sábado, 3 de junho de 2017

CABO VERDE | O visto, a independência e a reciprocidade



Eurico Correia Monteiro | Expresso das Ilhas | opinião

É comum ouvir-se dizer que os juristas são imaginativos e que os bons juristas são mesmo muito imaginativos. Acredito piamente que a imaginação faz falta a um bom jurista, mas o certo também é que o excesso de imaginação convola-se rapidamente em defeito, pois que exige para a sustentação da tese a hiperbolização de pressupostos ou de efeitos.

Indiciar o propósito anunciado pelo Governo de Cabo Verde, de isentar cidadãos europeus de vistos de entrada no país, de inconstitucionalidade material, por ofensa aos princípios de independência nacional, de igualdade entre os Estados e da reciprocidade de vantagens, é, claramente, indefensável do ponto de vista estritamente técnico.

Em primeiro lugar - e isso não é importância menor – não parece tratar-se de uma relação entre o Estado de Cabo Verde e demais Estados europeus, mas simplesmente de uma relação entre o Estado de Cabo Verde e os cidadãos europeus, fundada numa numa decisão unilateral pela qual se reconhece se a esses cidadãos o direito de visitarem Cabo Verde sem necessidade de uma autorização administrativa prévia e expressa.

Em segundo lugar, mesmo que se tratasse de uma relação entre Estados – e não se trata - é o próprio autor da tese, o ilustre Dr. Benfeito Mosso Ramos (BMR), quem denuncia o segundo defeito da sua construção, pois que seguramente não é a específica reciprocidade de dispensa de vistos no espaço da CEDEAO que assegura a independência de Cabo Verde, que seria ofendida com a dispensa. Dito de outro modo: se o facto de um cidadão estrangeiro entrar no país com dispensa de visto prévio, outorgada pelas autoridades cabo-verdianas, em forma de lei, ofende a Independência Nacional, não se percebe como pode a reciprocidade da dispensa ter o condão de assegurar tal independência... pois que esta pretensa violação, afinal, assenta nessa estranha tese de ausência de autorização prévia e casuística para a entrada de um viajante no território nacional. Assim, na tese de BMR, a dispensa de visto de entrada ofende e não ofende o princípio da independência nacional, variação que depende da circunstância de o país da nacionalidade do viajante oferecer ou não oferecer igualdade de tratamento aos cidadãos cabo-verdianos. Se o país da nacionalidade do viajante dispensa o cidadão cabo-verdiano de visto de entrada, Cabo Verde é inteiramente independente, mas já o não será se o tal país do viajante teimar em manter o poder de autorização prévia de entrada dos cabo-verdianos no seu território. Significa isso ainda, e em ultima instancia, que a independência de Cabo Verde está mais dependente da decisão politica e administrativa dos outros Estados em matéria de vistos do que propriamente da decisão adotada pelas autoridades do Estado de Cabo Verde, pois que, para sabermos se existe ou não ofensa do principio da independência nacional, teremos que indagar sobre o sistema normativo do país da nacionalidade do viajante, em matéria de vistos.
Na tese de BMR, o poder de controlar previa e casuisticamente a entrada no território, através de um procedimento burocrático de pedido de visto, é um poder irrenunciável, instrumento de garantia da independência nacional. As autoridades cabo-verdianas estão, pois, proibidas de dispensar o poder de anunciar previamente ao interessado VOCÊ AQUI NÃO ENTRA, sob pena de porem em crise a independência nacional. Que exagero! A renúncia seria, portanto, inconstitucional, mas já não seria se essa renúncia fosse a favor do cidadão de um Estado estrangeiro que também dispensasse os cabo-verdianos de vistos de entrada no seu território. Aqui também se vê como a reciprocidade é amiúde convocada para auxiliar a tese da ofensa à independência nacional.

Irrenunciabilidade que seria imposta por força dos princípios constitucionais da independência e da reciprocidade, quando a lei de estrangeiros de 17 de Julho de 2014 (Lei nº 66/VIII/2014), nunca posta em crise até à presente data, autoriza a entrada de muitos estrangeiros em Cabo Verde, com dispensa de visto prévio. Entre várias disposições, dá conta desse facto o nº 3 do artigo 9º. Irrenunciabilidade esquisita, no mínimo! As autoridades nacionais podem conceder nacionalidade cabo-verdiana a estrangeiros, mas já não podem autorizar a sua entrada no território nacional, sem visto prévio!

E nem se percebe com encaixar na tese da irrenunciabilidade os vistos para múltiplas entradas e de longa duração, pois que implicam a renúncia de autorizações prévias por cada entrada e por um longo período de tempo!

Se a independência tem o significado de poder conferido aos órgãos próprios do Estado de Cabo Verde, de decidir de forma livre sobre matérias essenciais e que se prendem com o modo de vida do povo cabo-verdiano, então é certo que a reciprocidade de vantagens concretas nada tem a ver com isso, pois que claramente interage com outro círculo de valores, o de benefícios/ganhos que na relação internacional se oferece ao Estado de Cabo Verde!

Também diz BMR que o propósito do Governo ofende o princípio constitucional de reciprocidade de vantagens, consagrado no nº1 do artigo do artigo 11º da Constituição da Republica. Só podemos dispensar de vistos de entrada os cidadãos de Estados europeus, se, e na medida em que, tais Estados dispensarem também os nossos cidadãos de vistos de entrada no seu território. Cabo Verde, um país que viveu mais de quarenta anos de ajuda pública ao desenvolvimento, reclama para si hoje a reciprocidade concreta e específica para conceder qualquer tipo de vantagens a outros! Que ideia! Cabo Verde, um país que hoje ainda procura sensibilizar o mundo para dele receber a propósito de quase tudo, desde vulcão, furação, cheias, centopeias e gafanhotos, criminalidade, pobres, doentes e estudantes, faz-se agora de forreta, tratando os outros como uma espécie de vilões à procura do nosso vistoso ouro! Venham a nós tudo e mais qualquer coisa, que nós aqui, por pura forretice constitucional, só damos na exata natureza e extensão do que recebemos!

E a reciprocidade de BMR não resulta do exame das vantagens que nos são oferecidas na relação global com terceiros, cidadãos ou Estados, e nem sequer das concretas vantagens que podemos obter da medida política que adotamos, mas tão-somente na verificação se a nossa oferta é correspondida com uma mesmíssima oferta do donatário. Só pode ser donatário quem também for doador da mesma espécie na relação internacional estabelecida com Cabo Verde. A mancarra que ofertamos só é legítima se também recebermos em troca, mancarra. Só a mancarra paga a ... mancarra! Dispensamos os europeus de visto? Só é legítima a dispensa se os europeus corresponderem com igual dispensa aos cabo-verdianos. Os seus Estados financiam hospitais regionais, dão centenas de bolsas de estudos, recebem centenas de doentes evacuados de Cabo Verde, acodem-nos na primeira aflição, financiam projetos em centenas de milhões de euros, investem fortunas em Cabo Verde, instalam-se aos milhares nos nossos hotéis? Tudo isto é irrelevante, pois que a reciprocidade de vantagens se deve resumir à contrapartida concreta da mesma espécie que deve ser oferecida pelo outro Estado, presuntivo sujeito da relação internacional. Assim, só a dispensa de vistos de entrada a cabo-verdianos é modo legítimo de pagamento da dispensa concedida aos estrangeiros europeus e americanos!

Na tese de BMR as leis sobre investimento externo, a utilidade turística, o estatuto industrial, o centro internacional de negócios, os benefícios fiscais, o acesso à atividade económica, são claramente inconstitucionais, pois que elas também consagram vantagens aos estrangeiros, sem qualquer exigência de reciprocidade de vantagens da mesma natureza aos investidores cabo-verdianos, em violação do nº 1 do artigo 11º da Constituição. Mas a própria norma constitucional do artigo 25º, e especialmente o seu nº 4 (que autoriza a atribuição aos estrangeiros do direito de eleger e de ser eleito nas eleições autárquicas) seria toda ela também inconstitucional, pelo pecado de omissão do imperativo categórico da reciprocidade.

É, porém, evidente não se tratar de nenhum propósito de oferta, mas de simples medida de política, adotada por um crescente número de países, na busca de vantagens comparativas neste mundo altamente competitivo.

Neste quadro - e aqui o que exponho tem um sentido mais amplo - todo o processo de mudança, de projetos verdadeiramente reformistas, tem tido sempre seus históricos opositores, e com o mesmo discurso recorrente, de apelo à cautela, à segurança, ao perigo do caos e do desregramento em matéria muito sensível, erguendo-se barricadas de defesa do status e transformando situações pontuais e incidentais em fantasmas de combate à mudança e à inovação, tão necessárias ao país. E não raras vezes a oposição à mudança é simples expediente para a manutenção de poderes de controlo dos dirigentes administrativos, não obstante o impacto negativo na vida dos cidadãos e das empresas. Assim, são montados sistemas administrativos complexos, não fundados na normalidade, mas exatamente nos incidentes, nas exceções.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 808 de 24 de Maio de 2017.

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