Nove
meses depois de ter tomado posse como secretário de Estado da Energia no
governo de Pedro Passos Coelho, em 2011, Henrique Gomes bate com a porta no
executivo. Pelo caminho fica a tentativa de impor uma contribuição
extraordinária ao setor da energia, bem como a revisão dos contratos que
garantem uma remuneração fixa às elétricas - o caso dos agora famosos CMEC, os
Custos de Manutenção para o Equilíbrio Contratual. Nesta entrevista Henrique
Gomes fala sobre a sua passagem pelo governo, como Vítor Gaspar lhe travou o
passo quando argumentou que o corte nas rendas excessivas no setor da energia
era uma forma de aliviar a economia e os portugueses. E como um relatório que
chegou numa quinta-feira ao ministério da Economia e seguiu na manhã seguinte
para o gabinete do primeiro-ministro, à hora de almoço já era do conhecimento
da EDP. Apesar do desfecho diz-se "grato" pela experiência
governativa. Mas pelo que não foi possível fazer "não ficaria lá mais
tempo nenhum".
É
sabido que defende que se devia ter ido mais longe no corte das rendas da
energia. Na sua perspetiva até onde é que se pode, ou deve, ir?
Deixe-me
começar por um enquadramento. Estamos neste momento já na terceira diretiva
europeia para a energia, que está a tentar resolver todas as preocupações do
que será todo o sistema elétrico baseado em energias renováveis. Isso acarreta
alterações significativas na gestão dos próprios mercados e uma atuação de toda
a produção que tem de ser concorrente no mercado, sem outros apoios. Portanto,
tudo o que seja subsídios tem de ser eliminado o mais depressa possível, já
devia ter sido eliminado. É assim com as renováveis. Na produção em regime
ordinário os apoios deviam ter acabado com a primeira diretiva, que obrigou as
hídricas e as centrais térmicas a ir ao mercado. Claro que tem que haver uma
fase de transição, os espanhóis também a fizeram. Mas quando chegaram, salvo
erro aos 3000 milhões de euros de subsídios à produção, fecharam a torneira, só
ficaram uns apoios muito pontuais. Os espanhóis desde 2007 que não têm esses
apoios.
Porque
é que isso não foi feito em Portugal?
Nós
atrasámo-nos um pouco, por um lado. E por outro arranjámos os CMEC [Custos de
Manutenção para o Equilíbrio Contratual], que também estão a acabar, estão
agora a começar a acabar. E este é o ano da revisibilidade desses contratos.
Considera
que o setor elétrico em Portugal tem sido protegido, tem sido sobre remunerado
com estes vários apoios?
Com
certeza que é sobre remunerado. Basta ver a decomposição dos custos para a
formação dos preços. Este ano esses custos representam cerca de 1900 milhões de
euros. Para o próprio CMEC, este ano, estavam previstos - é uma previsão - 300
milhões. Numa coisa que deveria ser um apoio mínimo para compensar a passagem
para mercado. Estes apoios deviam ter sido muito mais reduzidos e foram mal
negociados.
A
investigação que está em curso faz supor que podem ter sido outra
coisa...[Foram já constituídos sete arguidos por suspeitas de corrupção, ativa
e passiva, e participação económica em negócio, na sequência da investigação às
rendas pagas pelo Estado à EDP].
Não
sei qual o âmbito da investigação e não vou falar sobre ela.
Considera
possível uma decisão unilateral do Estado em relação a estes contratos?
É
muito difícil. E repare que, quando estive no governo, a minha primeira
abordagem não foi essa. Foi criar uma contribuição ao setor elétrico, ao
sistema elétrico nacional, aos produtores. O resultado dessa contribuição iria
para um fundo de equilíbrio do sistema elétrico, fundo esse que seria
alimentados pelos consumidores, pelo Estado e pelos coprodutores, que pagariam
essa contribuição na medida das potências instaladas - todos aqueles que não
tivessem ido a mercado. A contribuição era temporária e era universal. Tinha
uma lógica de aplicação, é uma medida na órbita da discricionariedade do Estado
e era constitucional. E tinha um enquadramento, relativamente à troika, que era
favorável. Não se fez isso...
E
porque é que não se fez?
Teve-se
medo de perturbar a privatização [da EDP]. Não se fez uma medida estrutural,
importantíssima, que resolveria o equilíbrio do sistema elétrico por, quase, um
prato de lentilhas. A esse propósito , aconselho as pessoas a lerem o relatório
da auditoria do Tribunal de Contas à privatização das empresas do setor
energético. Estão lá as conclusões. O produto da privatização foi para abater à
dívida e vê-se qual foi o resultado desse abatimento. Foi um resultado modesto.
O
ex-ministro da Economia, Álvaro Santos Pereira - que era o titular da pasta
quando foi secretário de Estado - disse ontem ao jornal Público que o lobby da
energia teve "uma influência nefasta no país". Concorda com esta
afirmação?
Concordo.
O lobby da energia defende os seus direitos e os seus interesses, daí não vem
mal ao mundo. Mas o lobby da energia tem condicionado os governos. E isso acho
mal, é um erro.
O
lobby da energia condiciona o poder político?
O
erro não é que as empresas defendam os seus interesses, é que o Estado não
defenda os seus. Chamo a atenção para qual é o poder económico de que estamos a
falar. Estamos a falar de três empresas, um pequeno grupo - EDP, EDP
Renováveis, GALP e REN, que é pequenina no meio disto tudo. Estas empresas, em
conjunto, representam 42, 43% de todo o PSI20. Este valor concentrado em três
empresas... está a ver o poder que pode ter.
Estes
lobbys tiveram alguma coisa a ver com a sua saída do governo?
Sim,
são públicas algumas histórias, que eu aliás só vim a saber mais tarde.
E
não sentiu apoio político nessa sua batalha pela diminuição das rendas da
energia?
Não
muito. Não levo isso a mal essencialmente por dois motivos. Primeiro, a grande
preocupação nessa altura era a dívida. É uma inconfidência, mas lembro-me, numa
das reuniões que tive logo no início com a secretária de Estado das Finanças da
altura, Maria Luís Albuquerque, para explicar aquilo que pensava... Estávamos
reunidos, ela é chamada, interrompe a reunião. Reaparece meia hora depois,
estava completamente lívida e o comentário que fez foi : "Desculpe, temos
que interromper a reunião. O país não tem dinheiro para nada. Estamos na
bancarrota".
Mas
é chamada por quem? Pelo ministro? [À data, o titular das Finanças era Vítor
Gaspar].
Não
sei. Sei que vinha lívida, apavorada. A grande preocupação era essa, era a
dívida. E foi a privatização [da EDP]. No caso da energia, a preocupação era
fazer dinheiro de qualquer maneira, por pouco que fosse. Não se soube pesar nem
o valor de uma reforma da energia - do lado das Finanças não havia
sensibilidade para isso. E quem assessorava o primeiro-ministro e as Finanças
também terá tido alguma influência.
Chegou
a pedir um estudo à Universidade de Cambridge, que acabou na gaveta e nunca foi
usado...
Eu
pedi esse estudo na sequência do relatório da segunda revisão do memorando de
entendimento. O governo compromete-se então numa medida nova, uma medida de
benchmarking - medidas de benchmarking eram aquelas que, na revisão seguinte,
não podiam falhar, sob pena de de falhar tudo. Havia muitas medidas, que se iam
fazendo, e havia as de benchmarking, que eram para cumprir. E a medida nova era
o governo comprometer-se a determinar todas as rendas excessivas - é a primeira
vez que aparece o termo rendas excessivas - de todas as naturezas, na produção
de energia. E a entregar esse relatório até 31 de janeiro. Estávamos em
dezembro de 2011, tive que montar uma equipa, e uma das coisas que era
necessário era saber quais as remunerações de referência, nos mercados e em
toda a Europa. Nós não tínhamos meios para fazer isso de uma forma competente,
andámos à procura, a equipa da universidade de Cambridge tem nome, é uma equipa
boa. O que essa equipa fez foi um levantamento do que eram as rentabilidades de
referência, ano a ano, para as diversas formas de produção [de energia]. Sobre
este relatório fizeram-se então as contas. Foi o tal trabalho que depois foi
desconsiderado. Foi um trabalho interessante, foi entregue ao ministro Álvaro
[Santos Pereira] numa quinta-feira ao fim do dia, em papel, o sr. ministro leu
durante a noite, falou connosco de manhã, fizemos os ajustes que ele achou por
necessários e mandou entregar ao sr. primeiro-ministro ao fim da manhã. À hora
de almoço, estava a almoçar com a minha equipa, começámos a receber chamadas da
EDP a perguntar que relatório era aquele. Passados uns dias, o relatório era
desvalorizado porque tinha erros e porque não era por ser em inglês que seria
bom . Ok, percebe-se a desvalorização, não se percebe é porque do nosso lado,
do lado do governo - onde também se repetiu esse discurso de que o relatório
tinha erros - não se tivesse indicado e discutido esses erros. Eu
disponibilizei-me a ajustar o relatório, deveria ser do interesse de todas as
partes, era um relatório de referência para podermos negociar a seguir.
O
processo de ajustamento implicou medidas muito complicadas. Esta exigência da
troika sobre as rendas excessivas, em particular, não foi cumprida, pelo menos
na medida em que a troika pretendia. Porquê? O que é que explica isto?
Explica-se
pela grande sensibilidade relativamente à preocupação financeira, de equilíbrio
e de resposta imediata, porque estávamos de facto em bancarrota. Explica-se
pelos conselhos de que o sr. primeiro-ministro e a equipa das Finanças se
rodearam quanto a este setor. Numa reunião, uma reunião longa, cheguei a dizer
"tenho um argumento político: é das poucas medidas que o governo
conseguirá apresentar, nos próximos tempos, para aliviar a nossa economia e a
população". A resposta do ministro [Vítor] Gaspar foi "então se o
argumento é político, a reunião acabou". Também não percebo. Nunca
percebi.
Cerca
de um ano depois da sua saída do governo, o ministro Álvaro Santos Pereira
disse isto, em entrevista à TSF: "Quando o meu anterior secretário de
estado da energia, o engenheiro Henrique Gomes, saiu, eu tive um dos principais
presidentes das produtoras de energia elétrica em Portugal a telefonar para
várias pessoas, a celebrar com champanhe". Vê isto como isto um elogio?
Vejo,
com certeza que sim.
Que
imagem guarda hoje da sua passagem - que foi fugaz, nove meses - pelo governo?
Estou
muito grato por ter tido essa oportunidade, estou grato ao primeiro-ministro
[Pedro Passos Coelho], por quem tenho estima. Tive ao meu alcance a
possibilidade de fazer coisas interessantes. Outras não foi possível, eu não
ficaria lá mais tempo nenhum.
Susete
Francisco | Diário de Notícias
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