Como tenho defendido neste espaço, o Governo tem de ser mais assertivo na discussão e na construção de compromissos responsabilizadores com os empresários e as suas organizações, com o poder económico e outras instituições. Conseguirá esse objetivo se for capaz de se apresentar com uma agenda coerente e compreensível para a maioria da população e se os seus interlocutores lhe reconhecerem força à partida.

Na discussão do emprego ou das relações laborais, o eixo de todo o debate não se situa na busca de equilíbrio entre os trabalhadores que têm emprego com direitos e os que estão totalmente desprotegidos. O eixo do debate tem de se situar na discussão do equilíbrio entre os fatores trabalho e capital ao nível do estabelecimento de salários justos, de tempos e condições de trabalho dignas, de sistemas de distribuição e redistribuição de riqueza qualificadores da sociedade, de estabelecimento de equilíbrio de poderes entre os representantes das duas partes em confronto e negociação.

Um sério combate à precariedade generalizada exige uma leitura séria do desemprego em todas as suas expressões. Por outro lado, considerar o chamado desemprego estrutural como mero resultado do desajustamento entre procura e oferta de mão de obra e entender que esse problema pode ser corrigido com mais formação pode tornar-se desastroso por duas razões muito concretas: primeira, o país precisa de um modelo de desenvolvimento que incorpore as formações, sob pena de estarmos a formar para "exportar" ou a iludir e a amesquinhar quem aposta na formação e na qualificação; segundo, por ser injusto e uma fraude inculcar nas pessoas a ideia que o ter ou não êxito na procura de trabalho ou na possibilidade de criar emprego se resolve, só ou fundamentalmente, pela iniciativa de cada pessoa.

Há que partir das diversas "realidades" com que nos deparamos e estruturar caminhos de negociação coletiva e de práticas nas relações laborais que harmonizem no progresso a nossa sociedade.

* Investigador e professor universitário

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