China
investe suas reservas de dólares num projeto gigantesco de infraestrutura. EUA
articulam, com a Índia e o Japão, uma resposta — mas podem ter chegado tarde
demais…
Pepe
Escobar | Outras Palavras | Tradução: Vila Vudu
No
contexto do Novo Grande Jogo na Eurásia, as Novas Rotas da Seda, conhecidas
como Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE) integram todos os instrumentos do
poder nacional da China –político, econômico, diplomático, financeiro,
intelectual e cultural– para modelar a ordem geopolítica/geoeconômica do século
21. ICE é o conceito que organiza a política externa da China para o futuro que
se pode antever; o coração do qual foi posto em termos de conceito antes até do
presidente Xi Jinping, como “a ascensão pacífica da China”.
A
reação do governo Trump ao fôlego e aos objetivos da ICE foi, pode-se dizer,
minimalista. Por hora, resume-se a uma mudança de terminologia, do que antes se
conhecia como Pacífico Asiático, para o que hoje se conhece como
“Indo-Pacífico”. O governo Obama, até a última visita do ex-presidente à Ásia,
em setembro de 2016, sempre falou de Pacífico Asiático.
O
Indo-Pacífico inclui o sul da Ásia e o Oceano Índico. Assim, de um ponto de
vista norte-americano, implica elevar a Índia ao status de superpotência global
ascendente capaz de “conter” a China.
O
secretário de Estado dos EUA Rex Tillerson não poderia ter dito em termos mais claros: “O centro de gravidade do mundo
está mudando, para o coração do Indo-Pacífico. EUA e Índia – com nossos
objetivos partilhados de paz, segurança, liberdade de navegação e uma
arquitetura livre e aberta – devem servir como faróis oriental e ocidental do
Indo-Pacífico. Como o porto e as luzes de estibordo entre os quais a região
pode atingir sem maior e melhor potencial.”
Tentativas
para pintá-la como “abordagem holística” podem mascarar uma clara mudança
geopolítica de rumo, na qual “Indo-Pacífico” soa como remix “movimento
de pivô para a Ásia”, de Obama, estendido à Índia.
Indo-Pacífico
aplica-se diretamente ao trecho do Oceano Índico na Rota Marítima da Seda, o
qual, como uma das principais rotas de conectividade da China, aparece com
grande destaque na “globalização com características chinesas”. Tanto quanto
Washington, Pequim é completamente favorável a livres mercados e acesso aberto
às mercadorias. Mas isso não tem de implicar necessariamente que, de um ponto
de vista chinês, uma rede institucional única, gigante e supervisionada pelos
EUA.
“Eurasáfrica”
No
que tenha a ver com Nova Delhi, abraçar o conceito de Indo-Pacífico implica
assumir um risco de caminhar na corda bamba.
Ano
passado, Índia e Paquistão foram incorporados como membros formais da
Organização de Cooperação de Xangai, elemento chave da parceira estratégica
Rússia-China.
Índia,
China e Rússia são países BRICS; o presidente do Novo Banco de Desenvolvimento
dos BRICS, com sede em Xangai, é indiano. A Índia é membro do Banco Asiático de
Investimento e Infraestrutura liderado pela China. E até recentemente a Índia
também participava da Iniciativa Cinturão e Estrada, ICE.
As
coisas começaram a se complicar, em maio passado, quando o primeiro-ministro
Narendra Modi recusou-se a comparecer à reunião de cúpula da ICE em Pequim, por
causa do Corredor Econômico China-Paquistão (CECP), entroncamento chave da ICE
e que atravessa o Gilgit-Baltistão e a sensível região que o Paquistão define
como Azad Caxemira e a Índia como a Caxemira ocupada pelo Paquistão.
Na
sequência, numa reunião do Banco de Desenvolvimento da África em Gujarat, Nova
Delhi apresentou-se o que pode ser definido como projeto rival da ICE: o
Corredor para Crescimento Ásia-África (CCAA) – em parceria com o Japão. Esse CCAA não poderia ser mais “Indo-Pacífico”, e realmente
demarca um Corredor Liberdade no Indo-Pacífico, pago pelo Japão e com o
know-how da Índia sobre a África, capaz de rivalizar com – e o que seria? – a
Iniciativa Cinturão Estrada.
Por
enquanto, nada há além de um já confesso “documento de visão geral” partilhado por Modi e seu
contraparte japonês Shinzo Abe para fazer várias coisas em tudo assemelhadas ao
que faz a ICE, tipo desenvolver infraestruturas e conectividade digital de
ponta.
E
com o CCAA vem o Quadrilateral, que o Ministério de Relações Exteriores do
Japão divulga como projeto de “uma ordem internacional livre e aberta, baseada
no Estado de Direito no Indo-Pacífico.” Mais uma vez se opõe a “estabilidade da
região do Indo-Pacífico” e o que Tóquio define como “a agressiva política
exterior da China” e “beligerância no Mar do Sul da China”, que gera riscos
contra o que a Marinha dos EUA define como “liberdade de navegação”.
Apesar
de Xi e Abe terem comemorado um novo início das relações sino-japonesas, a
realidade indica outra coisa. O Japão, invocando a ameaça que viria da
República Popular Democrática da Coreia, mas, na verdade, temendo a rápida
modernização militar da China, comprará mais armas dos EUA. Ao mesmo tempo,
Nova Delhi e Canberra estão preocupadíssimas com o massacre econômico militar
pelos chineses.
Essencialmente,
o CCAA e o Quadrilateral conectam a Política Act
East Policy da Índia, e a estratégia japonesa de Free and Open
Indo-Pacífico. Se se leem esses dois documentos, não é exagero concluir que
a estratégia indo-japonesa visa a constituir uma “Eurasáfrica”.
Na
prática, à parte a expansão na África, Tóquio também visa a espalhar projetos
de infraestrutura por todo o Sudeste da Ásia, em cooperação com a Índia –
alguns que competem ou se sobrepõem à ICE. O Banco Asiático de Desenvolvimento,
enquanto isso, pesquisa modelos alternativos de financiamento para projetos de
infraestrutura externos à ICE.
No
pé em que estão as coisas, o Quadrilateral é ainda obra em progresso, com seu
foco na “estabilidade da região do Indo-Pacífico” apostando contra o desejo
confesso de Pequim de criar uma “comunidade com futuro partilhado” no Pacífico
Asiático. Há razões para que nos preocupemos com a evidência de que essa nova
configuração possa realmente evoluir para clara e violenta polarização
econômica/militar da Ásia.
Racha
no coração dos BRICS
A
Ásia precisa de estonteantes $1,7 trilhões por ano, para projetos de infraestrutura,
segundo o Banco Asiático de Desenvolvimento. Em teoria, a Ásia como um todo tem
muito a ganhar com essa chuva de projetos da ICE chinesa acrescida de mais
projetos financiados pelo BDA e conectados ao CCAA.
Considerando
o âmbito e o escopo extremamente ambiciosos de toda a estratégia, a ICE largou
à frente e tem hoje considerável vantagem de partida. As vastas reservas de
Pequim já estão orientadas para investir numa rede asiática gigante de
infraestrutura, com o que exportam seu excedente de capacidade para construir e
melhoram a conectividade em todo o mundo.
Diferente
disso, Nova Delhi mal tem capacidade industrial para atender às necessidades da
Índia. De fato, a Índia precisa muitíssimo de investimentos em infraestrutura;
segundo extenso relatório, a Índia precisa de pelo menos $1,5
trilhão ao longo da próxima década. E para piorar, a Índia amarga um
persistente déficit comercial com a China.
Sucesso
tangível provável é o investimento indiano no porto de Chabahar no Irã, como
parte de uma estratégia comercial afegã (vide a segunda parte do
relatório).
Além
dos projetos de energia/conectividade como o sistema nacional digital ID
Aadhaar (1,18 bilhões de usuários) e investimentos numa série de usinas de
energia solar, a Índia tem muito que andar. Segundo o recentemente publicado
Índice Global da Fome [ing. Global Hunger Index (GHI)], a Índia está em
100º lugar dentre 119 countries pesquisados sobre fome infantil, considerados
quatro indicadores: subnutrição, mortalidade infantil, crianças abandonadas e
doenças infantis. A Índia está preocupantes sete pontos abaixo da Coreia do
Norte. E só sete pontos acima do Afeganistão, o último da lista.
Nova
Delhi não perderia se construísse projeto consciente para construir uma
parceria de cooperação Índia-China, no quadro dos BRICS. Aí se inclui aceitar
que os investimentos da ICE são úteis e essenciais para desenvolver a
infraestrutura indiana. As portas continuam abertas. Todos os olhos estão
postos nos dias 10-11 de dezembro, quando a Índia hospeda uma reunião
trilateral Rússia-Índia-China – em nível ministerial.
*Pepe
Escobar - Jornalista brasileiro, correspondente internacional desde 1985, morou
em Paris, Los Angeles, Milão, Singapura, Bangkok e Hong Kong. Escreve sobre
Asia central e Oriente Médio para as revistas Asia Times Online, Al Jazeera,
The Nation e The Huffington Post.
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