Quais
são os verdadeiros alvos dos ataques dos EUA na Síria e Afeganistão e ameaças à
Coreia do Norte? É Damasco, Teerã e Pyongyang, ou seremos nós?
Nuno
Ramos de Almeida* | Outras Palavras
Na
edição de dezembro da excelente revista “piauí” publicava-se um texto do
jornalista da “New Yorker” Evan Esnos sobre o que seria o mandato de Donald
Trump à luz do seu programa e biografia. O artigo começa por nos revelar o
milionário por ele próprio. No seu livro “Como Ficar Rico”, de 2004, Trump
explica a sua genialidade: “As pessoas sempre ficam surpreendidas com a rapidez
com que tomo decisões importantes, mas aprendi a confiar em meus instintos e a
não pensar muito.” E acrescenta: “A descoberta de que a superficialidade pode
ser inteligente foi para mim uma experiência profunda.”
Evan
Esnos também mostra outros conselhos reveladores do atual presidente, em que
ele se orgulha de ser desconfiado e vingativo. “Se você não reage à altura,
então não passa de um idiota!”, escreveu em 2007. “Seja paranoico”, aconselhou
em 2000. Se a “superficialidade” é boa, Trump é genial.
Em
1984, com 30 e poucos anos, afirmou ao “Washington Post” que queria negociar os
acordos nucleares com os soviéticos. “Demoraria uma hora e meia para aprender
tudo sobre mísseis”, declarou. “E, de todo modo, acho que já sei quase tudo.”
Segundo Bruce G. Blair, investigador do Programa de Ciência e Segurança Global
da Universidade Princeton citado pelo jornalista da “New Yorker”, Trump, numa
reunião em 1990, encontrou um negociador americano de armas nucleares e
deu-lhe conselhos sobre como fazer um acordo “genial” com seu equivalente
soviético. Aconselhou-o a chegar atrasado, encarar o interlocutor, enfiar-lhe o
dedo no peito e dizer: “Fuck you!”
Há
pouco tempo, um ex-funcionário republicano da Casa Branca a quem Trump recorre
disse a Evan Esnos: “Honestamente, o problema com Donald Trump é que ele não
sabe o que não sabe.” Neste momento, o presidente Donald Trump terá sempre a
seu lado um assistente militar encarregado de levar a maleta de couro e
alumínio de 20 quilos com um “manual para a condução da guerra nuclear”. A
mala, conhecida na gíria da Casa Branca como a “bola de futebol”, tem uma lista
de alvos estrangeiros: cidades, arsenais e infraestruturas. Para dar início a
um ataque, Trump teria de, em primeiro lugar, comprovar a sua identidade a um
comandante na sala de guerra do Pentágono, confirmação que é feita mediante
códigos inseridos numa carteira de identidade única conhecida como “biscoito”.
(De acordo com Dan Zak, autor da obra recente sobre armas nucleares: “Almighty:
Courage, Resistance, and Existential Peril in the Nuclear Age”, “conta-se que
Jimmy Carter, certa vez, por acidente, enviou o ‘biscoito’ para a lavanderia.
Bill Clinton o teria perdido e durante meses não contou a ninguém”.)
O
problema da cara alaranjada de Trump e dos seus comentários sobre “as
maravilhosas” explosões ou o “fantástico” bolo de chocolate que comia enquanto
mandava atacar “o Iraque” é que todas essas coisas nos fazem pensar que o
ataque à Síria, a explosão “da mãe de todas as bombas” no Afeganistão e a
excursão de um porta-aviões nuclear, acompanhado de uma esquadra de ataque, às
costas da Coreia do Norte são fruto de uma imbecilidade pessoal agravada por
uma idade teimosa. Nada mais falso. Um imbecil pode provocar um acidente que
leve o planeta à guerra, mas a política permanente de conflito que está por
detrás do homem só pode ter chegado à Casa Branca porque corresponde a uma
corrente fundamental dos interesses de parte da elite financeira e política
norte-americana.
Há
anos circulava na América Latina uma anedota em que se perguntava e respondia a
uma questão: “Qual a razão por que não há golpes de Estado dos EUA?”, “Porque
lá não há embaixada norte-americana”, explicava a história. Washington têm um
história de promover invasões, intervenções armadas e conspirações noutros
países. Essas ações, profusamente legitimadas por uma comunicação social que
raramente tem capacidade de as investigar, são normalmente antecedidas de
acontecimentos que fazem parte da aceitação de uma ação violenta por parte da
opinião pública. O ditador Bashar al-Assad não é um menino de ouro, mas é
curioso que, numa altura em que está ganhando a guerra na Síria, resolva fazer
um ataque com armas químicas para matar 80 pessoas, a maioria das quais
crianças, permitindo assim colocar o seu poder em risco e legitimando a nova
intervenção dos EUA. A resposta de que Washington é uma “democracia” e os
“democratas” não se portam mal à mesa tropeça na história. Os EUA apoiaram e
apoiam – veja-se o caso da Arábia Saudita – algumas das mais sanguinárias ditaduras
do mundo. De tal forma que uma vez interrogado um presidente dos EUA sobre o
apoio da sua administração ao sanguinário ditador Anastasio Somoza, ele terá
retorquido: “É um filho da puta, mas é o nosso filho da puta.”
Os
EUA já inventaram várias vezes falsos pretextos para atacarem outros países. Em
1964, o presidente Lyndon B. Johnson e os serviços secretos norte-americanos
afirmaram que barcos dos EUA tinham sido atacados a 4 de agosto de 1964 no
golfo de Tonkin. Segundo eles, havia provas evidentes de que os navios tinham
sido atacados por unidade navais norte-vietnamitas. Com base nisso, aviões
norte-americanos bombardearam bases da armada norte-vietnamita e foi dada uma
ordem para a intervenção dos EUA diretamente na Guerra do Vietname.
Em
2005, documentos desclassificados revelaram que não houve nenhum ataque de
navios do Vietnã no golfo de Tonkin. E que a ordem que justificou a escalada
militar dos EUA já estava redigida muito antes do alegado incidente. Os
serviços secretos e a NSA falsificaram os registos das comunicações
norte-vietnamitas para tornarem credível a acusação e justificarem, perante a
opinião pública, o envolvimento militar direto na Guerra do Vietname.
A
sequência de acontecimentos e de ataques dos EUA tem mais alvos do que aparentemente
parece ter. Os mísseis dos EUA sobre a segunda maior base aérea da Síria têm
como alvo aparente Damasco, Teerão e Pyongyang, mas como alvo real o congresso
dos EUA e os aliados europeus, que se apressarão a fazer a genuflexão da praxe
às bombas do império. Os mísseis na Síria, a superbomba que destruiria uma
cidade como Lisboa, a exibição de força ao largo da Coreia do Norte servem para
mostrar poderio militar, pretendem legitimar Trump perante os norte-americanos,
afastar qualquer inquérito à ligação russa nas eleições e, sobretudo, mostrar
que os EUA continuam a mandar porque têm os maiores mísseis.
Todas
as projeções econômicas dão que os EUA estão perdendo a liderança da economia
mundial em poucas décadas. Estas recentes ações são muito menos fruto de uma
cabeça imprevisível com um penteado inconsequente do que parecem. A maior
potência militar mundial está a atuar como um grupo de segurança que vende os
seus serviços a discotecas: paguem-lhe que não terão problemas que eles
próprios podem criar. Washington está perdendo o poder econômico e quer
garantir de outra forma, se isso for necessário, a sua supremacia. A guerra
sempre foi a continuação da política por outros meios.
Voltemos
à história. Em 1899, os Estados Unidos da América discutiam no Congresso a
anexação das antigas colônias espanholas que tinham lutado pela sua
independência, nomeadamente as Filipinas. Nessa altura, o poeta britânico
Rudyard Kipling escreveu um poema apologético para declarar que o facho da
civilização tinha passado das mãos do Reino Unido. “O Fardo do Homem Branco”
defendia que passara a caber a Washington tratar dos selvagens para o bem
deles, sem contar com o seu agradecimento. Os nativos do mundo tinham de ser
dirigidos pelas potências ocidentais. Eram homens inferiores, de civilizações
fracas que precisavam ouvir a voz do dono. Os agitadores deviam ser castigados
e eliminados, se necessário por meios violentos. Os selvagens deviam ser
controlados, para seu bem. Assim começava a declaração da bondade civilizadora:
Tomai
o fardo do Homem Branco
Enviai
vossos melhores filhos
Ide,
condenai seus filhos ao exílio
Para
servirem aos vossos cativos;
Para
esperar, com chicotes pesados
O
povo agitado e selvagem
Vossos
cativos, tristes povos,
Metade
demônio, metade criança.
Entre
o consenso dos meios de comunicação e dos poderosos houve um homem que não se
calou. O escritor que assinava Mark Twain, autor d’“As Aventuras de Huckleberry
Finn”, respondeu com um artigo em plena euforia “civilizadora”, quando os
poderosos norte-americanos abriam garrafas de champanhe pela anexação das ilhas
do Havai, Samoa e Filipinas, de Cuba, Porto Rico e de uma ilhota que se chama,
eloquentemente, dos Ladrões. Perante isto, Twain faz uma singela proposta, pede
que se mude a bandeira nacional: que sejam negras, diz, as listas brancas, que
umas caveiras com tíbias cruzadas substituam as estrelas e que os EUA assumam a
verdadeira identidade de piratas.
*
Nuno Ramos de Almeida é jornalista português, editor-executivo do Jornal I
(www.ionline.pt).
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