Caos
controlado – eis como frequentemente é denominada a política travada pela Casa
Branca no Oriente Médio e que muitas vezes leva à erupção de conflitos tribais,
guerras civis e tensões internas, tudo sob o lema dos sagrados valores
democráticos. A Sputnik explica quais são os motivos deste conceito de
intervenção e qual é o seu provável futuro.
O
dia tenebroso de 11 de setembro, por mais dramático e doloroso que seja, não
passou como apenas uma tragédia nacional. Segundo muitos analistas, também
lançou alicerces e serviu como uma espécie de pretexto para inicialização de
uma nova fase da política externa americana que se caracterizou por
intervenções de larga escala na região perturbada do Oriente Médio.Para tais
ações se usa todo o tipo de justificações e conceitos articulados, no âmbito
dos quais, com efeito, se pode motivar a ingerência em quase qualquer parte do
mundo, mascarada pelos valores da paz e humanitarismo.
De
boas intenções está o inferno cheio?
Um
dos princípios mais amplamente utilizados é a responsabilidade de proteger (em
inglês Responsibility to Protect ou R2P), que foi pela primeira vez
utilizado em um relatório da Comissão Internacional sobre Intervenção e
Soberania Estatal da ONU datado de 2011, e até hoje tem sido aproveitado para
justificar as chamadas “intervenções humanitárias” encabeçadas,
particularmente, por Washington.
A
ideia principal do conceito assenta na premissa de que em caso de impotência
dos governos internos em outros países, onde “se violam os direitos humanos ou
se efetuam crimes em massa”, a responsabilidade de impedir o desenvolvimento
ulterior da crise passa para a comunidade internacional (muitas vezes, isto
quer dizer um só país e todos sabem qual é).
Basta
ressaltar que o ativamente repercutido e debatido conceito de R2P se confrontou
com o conceito inverso do então governo brasileiro que, por sua vez, sempre foi
simpatizante da “força suave” nas relações exteriores. Em vez do conceito
americano, o governo petista, naquela época encabeçado pela presidente
destituída Dilma Rousseff, propôs seu princípio de responsabilidade ao proteger
que foi expressamente apoiado por muitos países em desenvolvimento. A
ideia-chave do conceito brasileiro trata da necessidade de obter uma permissão
oficial dos órgãos internacionais, em primeiro lugar do Conselho de Segurança
da ONU, ou um pedido formal das autoridades do país, antes de iniciar uma
intervenção militar ou “humanitária”. Mais que isso, tais autorizações devem
ser precedidas por uma análise escrupulosa e profunda da situação interna no
país-alvo da ingerência, sendo que todos os outros métodos pacíficos de solução
do conflito já se terão esgotado.
Nem
vale a pena explicar que a iniciativa brasileira, apesar de ter sido saudada
por muitos países-membros das Nações Unidas, nunca chegou a ser levada a sério
pelos mastodontes do palco internacional que, pelos vistos, têm suas próprias
“regras de comportamento”.
Mas
afinal, por que é que os EUA aspiram tanto a dominar no Oriente Médio sem ligar
a todas as consequências da sua política, baixas civis e militares
(inclusive deles próprios), dezenas de cidades destruídas, bilhões de dólares
gastos?
Primeiro,
uma camada vasta da elite política americana, primeiramente neoconservadora e
intervencionista liberal, com efeito, acredita em uma “missão especial”
atribuída aos EUA. Isto é, a promoção dos pilares democráticos em todo o mundo
que irrompeu, ganhando novo fôlego, com a Primavera Árabe em 2011.
Infelizmente, os arquitetos desta política frequentemente se esquecem de que
nem todos necessitam e querem esta democracia por diferença de mentalidade e
registro cultural.Em segundo lugar, não se pode descartar o enorme lobby
saudita e israelense no meio do Congresso americano que, efetivamente, afeta os
interesses nacionais de Washington e influi muito no seu bem-estar econômico.
Embora as atividades de lobby sejam formalmente proibidas pela legislação
nacional, ao longo dos últimos anos tem funcionado um evidente sistema de pesos
e contrapesos ente a Casa Branca e estes dois países mais prósperos da
atribulada região.
Efeito
de dominó: como a ‘praga americana’ alastrou pela região
Como
já foi ressaltado, o “advento” americano nos países árabes se iniciou,
principalmente, após os trágicos acontecimentos em Nova York no ano de 2001, ou
seja, os ataques do agrupamento terrorista Al-Qaeda que levaram quase 3 mil
vidas de cidadãos americanos. A ira foi grande, a sede pela vingança também. Em
outras palavras, era um momento ideal para iniciar uma campanha
intervencionista fora, sem necessidade de justificá-la, nem perante a
comunidade internacional, nem perante sua própria população.
Deste
modo, em 7 de outubro de 2001, os EUA iniciaram a operação Liberdade Duradoura
no território afegão, denominando como seu objetivo principal derrotar a
organização terrorista do Talibã. O governo talibã, com efeito, acabou perdendo
o poder e a força militar, porém, passou a travar uma guerra de guerrilha,
provocando ainda mais tensões e vítimas do conflito. Na sequência disso, a
intervenção americana no Afeganistão acabou por ser a guerra mais contínua na
história do país, arrastando por 13 anos, e, na avaliação de muitos cientistas
políticos, ainda aumentou o caos numa região que já não é controlada por
ninguém.
Se
a intervenção em território afegão foi mais ou menos compreensível para a
comunidade internacional e teve várias condições prévias, a ocupação do Iraque
(2003-2011) tem gerado muito mais polêmica pela ambiguidade de seus
argumentos. Os principais motivos usados na época pelo governo de George W. Bush
envolviam o alegado desenvolvimento de armas de destruição em massa iraquianas
e a suposta ligação entre o líder do país, Saddam Hussein, e a Al-Qaeda,
organização com a qual os EUA sonhavam acertar as contas. Entretanto, a
coalizão internacional encabeçada por Washington nunca recebeu nenhuma
resolução do Conselho de Segurança, o que, em princípio, se entende como uma
gravíssima violação do direito internacional.
O
presidente iraquiano acabou por ser executado pelos serviços secretos dos EUA,
enquanto o país ficou dilacerado pela guerra civil e, consequentemente, pela
insurgência de novos agrupamentos radicais como o Daesh. Porém, nunca ninguém
conseguiu apresentar as malditas provas do desenvolvimento de quaisquer
armas de destruição em massa em território iraquiano ou das respectivas
ligações criminosas do líder nacional.
Com
a erupção da chamada Primavera Árabe, vista por muitos como um fenômeno
artificial, estourou um novo conflito desastroso — a intervenção militar
na Líbia em 2011. No âmbito dela, as forças da OTAN fizeram questão em
criar uma zona de exclusão aérea no espaço aéreo líbio para que as forças
governamentais não pudessem atacar as forças rebeldes, aparentemente
apoiadas pelo Ocidente, o defensor da democracia.
É
interessante que, antes do colapso do “regime sangrento” de Muammar Kadhafi e
seu consequente assassinato, a Líbia tinha sido um dos países mais prósperos da
região, com produção petrolífera poderosa, subsídios sociais altos e serviços
de ensino e saúde pública gratuitos. Basta apresentar apenas um fato: na época,
o salário médio na Líbia somava mil dólares, enquanto o subsídio de desemprego
era de 700-800 dólares. Hoje em dia, o país se encontra em uma paralisia
econômica completa, um vácuo político e enfrenta uma pendente ameaça
terrorista. Estas são a “democracia e paz” que os países-membros da Aliança
Atlântica quiseram promover com seu conceito “responsabilidade de
proteger”?Ainda resta a Síria. O país que ainda continua lutando para não cair
sem regresso neste “caos controlado”, porém, as forças já são escassas. E
dá medo imaginar o que seria do país se os outros atores, inclusive a Rússia,
não tivessem forçado Washington a entrar em diálogo e tentar acordar com outros
as suas ações militares no país debilitado por extremismos de toda a
espécie.
Sob
governo Trump, a hegemonia americana no Oriente Médio chegará ao fim?
Hoje
em dia, são numerosos os políticos e especialistas que predizem a perda da
influência pelos EUA nesta região turbulenta. Para muitos é evidente que, no
contexto da ameaça jihadista eminente que que afeta todo o mundo sem exceção,
os EUA já não se podem posicionar como os atores principais, para não dizer
únicos, no Oriente Médio.
Aparecem
outros — inclusive a Rússia, o Irã e a Turquia, o que obriga Washington a
dialogar, por menos que ele o queira. Para os falcões americanos, isto pode
parecer um sintoma de fraqueza e simbolizar uma derrota, mas do ponto de vista
do senso comum — é um passo inevitável no caminho para a estabilidade regional.
Outra questão é se a Casa Branca deseja tal estabilidade.
Basta
sublinhar que no meio da elite americana o conceito agressivo de intervenções
no estrangeiro também perde cada vez mais terreno. Por exemplo, 10 anos atrás a
ocupação do Iraque era apoiada por dois terços do establishment americano. Já
em 2016, no decorrer das primárias e das próprias presidenciais, a campanha
iraquiana dos EUA foi criticada por todos os candidatos, caracterizada por
muitos como um “grande erro”.Há vários indícios que mostram que Washington já
não pode se nortear pelas regras do jogo estabelecidas por ele 15 anos atrás e
se comportar como se fosse a única voz forte na região. Isto se vê pela
política cada vez menos dependente e até ousada de Israel, levando em conta sua construção
de assentamentos não apoiada por Washington, pela compostura agressiva
do Irã e, claro, pelo papel russo cada vez mais crescente na solução do
conflito sírio.
Durante
o governo de Trump, parece que tudo vai depender da sua flexibilidade. Sendo um
homem de negócios, ele deve se dar de conta de que um compromisso é sempre mais
proveitoso e construtivo do que uma confrontação e tentar construir um diálogo
duradouro com os novos atores no Oriente Médio. Caso contrário,
as consequências podem ser desastrosas não só para a região, mas para todo
o mundo.
Oriente Mídia | Fonte Sputnik
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