Eurico
Correia Monteiro | Expresso das Ilhas | opinião
É
comum ouvir-se dizer que os juristas são imaginativos e que os bons juristas
são mesmo muito imaginativos. Acredito piamente que a imaginação faz falta a um
bom jurista, mas o certo também é que o excesso de imaginação convola-se
rapidamente em defeito, pois que exige para a sustentação da tese a
hiperbolização de pressupostos ou de efeitos.
Indiciar
o propósito anunciado pelo Governo de Cabo Verde, de isentar cidadãos europeus
de vistos de entrada no país, de inconstitucionalidade material, por ofensa aos
princípios de independência nacional, de igualdade entre os Estados e da
reciprocidade de vantagens, é, claramente, indefensável do ponto de vista
estritamente técnico.
Em
primeiro lugar - e isso não é importância menor – não parece tratar-se de uma relação
entre o Estado de Cabo Verde e demais Estados europeus, mas simplesmente de uma
relação entre o Estado de Cabo Verde e os cidadãos europeus, fundada
numa numa decisão unilateral pela qual se reconhece se a esses cidadãos o
direito de visitarem Cabo Verde sem necessidade de uma autorização
administrativa prévia e expressa.
Em
segundo lugar, mesmo que se tratasse de uma relação entre Estados – e não se
trata - é o próprio autor da tese, o ilustre Dr. Benfeito Mosso Ramos (BMR),
quem denuncia o segundo defeito da sua construção, pois que seguramente não é a específica
reciprocidade de dispensa de vistos no espaço da CEDEAO que assegura a
independência de Cabo Verde, que seria ofendida com a dispensa. Dito de outro
modo: se o facto de um cidadão estrangeiro entrar no país com
dispensa de visto prévio, outorgada pelas autoridades cabo-verdianas, em forma
de lei, ofende a Independência Nacional, não se percebe como pode a
reciprocidade da dispensa ter o condão de assegurar tal independência... pois
que esta pretensa violação, afinal, assenta nessa estranha tese de ausência
de autorização prévia e casuística para a entrada de um viajante no território
nacional. Assim, na tese de BMR, a dispensa de visto de entrada ofende e não
ofende o princípio da independência nacional, variação que
depende da circunstância de o país da nacionalidade do viajante oferecer ou não
oferecer igualdade de tratamento aos cidadãos cabo-verdianos. Se o país da
nacionalidade do viajante dispensa o cidadão cabo-verdiano de visto de entrada,
Cabo Verde é inteiramente independente, mas já o não será se o tal país do
viajante teimar em manter o poder de autorização prévia de entrada dos
cabo-verdianos no seu território. Significa isso ainda, e em ultima instancia,
que a independência de Cabo Verde está mais dependente da decisão politica e
administrativa dos outros Estados em matéria de vistos do que propriamente da
decisão adotada pelas autoridades do Estado de Cabo Verde, pois que, para
sabermos se existe ou não ofensa do principio da independência nacional,
teremos que indagar sobre o sistema normativo do país da nacionalidade do
viajante, em matéria de vistos.
Na
tese de BMR, o poder de controlar previa e casuisticamente a entrada
no território, através de um procedimento burocrático de pedido de visto, é um poder
irrenunciável, instrumento de garantia da independência nacional. As
autoridades cabo-verdianas estão, pois, proibidas de dispensar o poder de
anunciar previamente ao interessado VOCÊ AQUI NÃO ENTRA, sob pena de porem em
crise a independência nacional. Que exagero! A renúncia seria, portanto,
inconstitucional, mas já não seria se essa renúncia fosse a favor do cidadão de
um Estado estrangeiro que também dispensasse os cabo-verdianos de vistos de entrada
no seu território. Aqui também se vê como a reciprocidade é amiúde convocada
para auxiliar a tese da ofensa à independência nacional.
Irrenunciabilidade
que seria imposta por força dos princípios constitucionais da independência e
da reciprocidade, quando a lei de estrangeiros de 17 de Julho de 2014 (Lei nº
66/VIII/2014), nunca posta em crise até à presente data, autoriza a
entrada de muitos estrangeiros em Cabo Verde, com dispensa de visto prévio.
Entre várias disposições, dá conta desse facto o nº 3 do artigo 9º.
Irrenunciabilidade esquisita, no mínimo! As autoridades nacionais podem
conceder nacionalidade cabo-verdiana a estrangeiros, mas já não podem autorizar
a sua entrada no território nacional, sem visto prévio!
E
nem se percebe com encaixar na tese da irrenunciabilidade os vistos
para múltiplas entradas e de longa duração, pois que implicam a renúncia de
autorizações prévias por cada entrada e por um longo período de tempo!
Se
a independência tem o significado de poder conferido aos órgãos
próprios do Estado de Cabo Verde, de decidir de forma livre sobre matérias
essenciais e que se prendem com o modo de vida do povo cabo-verdiano, então é
certo que a reciprocidade de vantagens concretas nada tem a ver com
isso, pois que claramente interage com outro círculo de valores, o de
benefícios/ganhos que na relação internacional se oferece ao Estado de Cabo
Verde!
Também
diz BMR que o propósito do Governo ofende o princípio constitucional de
reciprocidade de vantagens, consagrado no nº1 do artigo do artigo 11º da
Constituição da Republica. Só podemos dispensar de vistos de entrada os
cidadãos de Estados europeus, se, e na medida em que, tais Estados dispensarem
também os nossos cidadãos de vistos de entrada no seu território. Cabo
Verde, um país que viveu mais de quarenta anos de ajuda pública ao
desenvolvimento, reclama para si hoje a reciprocidade concreta e específica
para conceder qualquer tipo de vantagens a outros! Que ideia! Cabo
Verde, um país que hoje ainda procura sensibilizar o mundo para
dele receber a propósito de quase tudo, desde vulcão, furação, cheias,
centopeias e gafanhotos, criminalidade, pobres, doentes e estudantes, faz-se
agora de forreta, tratando os outros como uma espécie de vilões à procura
do nosso vistoso ouro! Venham a nós tudo e mais qualquer coisa, que nós aqui,
por pura forretice constitucional, só damos na exata natureza e extensão do que
recebemos!
E
a reciprocidade de BMR não resulta do exame das vantagens que nos são
oferecidas na relação global com terceiros, cidadãos ou Estados, e nem sequer
das concretas vantagens que podemos obter da medida política que adotamos, mas
tão-somente na verificação se a nossa oferta é correspondida com uma mesmíssima oferta do
donatário. Só pode ser donatário quem também for doador da mesma espécie na
relação internacional estabelecida com Cabo Verde. A mancarra que
ofertamos só é legítima se também recebermos em troca, mancarra. Só a
mancarra paga a ... mancarra! Dispensamos os europeus de visto? Só é legítima a
dispensa se os europeus corresponderem com igual dispensa aos cabo-verdianos.
Os seus Estados financiam hospitais regionais, dão centenas de bolsas de
estudos, recebem centenas de doentes evacuados de Cabo Verde, acodem-nos na
primeira aflição, financiam projetos em centenas de milhões de euros, investem
fortunas em Cabo Verde, instalam-se aos milhares nos nossos hotéis? Tudo isto é
irrelevante, pois que a reciprocidade de vantagens se deve resumir à
contrapartida concreta da mesma espécie que deve ser oferecida pelo
outro Estado, presuntivo sujeito da relação internacional. Assim, só a dispensa
de vistos de entrada a cabo-verdianos é modo legítimo de pagamento da dispensa
concedida aos estrangeiros europeus e americanos!
Na
tese de BMR as leis sobre investimento externo, a utilidade turística, o
estatuto industrial, o centro internacional de negócios, os benefícios fiscais,
o acesso à atividade económica, são claramente inconstitucionais, pois que
elas também consagram vantagens aos estrangeiros, sem qualquer exigência de
reciprocidade de vantagens da mesma natureza aos investidores cabo-verdianos,
em violação do nº 1 do artigo 11º da Constituição. Mas a própria norma
constitucional do artigo 25º, e especialmente o seu nº 4 (que autoriza a
atribuição aos estrangeiros do direito de eleger e de ser eleito nas eleições
autárquicas) seria toda ela também inconstitucional, pelo pecado de
omissão do imperativo categórico da reciprocidade.
É,
porém, evidente não se tratar de nenhum propósito de oferta, mas de
simples medida de política, adotada por um crescente número de países, na busca
de vantagens comparativas neste mundo altamente competitivo.
Neste
quadro - e aqui o que exponho tem um sentido mais amplo - todo o processo de
mudança, de projetos verdadeiramente reformistas, tem tido sempre seus
históricos opositores, e com o mesmo discurso recorrente, de apelo à cautela, à segurança,
ao perigo do caos e do desregramento em matéria muito sensível,
erguendo-se barricadas de defesa do status e transformando situações pontuais e
incidentais em fantasmas de combate à mudança e à inovação, tão necessárias ao
país. E não raras vezes a oposição à mudança é simples expediente para a
manutenção de poderes de controlo dos dirigentes administrativos, não obstante
o impacto negativo na vida dos cidadãos e das empresas. Assim, são montados
sistemas administrativos complexos, não fundados na normalidade, mas
exatamente nos incidentes, nas exceções.
Texto
originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº
808 de 24 de Maio de 2017.
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