Lincoln
Secco | Blog da Boitempo | São Paulo
Há
de fato um grande perigo de desencadeamento de uma guerra com armas
convencionais ou nucleares. Os loucos podem sempre provocá-la. Mas eles não
estão em Pyongyang, e sim em Washington
A
Coréia do Norte é um país. Esta verdade simples é inaceitável para a maior
parte da imprensa mundial. É como se aquela nação não tivesse o direito de
existir. Seria uma monarquia comunista, um país faminto e obsoleto ou uma
ditadura sanguinária e terrorista.
Ainda
que todas as coisas acima ditas fossem verdadeiras, nós acharíamos várias delas
em outros países do mundo apoiados pelo “Ocidente”. Por isso, ninguém está
interessado no povo da Coréia do Norte e muito menos em “libertá-lo”.
Depois
de ocupada pelo Japão, a Coréia foi de fato libertada pelos aliados em 1945. A
luta entre os comunistas e seus inimigos já mantinha o país dividido. Em 1950,
depois da desocupação, iniciou-se a Guerra Civil. Os EUA invadiram o norte e
capturaram a capital, Pyongyang, em outubro de 1950. Em apoio às tropas de Kim
Il Sung, os chineses entraram secretamente na Coréia do Norte e iniciaram uma
ofensiva. Depois de conquistarem Seul, os chineses sofreram a contra-ofensiva e
recuaram até o famoso paralelo 38, que divide as duas Coréias. As lutas
encarniçadas por posições no território coreano se prolongaram até julho de
1953.
A
partir da implantação da Ditadura em 1961, a Coréia do Sul teve amplo progresso
industrial. O norte, isolado (salvo pelo apoio chinês), teve que se manter com
escassos recursos naturais. A ideologia Zuche, adotada pelo país, significa a
perene busca da autonomia econômica e da soberania política. Mas o isolamento
diplomático obrigou Kim Il Sung a destinar grande parte de seu orçamento para a
defesa, visto que seu adversário não são as tropas sul-coreanas, mas o Exército
dos EUA.
Sem
as Forças Armadas descomunais que possui, a Coréia do Norte há muito teria
sucumbido. E como qualquer país armado até os dentes, não se pode esperar que
lá vigore a mais pura “democracia”. A propaganda difundida pela imprensa
estadunidense e reproduzida no Brasil mostra o atual líder do país como o maior
perigo à paz mundial. Adjetivos como louco, terrorista e lunático incrementam o
medo das pessoas. Afinal, o “louco” é um jovem com armas nucleares!
Durante
meio século, os sucessivos governos dos EUA desenvolveram artefatos nucleares.
Os EUA foram o único país do mundo a agredir outro país com tais armas. Mas
ninguém diz que há tresloucados com armas nucleares por lá. Nem mesmo na época
da gang de Bush (aliás, continuador da dinastia de seu pai…), que ocupara antes
a presidência. Como todos sabem, as eleições estadunidenses são indiretas e,
mesmo assim, Bush Junior ganhou-as mediante fraude.
Se
Kim Jong-un ou qualquer outro líder é louco, não sabemos. O fato é que sua
política de ameaças faz todo o sentido e reflete a razão de Estado de um país
sitiado há mais de 50 anos. Abdicar da possibilidade da guerra seria render-se
e desintegrar o sistema socialista vigente. Que inimigos de esquerda ou direita
o queiram, é compreensível. Mas acreditar que um estadista abandonaria o poder
sem lutar é uma ilusão. Se ameaçado por uma invasão, poderia sim apelar para
uso de qualquer armamento. E os generais dos EUA, que não ignoram as
lições de Clausewitz, sabem que a guerra leva a uma escalada para os extremos.
Seria
louvável que os governos fossem varridos e as comunidades dispusessem para si
dos trilhões de dólares que já foram gastos no mundo todo com a violência dos
Estados entre si ou contra seus cidadãos. Mas mudar a razão das guerras não
está em discussão aqui. O que está em jogo é mais uma progressiva propaganda do
governo dos EUA para destruir um país. Já vimos a mesma história mentirosa
sobre as armas de destruição em massa de Saddam Hussein.
Há
de fato um grande perigo de desencadeamento de uma guerra com armas
convencionais ou nucleares. Os loucos podem sempre provocá-la. Mas eles não
estão em Pyongyang, e sim em Washington.
*Lincoln
Secco é professor de História Contemporânea na USP. Publicado originalmente no Blog
da Boitempo.
-
em Opera Mundi
Sem comentários:
Enviar um comentário