A
atual repressão de Rajoy sobre o exercício de um referendo legitima e reforça
ainda mais a via independentista. Depois de 1 de outubro a revolta catalã vai
acentuar-se.
1
– O forte impulso pela República Catalã surge como reação à anulação do
Estatuto da Catalunha pelo Tribunal Constitucional espanhol em 2010.
Relembre-se que um estatuto que aprofundava a autonomia da Comunidade e
reconhecia a Catalunha como Nação foi aprovado no Parlamento regional, piorado
mas aprovado nas Cortes em Madrid e posteriormente votado em referendo, na
Catalunha, com uma larga maioria a favor.
Embora
o sentido fosse federalizante, a Esquerda Republicana Catalã (ERC) apelou ao
Não, devido à descaraterização sofrida no texto emanado de Barcelona.
Posteriormente, os deputados e deputadas do PP de Mariano Rajoy, então na
oposição, bem como algumas comunidades de Castela, interpuseram queixa para o
Tribunal Constitucional com o desfecho conhecido de anulação objetiva da
lei-carta da Catalunha.
Aqueles
que reprovam a via da Independência em nome de um hipotético federalismo
espanhol, com ou sem monarquia, não querem ter em conta que o gradualismo
morreu às mãos de Rajoy e do nacionalismo radical espanhol. Que querem dizer
aos catalães, que esperem outros quarenta anos para alterar a Constituição de
1978? A atual repressão de Rajoy sobre o exercício de um referendo legitima e
reforça ainda mais a via independentista. Depois de 1 de outubro a revolta
catalã vai acentuar-se.
2
- Ouve-se com frequência que a Catalunha não tem direito à autodeterminação.
Alguns ridiculamente até invocam que essa nacionalidade não figura na lista dos
territórios ocupados da ONU. Convém não regatear que o direito à
autodeterminação é um direito geral e irrestrito que cumpre a cada povo,
expressando o seu sentido maioritário, muitas vezes ao longo de conflitos de
descolonização. Isso é algo que resulta do direito internacional que se
convencionou no século XX, fruto da descolonização de vastas áreas do planeta
que estavam sob dominação de impérios caducos.
A
autodeterminação pode conduzir à independência ou a outras formas de
relacionamento internacional. Não há autodeterminações artificiais, elas não
existem sem um forte sentimento de comunidade própria e uma relação de
dominação estranha a essa comunidade. Não consta que o Québec ou a Escócia, que
realizaram nos últimos anos referendos sem êxito pela Independência,
sancionados pelos governos do Canadá e Grã-Bretanha, respetivamente, constassem
da lista dos territórios ocupados.
3
- Acusa-se o nacionalismo catalão de ser uma criação da burguesia com a qual se
tenta alienar os trabalhadores. A reivindicação nacional tem muitos séculos e é
natural que setores da burguesia e partidos de direita acolham e promovam a
bandeira da República Catalã. Veja-se que a Catalunha foi várias vezes tratada
brutalmente por Castela, a última das quais no franquismo, atingindo
identidades e interesses da elite barcelonesa. Porém, o povo tem tido a sua
expressão nacionalista veiculada por idioma próprio ao longo de todo o processo
histórico.
Contudo,
e isso é que importa para avaliar politicamente o referendo de 1 de outubro, a
confederação de empresários da Catalunha está contra o referendo e queixa-se da
hostilização das autoridades da Generalitat (governo autonómico catalão). A
grande burguesia da Catalunha está com Rajoy e com o Rei. Neste momento, e
depois de longas hesitações e ambiguidades do Catalunya en Comú, partido de Ada
Colau, apoiado pelo Podemos espanhol, toda a esquerda luta pela realização do
referendo proibido, refletindo a simpatia de grande massa de trabalhadores e da
pequena-burguesia. Infelizmente, não vemos a solidariedade necessária da classe
trabalhadora espanhola, embora as sondagens mostrem uma abertura crescente da
juventude espanhola ao reconhecimento da plurinacionalidade ibérica. Aqui não
se enterra apenas a Constituição de 1978, também o legado da guerra civil e da
pátria espanhola imposta a galegos, bascos e catalães.
4
- Há quem queira impedir a autodeterminação da Catalunha invocando o
"separatismo múltiplo" e "o fim do Reino". Lá vem a caixa
de Pandora de que se se permitir referendo catalão, lá virá o referendo basco e
depois o referendo galego. E assim, de referendo em referendo, termina a
Espanha e deixa a monarquia que supostamente representa a unidade de Espanha na
beira do abismo. Este é também o pensamento dominante das autoridades em Lisboa.
A
política externa portuguesa tem estreitado relações com a monarquia espanhola,
e acha o mesmo sobre o "separatismo múltiplo" que a monarquia
corrupta dos Bourbon. Acham até que se assim se marca o pragmatismo, valor sem
valor mas muito em uso. Cabia-nos considerar que o nosso relacionamento ibérico
deve pautar-se pela não ingerência mútua, mas também pela adesão aos princípios
da Carta das Nações Unidas no que discorre sobre os legítimos direitos de
afirmação nacional.
A
Espanha enfrenta um risco de fragmentação porque não resolveu as questões
nacionais pacífica e democraticamente e ameaça radicalizar todos os problemas
de convivência em nome do nacionalismo espanhol mais agressivo.
5
- O Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) oferece nestes tempos a imagem
do contorcionismo mais degradante. Ao mesmo tempo que lamenta que a
Constituição espanhola não reflita a plurinacionalidade em "autonomias
reforçadas", pactua com Rajoy a repressão do referendo. Mais uma vez a
posição chauvinista da unidade de Espanha se sobrepôs a uma posição democrática
e constituinte da oposição anti-PP.
O
facto de Rajoy ter posto Pedro Sánchez no bolso na questão que mais polariza a
política espanhola, é não só o desmentido de que Sánchez queira mesmo mudar a
Constituição, senão ter-se-ia oposto à repressão como a confissão de que não
tem parceiro que que obtenha o limiar de votos necessários nas Cortes para
alterar a lei fundamental. Mau indício para as veleidades de coligação PSOE e
Unidos Podemos, a proposta de Pablo Iglésias do Podemos.
Rajoy
vai assim limpando o cenário do seu poder.
6
- A polémica da aplicação do artigo 155º da Constituição ganhou nova qualidade.
O artigo 155º é o que permite que o governo central intervenha nos governos
autonómicos para repor a legalidade. A aplicação desse artigo obriga a uma
votação no Senado espanhol o que até agora não aconteceu.
No
meio desta farsa política quer-se fazer crer que não há uma intervenção formal
contra as autoridades da Catalunha mas na prática é o que está acontecer. O
envolvimento do Ministério Público para ameaçar de delito penal centenas de
autarcas, deputados, membros da Generalitat, a perseguição da Guarda Civil a
tipografias e impressos de campanha ou boletins de voto, ou a caça às urnas de
voto complementam a decisão inédita de Madrid chamar a si a gestão orçamental
para garantir que não se gasta um cêntimo com o referendo. Funcionários
públicos são ameaçados de despedimento e ação penal se auxiliarem o referendo.
Os debates públicos foram proibidos bem como os comícios que se têm feito
ilegalmente. Neste ambiente, a anedota vem dos apoiantes do Não no referendo
que se queixam que não conseguem debater...
7
- O referendo não reconhecido, mais ou menos periclitante na sua realização,
depois de Espanha ter rejeitado durante sete anos um referendo legal e
acordado, não será ainda a antecâmara de mais uma República na Europa, mas vai
provocar a primeira grande fratura no Reino vizinho desde a transição da ditadura.
A mobilização vai ecoar na Moncloa. A retaliação de Rajoy, querendo decapitar
as lideranças catalãs, é um prenúncio do que aí vem. A solidariedade que se
antecipa, sem dúvida, é a maior Embaixada da Catalunha.
*Dirigente
do Bloco de Esquerda, professor.
Esquerda.net
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