Mariana
Mortágua* | Jornal de Notícias | opinião
Portugal
ganhou a Eurovisão, e o país emocionou-se. É compreensível que assim seja. Mas
também é justo pedir que não percamos o pé, a noção precisa do Mundo que avança
apesar do nosso alheamento. Pelo menos em teoria, a Eurovisão pretende celebrar
e evocar princípios de tolerância, de encontro de nações e culturas de dentro e
fora da Europa. É difícil por isso compreender que essa celebração possa ser
tão asséptica, tão artificialmente alienada da violência que, de tão
banalizada, já não merece especial atenção.
Ficámos
a saber na semana passada que as autoridades italianas deixaram morrer 268
pessoas, entre elas 60 crianças, que fugiam da guerra pela Líbia. E a palavra
"deixaram" neste contexto não é simbólica. A guarda costeira italiana
esteve ao telefone durante cinco horas com um médico sírio que implorava ajuda
enquanto afundava com os restantes 267 refugiados perto de Lampedusa, e nada
fez. São só mais algumas centenas a juntar aos milhares que já perderam a vida
a tentar atravessar o mar que não é mais que um muro que a Europa mantém
guardado e armado para impedir uma passagem segura.
Pode
a Eurovisão resolver um problema político e humanitário desta dimensão?
Certamente que não. Mas isso não quer dizer que lhe deva ficar indiferente. E
teria ficado, não fosse o gesto de Salvador Sobral. Com a naturalidade de quem
só está a fazer a coisa certa, o candidato português escolheu usar a sua
visibilidade para revelar o drama de outros, de todos na verdade.
Tenho
o maior respeito pelo pequeno gesto de Salvador Sobral porque sei que ele é
muito importante, e que o mais fácil é sempre ficar na redoma esterilizada da
indiferença. Mas sair dela requer, para além de gestos individuais solidários e
generosos, como este, assumir que este é um problema político de enormes
proporções.
Discutir
a "crise dos refugiados" passa por encontrar as melhores formas de
acolher quem consegue chegar, mas também compreender porque se rejeita aos
restantes a hipótese de uma vida. Implica questionar e rejeitar a política de
militarização das fronteiras europeias, os campos de detenção temporária ou os
pagamentos à Turquia para servir de tampão a esta vaga de gente que foge à
morte. É da solidariedade e do humanismo, mas também da posição política de
cada país sobre todas estas matérias, que se forjarão as mudanças que de facto
podem fazer a diferença.
Obrigada
ao Salvador, pelo pequeno gesto que nos orgulhou e que nos interpela para as
grandes escolhas, e parabéns.
*
Deputada do BE
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