Dezessete
anos depois da grande ação global que abalou a crença no neoliberalismo, um dos
articuladores provoca: sistema reciclou-se, por falta de uma alternativa.
É nossa responsabilidade construí-la.
Walden
Bello | Outras Palavras
Aprendi
várias lições na Batalha
de Seattle, e uma delas foi que uma policial feminina pode ser tão
eficiente quanto qualquer policial. Fui espancado, fortemente, por uma das
melhores de Seattle. Ontem, decidi descer a ladeira da memória e visitar a cena
do crime. Lembro-me de que vi Medea Benjamin, do
movimento Code Pink, sendo tratada com bastante brutalidade e corri até lá para
tentar fazer a polícia parar. Foi quando uma policial feminina começou a me
bater com o cassetete, enquanto me arrastava e me jogava na rua, com o golpe de
misericórdia sendo um bem planejado chute no meu traseiro. Mas o maior golpe
não foi este, e sim o que atingiu meu ego: eu merecia ser espancado e chutado,
mas não incomodava o bastante para ser preso…
Como
Cesar, vou dividir minha fala em três partes. Primeiro, algumas reflexões sobre
o que Seattle significou para a mudança nos sistemas de compreensão do mundo
globalizado. Segundo, uma discussão de como, a despeito da profunda crise do
neoliberalismo, o capital financeiro manobrou para manter intacto eeu imenso
poder. Terceiro, um apelo para construirmos uma nova visão abrangente da
sociedade desejável.
Segundo
a teoria de Thomas Kuhn, a respeito de como se dão as mudanças nas ciências
físicas, os dados dissonantes não podem ser acomodados no antigo paradigma até
que alguém venha com um novo, no qual eles possam ser explicados. Os cientistas
sociais apropriaram-se dos esforços de Kuhn para explicar o deslocamento e a
substituição do pensamento hegemônico em política, economia e sociologia. Penso
que embora o papel dos dados dissonantes tenha sido exaustivamente estudado,
como no caso do deslocamento do keynesianismo no final dos anos 70 e das
teorias da escolha racional e mercado eficiente durante a recente crise
financeira, as explicações sobre mudança nos sistemas de conhecimento não foram
capazes de considerar o papel da ação coletiva.
A
Batalha de Seattle ressalta, a meu ver, o papel extremamente crítico, se não
decisivo, da ação coletiva de massas no deslocamento dos sistemas de
conhecimento. Explicarei a seguir.
Aceita-se
hoje, de modo mais ou menos generalizado, que a globalização fracassou, em sua
promessa tripla de resgatar os países da estagnação, eliminar a pobreza e
reduzir a desigualdade. A crise econômica global em andamento, conduzida pelas
corporações e baseada na liberalização financeira, fincou o último prego na
ideologia da globalização virtuosa.
Mas
as coisas eram bem diferentes duas décadas atrás. Ainda me lembro a nota de
triunfalismo em torno do primeiro encontro ministerial da Organização do
Comércio Mundial (OMC) em Cingapura, em novembro de 1996. Lá, ouvimos de
representantes dos EUA e de outros países desenvolvidos que a globalização
conduzida pelas corporações era inevitável, que era a onda do futuro, e que a
única tarefa que faltava era tornar mais “coerentes” as políticas do Banco
Mundial, do Fundo Monetário Internacional e da Organização Mundial de Comércio
de modo a chegar mais rapidamente à utopia neoliberal de uma economia global
integrada.
O
avanço da globalização parecia varrer tudo à sua frente, incluindo a verdade.
Na década anterior a Seattle, numerosos estudos, inclusive relatórios das
Nações Unidas, questionavam a alegação de que a globalização e as políticas de
“livre” mercado estavam conduzindo ao crescimento sustentável e prosperidade.
Os dados mostravam que a globalização e políticas pró mercado estavam na
verdade promovendo mais desigualdade e mais pobreza e consolidando a estagnação
econômica, especialmente no Sul global. Contudo, esses números permaneceram
como “factoides” ao invés de fatos aos olhos de acadêmicos, da imprensa, dos
políticos, que zelosamente repetiam o mantra neoliberal de que a liberalização
econômica promove crescimento e prosperidade. A visão ortodoxa, repetida ad
nauseam na sala de aula, na mídia e em círculos políticos, era de que
críticas à globalização eram encarnações modernas dos ludistas ou provinham de
pessoas — como fomos rotulados com desdém por Thomas Friedman — que acreditam
que a terra é plana.
Então
veio Seattle, em 1999. Depois daqueles dias tumultuados na cidade, a imprensa
começou a falar sobre o “lado sombrio da globalização”, sobre as desigualdades
e pobreza sendo geradas pela globalização. Depois disso, tivemos as
espetaculares defecções do campo da globalização neoliberal, tais como as do
financista George Soros, do prêmio Nobel Joseph Stiglitz e a do economista-star Jeffrey
Sachs. O recuo intelectual da globalização provavelmente atingiu seu ponto alto
em 2007, num relatório abrangente sobre um painel de economistas neoclássicos
liderado por Angus Deaton, economista de Princeton, e pelo ex-economista chefe
do FMI, Ken Rogoff. O relatório afirmou implacavelmente que o Departamento de
Pesquisa do Banco Mundial – a fonte da maioria das afirmações segundo as quais
a globalização e a liberalização do comércio estavam conduzindo a índices mais
baixas de pobreza, crescimento econômico sustentado e menos desigualdade –
distorcia deliberadamente os dados e/ou fazia afirmações injustificadas.
É
verdade, o neoliberalismo continua a ser o discurso padrão entre vários
economistas e tecnocratas. Mas mesmo antes do recente colapso financeiro global
ele já havia perdido muito de sua credibilidade e legitimidade. O que fez a
diferença? Não tanto a pesquisa ou debate, mas a ação. Foi necessário que
acontecessem as ações de massas nas ruas de Seattle, interagindo de modo
sinérgico com a resistência de representantes dos países em desenvolvimento no
Centro de Convenções do Sheraton, e uma rebelião da polícia, para provocar o
espetacular colapso de uma reunião ministerial da Organização Mundial de
Comércio e traduzir aqueles factoides em fatos. E o fracasso intelectual
imposto à globalização pela luta de Seattle teve consequências bem concretas.
Hoje, a revista Economist, primeiro avatar da globalização neoliberal,
admite que a “integração da economia mundial está em retração em quase todos os
fronts” e um processo de “desglobalização”, que antes considerava se
impensável, está na verdade em desenvolvimento.
Seattle
foi o que Hegel chamou de “evento histórico-mundial”. Sua lição duradoura é que
a verdade não está apenas lá fora, com uma existência objetiva e eterna. A
verdade é efetivada, tornada real e ratificada pela ação. Em Seattle, mulheres
e homens comuns tornaram a verdade real com uma ação coletiva que desacreditou
um paradigma intelectual que havia servido de guardião ideológico do controle
do mundo pelas corporações.
Eu
não diria que o neoliberalismo foi derrotado em Seattle. Mas, para usar uma
metáfora de guerra, Seattle foi certamente a batalha de Stalingrado do
neoliberalismo. Demoraria mais uma década até que a globalização fosse
definitivamente detida, e foi preciso que a crise financeira global completasse
o trabalho, ao aniquilar da Teoria da Escolha Racional e da Hipótese de
Mercados Eficientes, que haviam sido a vanguarda da globalização das finanças.
Poder
estrutural persistente do capital financeiro
Mas
o desmantelamento do paradigma neoliberal é só metade da história. Mesmo com
sua crise ideológica, as forças do capital global travaram uma feroz batalha de
retaguarda. Como exemplo, tome o caso do bem-sucedido esforço do capital
financeiro para resistir a qualquer mudança diante da evidente necessidade e do
consenso social para uma reforma abrangente.
Quando
o chão se abriu sob Wall Street, em setembro de 2008, houve muita conversa
sobre obrigar os bancos a pagarem a conta, prender os “banksters” [mistura de
banqueiros com gangsters] e impor regulações draconianas. O então recém-eleito
Barack Obama chegou ao poder prometendo reforma bancária, avisando Wall Street,
“Meu governo é a única coisa entre vocês e o inferno”.
Ainda
assim, mais de oito anos depois da deflagração da crise financeira global, é
evidente que aqueles que eram responsáveis pela crise manobraram para sair
completamente impunes. Não apenas isso, mas também fizeram com que os governos
colocassem os custos da crise e o ônus da recuperação sobre as vítimas.
Como
conseguiram isso? A primeira linha de defesa para os bancos foi fazer com que
os governos os resgatassem da trapalhada financeira que eles próprios criaram.
Os bancos recusaram de cara a pressão de Washington sobre eles para montar uma
defesa coletiva com seus próprios recursos. Usando a queda maciça dos preços
das ações, desencadeada pela queda do banco Lehman Brothers, os representantes
do capital financeiro foram capazes de chantagear tanto os parlamentares
liberais quanto os de extrema direita no Congresso dos EUA, para aprovar o
Programa de Alívio de Ativos Problemáticos (Troubled Asset Relief Program –
TARP), no valor de 700 bilhões de dólares. A nacionalização dos bancos foi
descartada como sendo inconsistente com os “valores da América”.
Então,
engajando-se na guerra defensiva antirregulatória que eles controlaram durante
décadas no Congresso, os bancos foram capazes, em 2009 e 2010, de eliminar, na
lei Dodd-Frank de Reforma de Wall Street e de Proteção dos Consumidores, três
itens-chave que eram considerados necessários para uma verdadeira reforma:
reduzir o tamanho dos bancos; separar institucionalmente os bancos comerciais
dos bancos de investimento; e proibir a maioria dos derivativos, regulando o
chamado “sistema bancário das sombras”, que provocou a crise.
Isso
foi feito usando o que Cornelia Woll chamou de “poder estrutural” do capital
financeiro. Uma dimensão desse poder foram os 344 milhões de dólares que o
setor gastou fazendo lobby no Congresso dos EUA, nos primeiros nove meses de
2009, quando os legisladores estavam trabalhando com a reforma financeira. Só o
senador Chris Dodd, líder do Comitê Bancário do Senado, recebeu 2,8 milhões de
dólares em contribuições de Wall Street, em 2007-2008. Mas talvez tão poderoso
quanto o lobby de Wall Street entrincheirado no Congresso tenham sido as
influentes vozes no novo governo Obama, que eram simpáticas aos banqueiros — em
especial o Secretário do Tesouro, Tim Geithner, e o chefe do Conselho de
Assessores Econômicos, Larry Summers. Ambos serviram como colaboradores
próximos de Robert Rubin, que foi sucessivamente co-presidente do banco Goldman
Sachs, chefe do Tesouro de Bill Clinton e presidente e conselheiro sênior do
Citigroup.
Finalmente,
o setor financeiro foi bem sucedido ao amarrar a defesa de seus interesses a um
dos poucos pressupostos que ainda ressoam de uma ideologia neoliberal que se
desintegra: o de que o Estado é a fonte de todas as coisas ruins que acontecem
na economia. Enquanto se beneficiava do resgate financeiro do governo, Wall
Street conseguiu mudar a narrativa sobre as causas da crise financeira, jogando
a culpa toda no Estado.
Isso
é melhor ilustrado no caso da Europa. Como nos EUA, a crise financeira na
Europa foi impulsionada pela especulação, à medida em que os grandes bancos
europeus buscaram substitutos de retorno rápido e alto lucro para os baixos
retornos que obtinham na indústria e na agricultura. Partiram para empréstimos
imobiliários e especulações em derivativos financeiros, ou colocaram seus
fundos excedentes em títulos de alto rendimento vendidos pelos governos. Em seu
impulso para lucrar cada vez mais, ao emprestar para os governos, os bancos
europeus despejaram 2,5 trilhões de dólares na Irlanda, Grécia, Portugal e
Espanha.
O
resultado foi que a dívida da Grécia chegou a 148% do PIB em 2010, levando o
país à beira de uma crise da dívida soberana. Voltada à proteção dos bancos, a
abordagem das autoridades europeias para estabilizar as finanças da Grécia não
foi penalizar os credores pelos empréstimos irresponsáveis, mas jogar nos
ombros dos cidadãos todos os custos do ajuste.
A
nova narrativa via a origem da crise não nas finanças privadas desreguladas e
ultra-especulativas, mas no suposto “Estado gastador”. Ela rapidamente chegou
nos EUA, onde foi usada não apenas para evitar uma reforma bancária real mas
também para prevenir o lançamento de um efetivo programa de estímulo em 2010.
Christina Romer, ex-chefe do Conselho de Assessores Econômicos de Barack Obama,
estimou que seriam necessários 1,8 trilhões de dólares para reverter a
recessão. Obama aprovou menos da metade, ou 787 bilhões, aplacando a oposição
republicana, mas impedindo uma rápida recuperação. De modo que os desatinos de
Wall Street não recaíram sobre os bancos, mas sobre os norte-americanos comuns,
com o desemprego atingindo cerca de 10% da força de trabalho em 2011 e o
desemprego da juventude chegando a mais de 20%.
O
êxito de Wall Street em reverter a explosão popular contra si, após a eclosão
da crise financeira, fica evidente na disputa pelas eleições presidenciais de
2016. As estatísticas dos EUA são claras: 95% dos ganhos de receita de 2009 a
2012 foram para o 1% do topo; a renda média era 4.000 dólares menor em 2014 do
que em 2000; a concentração de ativos financeiros aumentou depois de 2009, com
os quatro maiores bancos detendo ativos que chegaram a quase 50% do PIB. Ainda
assim, a regulação de Wall Street não foi uma questão nos debates das primárias
do partido Republicano, enquanto que nos debates dos Democratas foi um tema
lateral, a despeito dos corajosos esforços do candidato Bernie Sanders para
torná-lo uma questão de destaque.
As
instituições políticas de uma das mais avançadas democracias liberais do mundo
não foram capazes de lidar com o poder do establishment financeiro. Como
escreve Cornelia Woll, “Para o governo e o Congresso, a principal lição da
crise financeira em 2008 e 2009 foi que eles tinham meios muito limitados para
pressionar o setor financeiro a adotar um comportamento compatível com a
sobrevivência de todo o setor e a economia como um todo”.
Na
Grécia, políticas de “austeridade” provocaram uma revolta popular – expressa no
referendo de junho de 2015 sobre o resgate, no qual mais de 60% da população
rejeitou o acordo – mas no final seu desejo foi esmagado, pois o governo alemão
forçou Tsipras a uma humilhante rendição. É claro que os motivos chave eram
salvar a elite financeira europeia das consequências de suas políticas
irresponsáveis, reforçando o princípio ferrenho do reembolso total da dívida e
crucificando a Grécia para dissuadir outros, tais como os espanhois, irlandeses
e portugueses de se revoltar contra a escravidão da dívida. Como admitiu algum
tempo atrás Karl Otto Pöhl, ex-chefe do Banco Federal da Alemanha, o exercício
draconiano na Grécia era para “proteger os bancos alemães, mas especialmente os
bancos franceses, de cancelamentos da dívida”.
Ainda
assim, é provável que o triunfo dos bancos seja, no final, uma vitória de
Pirro. A combinação de uma estagnação ou recessão profunda induzida pela
“austeridade” que oprime grande parte da Europa e os EUA e a falta de reforma
financeira é mortal. A prolongada estagnação resultante e a perspectiva de
deflação desencorajaram investimentos na economia real para expandir bens e
serviços.
Com
o fim da tentativa de re-regular as finanças, os bancos têm todas as grandes
razões para fazer o que fizeram antes de 2008 e que detonou a crise atual:
comprometer-se em operações intensamente especulativas destinadas e obter super
lucros, beneficiando-se da diferença entre o preço inflado de ativos (e de
derivativos baseados em ativos) e o valor real desses ativos. Isso dura até que
a lei da gravidade cause o inevitável desastre.
Estima-se
que o mercado opaco de derivativos movimento hoje um total de 707 trilhões de
dólares, significativamente mais alto do que os 548 bilhões de 2008. De acordo
com um analista, “o mercado tornou-se tão abissalmente vasto, que a economia
global corre o risco de danos maciços mesmo que apenas um pequeno percentual de
contratos azede”. Seu tamanho e influência potencial são difíceis até de
compreender, quanto mais de estimar”. Artur Levitt, ex-presidente da Comissão
de Segurança e Câmbio dos EUA, concordou, ao dizer a um escritor que
nenhuma das reformas pós 2008 “reduziu significativamente a probabilidade das
crises financeiras”.
A
questão então não é se irá estourar uma outra bolha, mas quando. E para nós, a
lição chave é que a despeito do descrédito ideológico do neoliberalismo e da
raiva popular pelas trapaças dos bancos, o poder estrutural do capital continua
imenso e impediu até mesmo a prisão de qualquer banqueiro importante — que
dizer de uma reforma significativa…
A
necessidade de uma nova visão abrangente
Em
que se apoia o poder estrutural duradouro do capital financeiro? Minha
impressão é que embora os fatos objetivos, a crítica intelectual e ação
coletiva tenham corroído a legitimidade do neoliberalismo, fomos incapazes de
articular uma alternativa robusta a ponto de enfrentar a profunda crise do
capitalismo em que nos encontramos.
Há
um enorme descontentamento, diante da múltipla crise desencadeada pelo
capitalismo. Infelizmente, não é possível repetir o que Mao disse certa
vez: “Tudo sob os céus está em desordem; excelente notícia!” Muitos daqueles
que foram atropelados pela globalização movida pelas corporações estão se
voltando para demagogos e ideólogos da direita, tais como Donald Trump e Marine
Le Pen. Ou, no meu próprio país [as Filipinas], o presidente Rdrigo Duterte,
que deu um jeito de convencer um amplo setor dos cidadãos de que o crime e as
drogas estão na base dos problemas do país e que a principal cura para as
enfermidades do país é matar todos, tanto traficantes como usuários. Vale
lembrar que os EUA e a Europa não têm o monopólio de perigosos demagogos de
direita com uma base maciça e radicalizada, grande parte deles pessoas
ressentidas das classes médias baixas que desejam soluções simples e querem
aprovar a violência para alcançar a visão de seu líder sobre o que seria o céu
na terra.
Sem
dúvida, parte do problema é o fracasso das forças tradicionais da esquerda em
educar suas principais bases de apoio, tais como a classe trabalhadora branca.
Outra parte tem sido a falta de habilidade para integrar populações
minoritárias entre a esquerda — que tradicionalmente abrigava os desfavorecidos
e marginalizados — forçando alguns a se voltarem para grupos radicais
fundamentalistas tais como o ISIS. Assim, as feridas reais impostas a tantos
setores pela globalização ditada pelas empresas somaram-se aos mitos sobre o
deslocamento dos imigrantes e seus crimes, e ao real fracasso da integração dos
imigrantes. Donald Trump, Marine Le Pen e o ISIS têm sido muito astutos ao tirar
vantagem das brechas abertas pela esquerda, por aqueles que estiveram à frente
de movimentos como o Occupy e a antiglobalização. Essas pessoas têm comido
nosso almoço.
Não
irei adiante nas razões sociológicas para o sucesso delas ou nosso fracasso,
dado que muitos outros já fizeram isso, mas quero levantar uma questão. Temos
ou não a responsabilidade de criar uma visão, linguagem e programa abrangentes
para desenvolver uma alternativa e concretizá-la? Nos Estados Unidos, Bernie
Sanders, candidato à presidência em 2016, assumiu essa corajosa tarefa ao
apelar por um “socialismo democrático”, algo que ressoou no Sul Global. Penso
ser urgente que concretizemos essa ideia, uma vez que o outro lado já está
materializando sua alternativa na forma do trumpismo, da defesa dos partidos de
direita europeus ou do brexitismo. Nesse esforço, eles somam parte da nossa
crítica intelectual ao capitalismo com o apelo altamente carregado de emoção
para retornar a um passado idealizado de homogeneidade branca, pureza cultural
ou uniformidade religiosa. Penso que é urgente superar nossos medos de
articular grandes narrativas e expressar a necessidade de superar, através da
luta comum, um mundo destruído pelo capital. Esta nova narrativa deve defender
a construção de sociedades baseadas no mais profundo instinto de homens e
mulheres – a cooperação. É quase desnecessário dizer que tal empenho deve
também reconhecer as limitações, fracassos e distorções de esforços passados na
construção de sociedades pós-capitalistas, especialmente no que diz respeito a
questões de democracia, gênero e meio ambiente.
Em
geral, não gosto de citar a Bíblia. Mas há alguma coisa muito profunda na
passagem 29:18 dos Provérbios: “Onde não há visão, o povo perece”. Seria
trágico se as pessoas fossem deixadas às modorrentas alternativas formuladas
pela social-democracia na Europa, os enfadonhos Clinton, nos Estados Unidos, e
os nada inspiradores movimentos de reforma comandados pela elite no Sul Global.
Tais alternativas políticas, além de tudo, não serão capazes de frear os
movimentos contrarrevolucionários que estão em marcha.
*
Walden Bello é autor e acadêmico filipino, coordena o centro de pesquisas Focus
on the Global South, baseado em Bangkok, Tailândia. Integra o Conselho
Internacional do Fórum Social Mundial e foi eleito recentemente deputado no
Parlamento das Filipinas.
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