Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite* | Porto Alegre | Brasil
“Não
é só a morte que iguala a gente. O crime, a doença e a loucura também acabam
com as diferenças que a gente inventa.” (Lima Barreto)
Há
136 anos, numa sexta-feira, em 13 de maio de 1881, no Rio de Janeiro, nascia
Afonso Henriques Lima Barreto. Filho de descendentes de escravos, seu pai João
Henriques de Lima Barreto era tipógrafo da Imprensa Nacional e sua mãe Amália
Augusta, professora primária. O casal teve quatro filhos. Ao completar sete
anos de idade, o futuro escritor e jornalista ficou órfão da figura materna,
que o introduziu no universo das primeiras letras. Lima Barreto iniciou os seus
estudos no Liceu Popular de Niterói.
Ao
perder o emprego, o pai passou a trabalhar como almoxarife numa colônia de
alienados na Ilha do Governador (RJ). A nova atividade fez com que a família se
mudasse para uma casa que se localizava dentro da área do hospício, onde lá
permaneceu por quase dez anos.
Seu
pai, diante das dificuldades econômicas, contou com o apoio de Afonso Celso de
Assis Figueiredo (1836-1912) - visconde de Ouro Pedro - que era padrinho de
Lima Barreto. Este viabilizou, com o seu prestígio político, o ingresso do
menino no Ginásio Nacional (Pedro II). No ano de 1897, Lima Barreto passou a
frequentar o curso de Engenharia da Escola Politécnica, que não foi concluído.
Nesta escola, ele era o único aluno negro.
O
funcionário público
A
vida seguia seu curso normal, quando, em 1902, Lima Barreto se deparou com o
inesperado: a loucura de seu pai e a responsabilidade de assumir o sustento da
família. Embora os problemas enfrentados, ele estreou, naquele ano, na
imprensa estudantil, escrevendo artigos na revista universitária A Lanterna,
não poupando os vaidosos professores. Ainda neste período, mudou-se com
sua família para o subúrbio do Rio de Janeiro. Na capital do Império,
candidatou-se, em 1903, a uma única vaga na Secretária de Guerra num concurso
público, obtendo 2ª lugar. Devido à desistência do candidato concorrente,
assumiu o cargo de escrevente, aos 22 anos de idade, recebendo, como
escrevente, um modesto honorário.
Surge
o romancista
Empregado,
ele se mudou para o bairro Todos os Santos no Rio de Janeiro. Em sua nova
residência, em 1904, começou a escrever a primeira versão do seu romance “Clara
dos Anjos”, tratando, com preciosismo, questões socioeconômicas ligadas à
escravidão no Brasil. Fato curioso é que Lima Barreto nasceu, no dia 13 de
maio, sete anos antes da Abolição da Escravatura (1888), cuja data tornar-se-ia
uma efeméride alusiva à assinatura da Lei Áurea pela princesa Isabel.
O
livro “Clara dos Anjos” foi concluído entre os anos de 1920 e 1922. Lima
Barreto não chegou a vê-lo publicado, pois foi editado somente em 1948. A obra,
na realidade, diferencia-se do seu esboço original. O próprio autor assim
declarou: “Saiu coisa bem diferente, se bem que o fundo seja o mesmo”. Em suas
duas versões, a protagonista Clara é vítima da sua condição de mulher negra e
pobre. Na realidade, o cerne da trama permaneceu inalterado: trata-se da
estória de uma jovem mulata que se envolve, amorosamente, com um rapaz branco e
de condição socioeconômica superior, que se recusa a contrair matrimônio, para
consertar o “malfeito”.
O
crítico mordaz e a imprensa
Colaborador
na famosa revista Fon-Fon (1907-1958), Lima Barreto fundou também, com amigos,
em 1907, a revista Floreal. Embora tenha circulado apenas quatro edições desta
última, ela acabou por despertar atenção do crítico literário José Veríssimo
(1857-1916). Nela, ele começou a escrever o folhetim “Recordações do Escrivão
Isaías Caminha”, editado, na forma de livro, em 1909, em Portugal, pela
Livraria Clássica Editora. No primeiro capítulo, há uma nota autobiográfica,
conferindo um tom de pessoalidade no trato de questões relativas à etnia negra
e à classe social.
O
romance que polemizou
Em
“Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, estão presentes os percalços, os
preconceitos sociais e étnicos, que são vivenciados, pelo personagem negro, na
busca de sua ascensão profissional na carreira jornalística. O protagonista,
após diversas dificuldades, consegue um emprego de escrivão de um jornal, porém
só é promovido por ter descoberto seu chefe e sua amante em uma noitada de
orgia. Com esta publicação, Lima Barreto se tornou “persona non grata” em
relação a outros grandes jornais do Rio de Janeiro, principalmente do Correio
da Manhã (1901-1974).
No
livro, este jornal assume o título fictício de “O Globo”. Curiosamente, mais
tarde, Irineu Marinho (1876-1925) fundou, em 1925, no Rio de Janeiro, um jornal
com o mesmo título, que completa, em 2017, os seus longevos 92 anos de
fundação.
De
acordo com a historiadora Lila Schwarcz, que lançará, em junho de 2017, uma
biografia de Lima Barreto, ele foi um crítico implacável em relação ao
jornalismo da sua época. O trecho da pág. 92, do livro, ratifica a
opinião da historiadora:
“A
Imprensa! Que quadrilha! Fiquem vocês sabendo que, se o Barba-Roxa
ressuscitasse [...] só poderia dar plena expansão à sua atividade se se fizesse
jornalista...”
Embora
o conflito que se estabeleceu, Lima Barreto havia realizado uma série de
reportagens no importante jornal Correio da Manhã. Nele, a obra ”O
Subterrâneo do Morro do Castelo” foi originalmente publicada, em 1905, sendo o
livro editado somente em 1997. Na realidade, devido às críticas presentes em
“Memórias do Escrivão Isaías Caminha”, os donos dos importantes periódicos do
Rio de Janeiro, passaram a ignorar a figura de Lima Barreto. Ainda neste período,
ele começou a escrever o romance “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá”, trazido
a público somente em 1919.
Frequentador
assíduo da Biblioteca Nacional, nosso escritor passou a dedicar-se, de forma
intensa, à leitura dos clássicos da literatura mundial, assim como dos
escritores da sua época, a exemplo de João do Rio (1881-1921) e Machado de
Assis (1939-1908), Em relação ao primeiro, devido às contundentes críticas
presentes em “Recordações do Escrivão Isaías”, este acabou divergindo de Lima
Barreto.
Em
1910, ano em que o cometa Halley cruzou os céus novamente, Lima Barreto fez
parte do Júri, no caso “Primavera de Sangue”, e condenou os militares acusados
de participarem do assassinato de um estudante. A partir deste episódio, nosso
escritor teve todas as suas promoções, na Secretaria de Guerra, inviabilizadas.
A
contribuição literária nos periódicos da época
Um
ano depois, em 1911 num período de apenas três meses, Lima Barreto escreveu uma
das obras mais importantes da sua trajetória literária: “Triste Fim de
Policarpo Quaresma”. Impresso, como folhetim, no Jornal do Commercio
(1827-2016), o livro foi lançado, em 1915, conforme comento, no discorrer deste
texto, por uma questão cronológica.
Na
Gazeta da Tarde (1880 -1887), Lima Barreto publicou, em 28 de abril de 1911,
seu famoso conto “O homem que sabia Javanês”. O protagonista, o malandro
Castelo, afirma ser um grande estudioso do idioma javanês quando, na realidade,
trata-se de um grande engodo. Usando deste artifício, o personagem consegue enganar
boa parte da sociedade carioca da época, visando à sua ascensão na carreira
política, na vida acadêmica e diplomática. Mais tarde, publicou-se uma
coletânea, que, além deste conto, reuniu mais quatro títulos do autor: “'Um
especialista”, “A nova Califórnia”, “Miss Edith e seu tio” e “Como o homem
chegou”.
Em
1911, na Gazeta da Tarde (1880 -1887), Lima Barreto registrou o que ficou
gravado na sua retina, quando, aos sete anos, assistiu a uma missa campal, em
alusão a Abolição da Escravatura (1888), em companhia de seu pai. Segue um
trecho:
“(...)
fazia sol e o dia estava claro. Jamais, na minha vida, vi tanta alegria. Era
geral, era total; e os dias que se seguiram, dias de folgança e satisfação,
deram-me uma visão da vida inteiramente de festa e harmonia”.
Lima
Barreto sempre buscou, durante a sua existência, vivenciar a harmonia daquela
tarde de 1888, constituindo-se esta, em sua visão, a essência de uma autêntica
esperança de uma convivência mais justa e fraterna.
Excelente
cronista de costumes do Rio de Janeiro, Lima Barreto também colaborou para
diversas e importantes revistas literárias, como "Careta"
(1908-1960), "Fon-Fon" (1907-1958) e "O Malho" (1902-1954).
O
alcoolismo
No
ano seguinte, em 1912, Lima Barreto publicou dois fascículos das “Aventuras do
Dr Bogóloff” e dois livretos de humor, um deles na revista “O Riso”
(1911-1912). Infelizmente, neste período, nosso escritor passou a ter sérios
problemas com o alcoolismo, porém seguia colaborando na imprensa.
Sofrendo de alucinações, entre agosto e outubro de 1914, foi internado no
Hospital Nacional dos Alienados.
Em
1915, o jornal A Noite (1911-1957) publicou, na forma de folhetim, a sátira
política “Numa e a Ninfa”. Neste período, Lima Barreto iniciou uma longa
participação na famosa revista carioca Careta (1908-1960), na qual colaborou
com artigos sobre os mais variados assuntos, predominando os de teor político.
Triste
Fim de Policarpo Quaresma
Depois
de ter sido publicado, em folhetim, “Triste Fim de Policarpo Quaresma” é
lançado, em 1915, na forma de livro, pela Editora Typ. "Revista dos
Tribunaes". Lima Barreto, nesse período, teve que recorrer a
empréstimos financeiros para publicá-lo. Este clássico da nossa literatura
situa-se na transição de dois períodos literários: o Realismo e o
Pré-Modernismo. Com a objetividade, na forma de escrever, e o uso de um
racionalismo, que se expressa por meio da realidade, a obra é retratada
sem as idealizações românticas.
O
personagem principal, o Major Policarpo Quaresma, foi chamado, pelo intelectual
Alfredo Bosi, de o grande “Dom Quixote” nacional. (BOSI, 2006, p. 318).
Trata-se, na realidade, de um personagem absorvido pelo sentimento nacionalista
dos primeiros anos da República Velha (1889 -1930).
O
livro, em síntese, é uma narrativa dos ideais e frustrações do funcionário
público Policarpo Quaresma. Homem metódico, nacionalista fanático e sonhador,
Policarpo se dedica ao estudo das riquezas do Brasil, valorizando a cultura
popular, a fauna, flora e a hidrografia. Entre outras atitudes, de
extremo ufanismo do protagonista, ocorreu quando este sugeriu a substituição do
idioma Português - nossa língua oficial - pelo Tupi-Guarani. As atitudes de Policarpo
foram julgadas como bizarras e doentias, resultando em sua internação. Segue um
trecho do livro, no qual Policarpo propõe a mudança da nossa língua oficial:
(...)
“Demais, Senhores Congressistas, o tupi-guarani, língua originalíssima,
aglutinante, é verdade, mas a que o polissintetismo dá múltiplas feições de
riqueza, é a única capaz de traduzir as nossas belezas, de pôr-nos em relação
com a nossa natureza e adaptar-se perfeitamente aos nossos órgãos vocais e
cerebrais, por sua criação de povos que aqui viveram e ainda vivem” (...)
Durante
a narrativa - presente na obra- cresce o abismo entre as questões ideológicas,
sustentadas pelo personagem, e o mundo real que é retratado pelo autor. Narrada
na terceira pessoa, a obra “Triste Fim de Policarpo Quaresma” foi adaptada para
o cinema, tendo como ator principal o gaúcho Paulo José. Lançado em 1998, o
roteiro é de Alcione Araújo e a direção de Paulo Thiago. O filme “Policarpo
Quaresma, Herói do Brasil” apresenta, com muito humor, trechos importantes da
obra de Lima Barreto, como Policarpo se deitando de bruços na relva, para fazer
sexo, com sua terra, tal a dimensão surreal do seu nacionalismo.
Na
forma de quadrinhos, a obra “Triste Fim de Policarpo Quaresma” foi lançada, em
2013, visando a uma leitura compreensível, pelo público juvenil, na fase
escolar. Edgar Vasquez e Flávio Braga foram os responsáveis por transformá-la
em quadrinhos.
Lima
Barreto, sempre mergulhado no mundo das ideias e preocupado com as questões
sociopolíticas, passou a escrever no semanário político ABC. Em julho de 1917,
passou às mãos do editor, J. Ribeiro dos Santos, os originais do satírico “Os
Bruzundangas”, que foi publicado somente, em 1922, um mês após a sua morte.
Neste livro, o autor registra os laços de nepotismo, corrupção e a sonegação de
impostos que estão presentes de forma exacerbada na Primeira República
(1889-1930).
A
negativa da Academia Brasileira de Letras (ABL)
Diante
da sua intensa produção literária, nosso escritor se candidatou à vaga na Academia
Brasileira de Letras (ABL), porém o seu pedido de inscrição não foi sequer
avaliado. Lima Barreto, embora muito aborrecido, seguiu o seu caminho na
literatura, lançando a 2ª edição de “Recordações do Escrivão Isaías Caminha” e,
na forma de livro, o folhetim “Numa e a Ninfa”. Lima Barreto, neste período,
passou a colaborar, com suas crônicas, na imprensa alternativa da época, tendo
escrito para os jornais: A Lanterna, ABC e Brás Cubas.
Ao
final de 1918 e início de 1919, Lima Barreto permaneceu internado no Hospital
Central do Exército devido às contusões sofridas durante alucinações
alcoólicas. Aposentado, em dezembro de 1918, por meio de decreto presidencial,
mudou-se, novamente, de residência, para a Rua Major Mascarenhas, no bairro
Todos os Santos, onde viveu o resto da sua existência na famosa Vila Quilombo.
Neste
ínterim, devido a um artigo crítico à etnia negra, deixou de colaborar no
semanário político ABC. Neste período, também colocou à venda o romance, que
havia começado a escrever há 10 anos: trata-se de “Vida e Morte de M. J.
Gonzaga de Sá”. Revisto por ele mesmo e mandado datilografar pelo editor
Monteiro Lobato (1882-1948), este foi o único de seus livros a observar tais
cuidados. Esta obra recebeu aplausos de intelectuais importantes, como João
Ribeiro (1860-1934) e Alceu Amoroso Lima (1883- 1983). Neste livro, o Rio de
Janeiro se configura numa entidade com vida própria, que se autoconsome num
eterno confronto existencial entre o antigo e o novo.
Com
o retorno tão positivo, em relação a sua produção literária, Lima Barreto se candidatou, pela segunda vez, à vaga, na Academia Brasileira de Letras,
(ABL) deixada por João do Rio (1881-1921), que havia se afastado em virtude de
desentendimentos com o poeta Humberto de Campos (1886-1934). Desta vez, sua
candidatura foi aceita, porém não conseguiu ser eleito.
Infelizmente,
o fantasma do alcoolismo e da depressão continuava a assombrar o nosso
escritor. Certa vez, Monteiro Lobato se deparou com Lima Barreto, totalmente,
embriagado e maltrapilho, optando, então, por não cumprimentá-lo, evitando o
constrangimento diante daquela situação.
A
doença se agrava
Em
1919, vivenciando uma forte crise nervosa, ele foi internado, pela segunda vez,
no Hospital Nacional dos Alienados, Esta sofrida experiência resultou em
anotações, que deram origem aos primeiros capítulos do livro “Cemitério dos
Vivos”, no qual está presente o universo cruel e desolador de um hospício,
marcado pelo espectro da loucura. Autobiográfico, o livro nos
apresenta o autor revoltado com injustiças e preconceitos que sofria por meio
do narrador-protagonista, Vicente Mascarenhas, cuja existência, como a do
autor, foi pontilhada por tragédias pessoais. Póstuma, esta obra foi publicada,
na íntegra, somente em 1956.
Lima
Barreto, em “Cemitério dos Vivos”, tornou público o cotidiano de um hospício,
criticando o seu sistema anacrônico e carcerário ao tratar seus internos. Segue
dois pequenos trechos desta magnífica e vanguarda obra:
“Muitas
causas influíram para que eu viesse a beber, mas, de todas elas, foi um
sentimento ou pressentimento, um medo, sem razão nem explicação, de uma
catástrofe doméstica sempre presente.” / (,,,) “Choques morais,
deficiência de inteligência, educação, instrução, vícios, todas essas causas determinam
formas variadas e desencontradas de loucura; e, às vezes, nenhuma delas o é ”.
No
ano de 1920, o seu livro “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá” concorreu ao
prêmio da Academia Brasileira de Letra (ABL) de melhor livro publicado no ano
de 1919 e ganhou uma menção honrosa. Ainda no mesmo ano, as livrarias passaram
a vender o seu livro de contos “Histórias e Sonhos”, e Lima Barreto entregou ao
seu amigo e editor, F. Schettino, os originais de Marginália, que constavam de
artigos e crônicas publicados na imprensa da época. Esta coletânea foi editada
em 1953.
Diário
Íntimo
Em
seu “Diário Íntimo” (1903-1821), que foi também, postumamente, publicada a
primeira edição, em 1953, o autor nos traz um relato humano pontuado pelo
sofrimento e por uma incisiva denúncia de racismo. Nele, Lima Barreto nos
deixou registrado: “É difícil não nascer branco” / “a raça para os brancos é
conceito, para os negros pré-conceito.” Segue um breve, trecho, no qual o autor
declara a sua propensão ao suicídio:
“Desde
menino, eu tenho a mania do suicídio. Aos sete anos, logo após a morte de minha
mãe, quando fui acusado de furto tive vontade de me matar.”
Em
janeiro de 1921, “Cemitério dos Vivos” teve um trecho publicado, na Revista
Souza Cruz (1916-1935), com o título “As origens”. Estas memórias manuscritas
não foram concluídas por Lima Barreto. Em abril daquele ano, ele fez uma viagem
à cidade de Mirassol, em São Paulo, onde o médico e amigo, Ranulfo Prata,
tentou, sem êxito, recuperar a frágil saúde do nosso escritor.
Retornando
ao Rio de Janeiro, ele se reclusou em sua modesta casa em Todos os Santos,
passando a receber apenas alguns amigos e a sua irmã Evangelina. Esta se
desdobrou, em relação à saúde do irmão, com cuidados e dedicação integral. Lima
Barreto procurou reagir à doença, embora as internações e o estigma da loucura
de seu pai. Uma das formas de lutar contra a doença era manter o hábito de
passear pela sua amada cidade do Rio de Janeiro e, na privacidade, dedicar-se à
leitura e à escrita.
Em
julho de 1921, Lima Barreto, pela terceira vez, tentou o ingresso na Academia
Brasileira de Letras (ABL) retirando, porém, a sua candidatura. Segundo o
próprio autor, a atitude foi tomada “por motivos inteiramente particulares e
íntimos”.
Nos
últimos meses, que ainda lhe restavam, Lima Barreto entregou os originais de ‘
Bagatelas, que reuniu uma produção literária, no período de 1918 a 1922,
destacando as agruras do nosso país e do mundo após a Primeira Guerra Mundial
(1914-1918). Esta obra também póstuma foi publicada em 1923.
Na
Revista Souza Cruz, de outubro /novembro de 1921, foi publicada a conferência “O destino da literatura”, cuja apresentação Lima Barreto não conseguiu
realizar na cidade de Rio Preto, em São Paulo, próxima a Mirassol. Em dezembro
de 1921, ele iniciou a segunda versão de seu romance “Clara dos Anjos” – já
comentado no texto – terminado no início de 1922.
No
mês de maio de 1922, a revista “Mundo Literário” publicou o primeiro capítulo
de “Clara dos Anjos”. Neste período, os originais de “Feiras e Mafuás”- uma
coletânea de artigos e crônicas – foram entregues por Lima Barreto, visando à
sua publicação, que ocorreu mais tarde , em 1953, pela Editora Mérito.
O
Anarquista
Lima
Barreto foi um dos poucos literatos brasileiros a se interessar pela literatura
russa e ler com afinco seus autores. Após a Revolução Russa de 1917, ele se
tornou anarquista. Nosso escritor foi um defensor dos animais, um crítico
mordaz do academicismo e do feminismo. Quanto a este último, ele apontava falta
da participação e inclusão das mulheres negras.
Ao
se referir à sua “cor”, ele usava a expressão “pele cor de azeitona escura”, e
tinha um olhar bastante crítico e desconfiado em relação à Lei Áurea (1888),
deixando registrado em um diário: “liberdade era uma palavra que eu desconfiava
e não confiava”.
Em
resposta ao preconceito racial e à exclusão social sofrida, em seu cotidiano,
nosso escritor escrevia sobre estes temas de forma contundente e mordaz.
De acordo com a historiadora e antropóloga, Lila Schwarcz, que, em junho
de 2017, lançará uma biografia de Lima Barreto a sua intenção era de fato
polemizar: “Ele achava que os negros só poderiam ser socialmente integrados
através da luta e do constante incômodo. Por isso, denunciava que a escravidão
não acabou com a abolição, mas ficou enraizada nos menores costumes mais
simples”.
Em
sua obra, ele não aborda somente o centro do Rio de Janeiro, mas principalmente
os subúrbios, os seus habitantes; descrevendo, com detalhes, as estações de
trem, os transeuntes, as ruas, os bares, os costumes, as tradições populares,
as violências e opressões, deixando, de lado, a elite burguesa.
Lima
Barreto escreveu romances, sátiras, contos, crônicas e críticas, abordando as
injustiças sociais presentes numa sociedade elitista e excludente.
Crítico feroz do regime oligárquico da República Velha (1889-1930), ele
foi o elo de transição entre o Realismo e o Modernismo. Detentor de um estilo
literário que divergia dos padrões da sua época, sua escrita era fluente,
coloquial e despojada.
A
morte do escritor
Os
problemas de saúde de Lima Barreto, ao longo dos anos, foram se agravando, pela
presença do reumatismo, do alcoolismo, entre outros padecimentos. No dia 1º de
novembro de 1922, aos 41 anos, ele faleceu devido a um colapso cardíaco.
Nosso
escritor morreu no “Dia de Todos os Santos”, que, por ironia do destino, é o
nome do bairro carioca onde ele viveu tantos anos. Junto ao seu corpo, foi
encontrado um exemplar da “Revue dês Deux Mondes” que era a sua preferida. Dois
dias após o seu falecimento, foi a vez de seu pai. Ambos se encontram
sepultados, no Rio de Janeiro, no Cemitério João Batista, conforme o desejo de
Lima Barreto.
Vários
críticos literários consideram que Lima Barreto preparou o terreno para a
vanguarda, representada, na Semana de Arte Moderna, de 1922, pelos escritores
modernistas e suas propostas de transformação e de novos conceitos literários.
O
trabalho literário de Lima Barreto foi recuperado, após duas décadas da sua
morte, por seu biógrafo Francisco de Assis Barbosa, que foi o responsável pela
organização da obra completa do nosso escritor. Os originais, que se
constitui num belo acervo da sua intensa produção, foram comprados, em 1949,
pela Biblioteca Nacional onde está preservado, atualmente, na Divisão de
Manuscritos.
A
obra do nosso escritor já esteve também, em vários momentos, presente no
teatro: Triste Fim de Policarpo Quaresma (1978 /1994), “O homem que sabia
Javanês (1986)”, “Cemitério dos Vivos” (1993) e “Estação Terminal” (2008).
Embora
a invisibilidade e o preconceito presentes no transcorrer da sua existência,
Lima Barreto, finalmente, assume o merecido lugar no panteão dos grandes nomes
da literatura nacional, que, devido ao seu talento, aliado ao brilhantismo
intelectual, há muito tempo, já deveria ter ocupado.
* Pesquisador
e Coordenador do setor de imprensa do Musecom
Bibliografia:
BOSI,
Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006.
BARBOSA,
Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: José Olympio
Editora, 2002.
CEREJA,
William Roberto e MAGALHÃES, Thereza Cochar. Literatura Brasileira em diálogo
com outras literaturas. 3 ed. São Paulo, Atual editora, 2005.
ENGEL,
Magali Gouveia. “Gênero e Política em Lima Barreto”. In: Cadernos Pagu. Nº 32
jun / 2009.
NOLASCO-FREIRE,
Zelia. Lima Barreto: Imagem e Linguagem. Sâo Paulo: Annablume, 2005.
PRADO,
Antonio Arnoni. Lima Barreto: o crítico e a crise. Rio de Janeiro: Cátedra,
1976.
VÍDEO
: Depoimento de um grande intelectual do movimento negro no Brasil : Joel
Rufino dos Santos (1941-2015)
1 comentário:
"De acordo com a historiadora e antropóloga, Lila Schwarcz...." No lugar de Lila, leia-se Lilia. O autor
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