Professora
universitária, Inocência Mata defende quotas para assegurar a
representatividade racial em várias áreas. “Não é verdade que a classe social
elimine o racismo. Vou a lugares onde sou a única negra e sou discriminada.”
Inocência
Mata é a única professora negra na Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa, onde lecciona desde 1990, no departamento de Literaturas Românicas.
Está há três anos a dar aulas temporariamente em Macau. Isso não impede que
quando chegue ao aeroporto de Lisboa seja chamada para ser revistada ou
conduzida à fila dos passaportes não-europeus. Ainda há pouco tempo, no
Hospital de Santa Maria, em Lisboa, andava à procura de uma secção, e a pessoa
começou a descrever-lhe as direcções. “Quando vir uma placa a dizer consultas
externas, vira — sabe ler?”
É
a única professora negra na Faculdade de Letras. Por que acha que esta ausência
de representatividade acontece em Portugal?
Entre os académicos, conheço pessoas que respeito que falam da desigualdade de género, mas não lhes passa pela cabeça que igualmente tão grave é a desigualdade étnico-racial. A presença de negros na academia é nula. Isto é um grande problema, mais grave porque acontece na academia.
Mesmo que existam pessoas com um óptimo trabalho sobre questões de racismo na sociedade portuguesa, por exemplo, não vêem a falta de representatividade étnico-racial como um problema de justiça social como no caso da desigualdade de géneros. Por muito que estejam atentas, não são vítimas de racismo, e é isso que se tem de perceber quando se pede que a sociedade reflicta a vários níveis a sua diversidade. Houve uma colega, querendo dizer que não era racista, que um dia me disse: “Não me lembro da cor das pessoas.” Eu respondi: “Sorte a tua, porque eu não consigo esquecer-me da minha cor. Mesmo que me esqueça, o quotidiano lembra-me.” O racismo é sobretudo uma questão de cor da pele (embora o racismo cultural seja também um problema a considerar).
Ainda não houve a tomada de consciência dessa necessidade?
No Brasil, os académicos assumiram como questão sua essas desigualdades e forçaram a agenda política. É o que tem de acontecer em Portugal. Não estou à espera de que a Dona Maria comece a pensar assim. Eventualmente nunca pensará. Enquanto a academia não assumir isso como um problema, essa mudança nunca vai acontecer.
Não me falem de meritocracia, das maiores armadilhas na luta contra a desigualdade: é pôr o filho do médico que mora em Cascais e anda nas melhores escolas a fazer o mesmo teste que o jovem que mora no Bairro 6 de Maio (Amadora), esperando que tenham a mesma performance. É preciso dar ao jovem do 6 de Maio as mesmas oportunidades. A meritocracia é um dos mais perversos mitos que fazem perpetuar a exclusão de grupos.
Defende
então quotas?
Defendo um tipo de discriminação positiva em várias áreas. Tem de haver uma política de representatividade, através da diversidade, porque está mais do que provado que é um aspecto importante para a democratização e a harmonia social.
As
quotas têm de ser vistas apenas como uma estratégia que visa a promoção social
de grupos mais excluídos, não uma medida que vai perdurar. A preocupação da
representatividade deveria estar presente nas instituições públicas. Quantos
professores universitários negros existem nas universidades? Não é estranho num
país que se orgulha da sua “experiência” africana? Quantos deputados? Quantos
directores de serviços públicos? Quantos ministros não-brancos teve este país?
Não me venham falar da Francisca van Dunem. E antes também que venham com o
exemplo de António Costa, digo que me parece significativo que tenha sido
precisamente no seu Governo a haver uma ministra negra no elenco governativo.
Ser
negra interferiu na progressão da sua carreira?
Durante algum tempo houve quem tudo fizesse para me fazer crer que eu não deveria estar onde estava, como professora na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Ora, entrei mediante um concurso público, faço questão de o dizer.
Num
concurso interno, uma professora chega-se ao pé de mim para me dizer que tinha
gostado muito do meu relatório, que estava excelente, e acrescentou: “Não
estava à espera.” Fiquei varada. Não estava à espera por eu ser negra? Na
faculdade vivi episódios muito tristes. Uma vez ia a entrar para uma sala onde
haveria uma reunião e ouvi uma colega, que não me tinha visto, dizer “não sei o
que é que esta preta veio para aqui fazer”. Ficaram todos constrangidos quando
entrei, mas fingi que não tinha ouvido nada. Entre muitos outros episódios, inclusive
nos serviços administrativos.
Recentemente, há três anos, impugnei um concurso. Custa-me falar disso porque me considero ostensivamente discriminada, prejudicada. Não quero acreditar que seja uma questão de racismo. Não me conformei. A questão foi objecto de acção judicial no competente Tribunal Administrativo, encontrando-se a aguardar decisão.
Recentemente, há três anos, impugnei um concurso. Custa-me falar disso porque me considero ostensivamente discriminada, prejudicada. Não quero acreditar que seja uma questão de racismo. Não me conformei. A questão foi objecto de acção judicial no competente Tribunal Administrativo, encontrando-se a aguardar decisão.
Não
é fácil progredir na carreira na universidade portuguesa porque não é questão
de mérito mas de vagas — e não tem havido vagas, o que é uma perversidade do
sistema, pois o “sinal” que a tutela envia é que não importa o quanto trabalhes
não serás promovido.
O racismo desaparece com a ascensão social?
O racismo desaparece com a ascensão social?
Não é verdade que a classe social elimine o racismo. Vou a lugares onde sou a única negra e sou discriminada. Não é uma questão de discriminação social, é da cor da pele. Só diz isso quem não passa pelos constrangimentos pelos quais os negros passam.
Quais foram os desafios de trabalhar temas como as literaturas africanas?
Trabalho numa área que, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, é considerada “menor” por muita gente. Infelizmente, gente com algum poder — e que não sabe nada dos Estudos Africanos e do que se passa no mundo académico, as mudanças que se vêm operando.
Mas
a área foi ganhando espaço também por causa da importância que os países
africanos vêm ganhando. Fomos conseguindo conquistar espaço, obviamente com o
apoio de colegas das áreas afins, e hoje a faculdade tem nos seus planos
curriculares no âmbito das literaturas e culturas não apenas uma unidade
curricular de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, mas várias
disciplinas de Literatura Angolana, Moçambicana, Literaturas Insulares,
Literatura Colonial, Literaturas Pós-Coloniais (entre outras). Sem falar de
unidades curriculares sobre culturas e civilizações africanas. Foi uma
conquista e também uma evidência de que as mentalidades estão a mudar. Ainda
que acredite que em muitas cabeças as disciplinas de literaturas e culturas
africanas ainda sejam “matérias menores”, quero crer que essas pessoas são
passado.
Joana
Gorjão Henriques | Público
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