O
saco de truques com que o MPLA alcançará a vitória nas próximas eleições tem
muitas camadas, como a cebola. Primeira camada (a óbvia): o MPLA capturou o
Estado. Não é só a Comissão Nacional Eleitoral e toda a organização da votação
que está nas mãos do Governo, é toda a poderosa máquina do Estado com a sua
capacidade de mobilização (e pressão) que é colocada ao serviço de uma campanha
amplamente servida de meios públicos.
João
Paulo Batalha * | Folha 8 | opinião
Na
verdade, no terreno, Angola não é uma democracia multipartidária. É uma
ditadura de partido único com roupas coloridas de democracia pluralista (já lá
vamos a essa camada).
Segunda
camada: a repressão. Os observadores estrangeiros mais distraídos podem já
ter-se esquecido do célebre processo dos 15+2, que deu ao regime angolano
infâmia mundial. Mas basta ler os relatórios da Amnistia Internacional ou da
Human Rights Watch para perceber que há coerência e continuidade entre esse
processo – em que um grupo de jovens é condenado pelo crime de ler um livro que
mete medo ao Presidente – e todo um currículo sombrio de abusos, de repressão
violenta de manifestações pacíficas, de detenções arbitrárias, até de execuções
sem julgamento.
Mesmo
o trabalho que os carrascos do regime não fazem, a insensibilidade do regime encarrega-se
de fazer. São as pessoas que morrem não pela acção do Estado, mas pela sua
inacção, pela negação de condições básicas de saúde ou segurança por um poder
que se exibe como pai do povo mas é insensível às suas dores. Esta é a camada
de ferro.
Terceira
camada: a mordaça. Não basta a propaganda contínua dos órgãos de comunicação
social do Estado e o condicionamento (a bem ou a mal) da imprensa privada, a
obsessão com o controlo dos olhos e ouvidos dos angolanos vai ao ponto de calar
a imprensa estrangeira. Isabel dos Santos justificou o silenciamento da SIC em
Angola como uma questão de negócio. Terá sido mais uma questão de falta dele.
Uns anos antes, depois de a revista Forbes a ter apresentado ao mundo como a
menina dos diamantes do papá Presidente, foi mais astuta: comprou os direitos
da revista para Portugal e Angola. O petróleo valia mais na altura. Ou talvez
fossem as amizades que se comprassem por menos. Desta vez nem houve operação de
charme. É calar e andar.
Quarta
camada: a oposição. Várias vozes da sociedade angolana tinham apontado, a
tempo, o caminho a tomar: a oposição devia ter-se coligado num movimento único.
Isso dar-lhe-ia voz e projecção, mas sobretudo derrotaria, antes sequer de ir
às urnas, a ficção do regime. Porque nas democracias pluralistas, a oposição
nunca se coliga em bloco. Isso só acontece nas ditaduras, precisamente para
sinalizar que se trata de ditaduras. Uma coligação em bloco de todas as forças
anti-MPLA diria ao mundo que o que está em causa nestas eleições não é uma disputa
de programas ou de candidatos, é um combate pela instauração de uma verdadeira
democracia pluralista que o MPLA, fiel à cultura de partido único, sempre
rejeitou. Ao participar num jogo viciado, a oposição legitima a ficção
pluralista do regime. É uma derrota auto-infligida. Os partidos concorrentes ao
MPLA reduzem-se a partidos coadjuvantes do MPLA.
Mesmo
que tudo o resto falhasse, resta sempre, sólida, a última camada: fazer batota.
A forma como o Governo angolano convidou, desconvidando, os observadores da
União Europeia diz tudo sobre a seriedade com que se abre ao escrutínio dos
seus parceiros internacionais. Turismo eleitoral sim, observação eleitoral não.
É um pré-anúncio de fraude nas urnas – tanta ou tão pouca quanto for preciso
para assegurar o resultado pretendido.
É
normal chorarmos quando descascamos cebolas. O ácido faz parte da planta. Mas é
com esta receita que o MPLA pretende comer o povo angolano de cebolada. Neste
contexto, o papel do cidadão eleitor não é escolher a próxima Assembleia ou
decidir o próximo Governo – esse campeonato está viciado. O que há a fazer é
tornar a fraude visível, é obrigar o MPLA a esforçar-se, é assegurar que fica
claro para todos, em Angola e no mundo, aquilo que o regime quer branquear: que
esta eleição é um roubo. O que o MPLA tem a perder no dia 23 não é a votação, é
a face. O combate não é, por isso, eleitoral. É um combate pela dignidade e
pelo orgulho de cada cidadão.
Felizmente,
essa dignidade está em campo. O povo está desperto, as redes sociais estão
atentas e a sociedade civil mobilizou-se. A publicação da Cartilha do Delegado
de Lista, pelo jornalista William Tonet, é um exemplo de uma cidadania exigente
e interventiva. O lançamento da plataforma Jiku pela nova associação Handeka,
que permite a qualquer pessoa denunciar irregularidades eleitorais, é outro
sinal de que a maturidade democrática do povo angolano está uns furos acima da
dos políticos que o representam. No dia 23 será essa maturidade, essa dignidade
e orgulho cívico – e não qualquer partido, ou candidato – que abrirá o caminho
para o futuro de Angola.
(*)
Presidente da Transparência e Integridade, Associação Cívica
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