sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Jared Kushner reordena o Médio-Oriente

Thierry Meyssan*

Personalidade muito contestada pelos próprios membros da Administração Trump, Jared Kushner goza da total confiança do Presidente. Ele recebeu por missão reordenar o Médio-Oriente segundo o «princípio da realidade», contra a “doxa” de cada campo. Depois de sucessos tangíveis na Arábia Saudita, agora faz face à questão israelo-árabe.

Jared Kushner é uma personalidade muito secreta sobre a qual não se sabe grande coisa. No máximo, que ele tinha uma opinião elevada sobre a Justiça e se perfilava para ser Procurador. No entanto, quando o seu pai foi detido e preso por fraude fiscal, ficou convicto de uma injustiça. Segundo ele, o seu pai havia caído numa armadilha judicial. Abandonou então os seus estudos de Direito e tentou promover a empresa familiar de promoção imobiliária. O que ele fez com êxito. Durante este período, ele construiu uma imagem a mais discreta possível de maneira a distanciar-se das acusações lançadas contra o seu pai.

O seu sogro, Donald Trump, parece atribuir-lhe confiança extrema ao ponto de o encarregar de facto de dirigir a sua campanha eleitoral. Alguns dos seus adversários manifestaram surpresa perante a sua capacidade em organizar esta campanha com meios irrisórios e ainda assim alcançar a vitória.

Desde a sua chegada à Casa Branca, o Presidente Trump fá-lo participar nas reuniões mais secretas muito embora ele não disponha da acreditação de Segurança ; uma acreditação da qual ele continua a não dispôr.

Esperando deixar um nome na História ao concretizar um feito que todos os seus predecessores evocaram sem jamais o conseguir, o Presidente Trump encarregou-o de resolver o conflito israelo-árabe e de pacificar o Médio-Oriente. É um desafio tanto mais arriscado a enfrentar quando o jovem (36 anos) se envolveu previamente ao lado de Israel apoiando financeiramente o Tsahal ( F.D.I.-ndT) e os colonatos judeus em terras palestinianas. Tendo, no entanto, Kushner uma enorme necessidade de se fazer aceitar pelo seu meio, é possível que estes donativos tenham um outro significado para além do que lhes é atribuído à primeira vista.

Nomear para estas funções uma personalidade de confiança, mas desprovida de experiência diplomática, é uma segunda parada do Presidente Trump. Considerando o falhanço dos diplomatas profissionais, este apostou numa abordagem nova para um problema antigo. Para esta missão, Jared Kushner obteve um raro privilégio : ele é o único alto-funcionário cujos encontros com personalidades políticas estrangeiras não são objeto de conferências. Ninguém o poderá, pois, inculpar pelas suas “gaffes”, nem sequer criticar a sua maneira de abordar os assuntos. Nem o próprio Secretário de Estado, uma vez que ele reporta unicamente ao Presidente.

De acordo com a opinião das personalidades que com ele se encontraram, Kushner segue os mesmos princípios que o seu sogro: 

• primeiro tomar nota da realidade mesmo que isso implique abandonar uma retórica oficial bem estabelecida ;
• em segundo lugar considerar todas as vantagens que pode tirar de acordos bilaterais anteriores ;
• e em terceiro lugar levar em conta tanto quanto se pode o Direito Internacional.

A única diferença para o seu sogro reside no seu perfeito mutismo em vez das declarações provocatórias e contraditórias que o Presidente usa para sacudir os seus interlocutores.

Durante os dez últimos meses, Jared Kushner multiplicou as suas idas e vindas ao Médio-Oriente, particularmente para os seus dois destinos predilectos : a Arábia Saudita e Israel. Nós acabamos de assistir, sem compreender, ao início da sua operação.

A Arábia Saudita

A realidade da Arábia era, do ponto de vista de Trump durante a sua campanha eleitoral:

• a acumulação de petro-dólares que são maciçamente dólares pagos pelos EUA por um petróleo que os Sauditas não produzem.
• o papel central do reino, sob o contrôlo do MI6 e da CIA, na luta contra o nacionalismo árabe e a manipulação do terrorismo islâmico.
• a sua crise de sucessão.

Os acordos bilaterais, que são os de Quincy assinados por Franklin Roosevelt em 1945, renovados por George Bush Jr. em 2005 até 2065. Muito embora jamais tenham sido publicados, numerosas personalidades que participaram na sua negociação resumiram-nos assim:

• O Rei da Arábia aceita o contrôlo dos Estados Unidos sobre o seu petróleo, enquanto que estes últimos se comprometem a proteger o Rei e por extensão a sua propriedade privada, a Arábia Saudita.
• O Rei da Arábia compromete-se a não colocar obstáculo à criação de um Estado para a população judia do antigo Império Otomano, enquanto que os Estados Unidos promovem o seu papel regional.

Jared Kushner preparou, pois, a cimeira, de 21 de Maio de 2017, que reuniu em Riade a quase totalidade dos chefes de Estado do mundo muçulmano em torno do Presidente Trump. A Arábia Saudita cortou imediatamente as pontes com os Irmãos Muçulmanos e cessou de financiar os grupos jiadistas em todo o mundo ---em todo o caso quase todos, excepto no Iémene [1]—.O reino usou da sua influência para convencer os outros Estados muçulmanos presentes. No entanto, esse sucesso teve um custo:

• O Catar recusou a nova política dos EUA. Não aceitando ter estoirado em vão 137 mil milhões (bilhões-br) de dólares [2] contra a Síria, prosseguiu o seu apoio à certos jiadistas. A Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos decidiram então, unilateralmente, o seu bloqueio. Se o Secretário de Estado, Rex Tillerson, tentou manter-se afastado desta querela, Kushner e o Presidente Trump tomaram, na ocasião, partido pela Arábia.
• Kushner comprometeu-se a ajudar o Rei Salman a regular, como ele acha, a sua sucessão no trono.

O golpe palaciano de 4 de Novembro

Jared Kushner foi à Arábia Saudita durante três dias, nos fim de Outubro. Teve longas reuniões de trabalho com o filho do Rei, o Príncipe Mohammed bin Salman (MBS), e estabeleceu com ele a lista dos membros da família real que seriam neutralizados. Não sabendo qual seria a reacção da Guarda Real, uma vez o Príncipe Muteb demitido, ele providenciou a MBS a assistência de mercenários da Academi (anterior Blackwater) para proceder às detenções. Por fim, lembrando-se da campanha mediática contra o seu pai, ele forneceu os spin doctors (peritos publicitários-ndT) para enroupar este golpe palaciano com o moralizante discurso da «luta contra a corrupção».

Ele já tinha deixado Riade quando o Primeiro-ministro libanês, Saad Hariri — filho legal de Rafic Hariri, mas filho biológico de um Príncipe Fadh [3] — foi convidado a a dirigir-se de urgência a Riade «para aí ser recebido pelo Rei Salman». O seguimento é conhecido [4] : o discurso de demissão de Hariri e a prisão ou execução de todos os príncipes suscetíveis de contestar ou de reivindicar a sucessão ao trono.

As centenas de primos de MBS que foram presos, foram colocados em residência vigiada ou detenção. Uns após os outros, eles aceitaram —muitas vezes sob tortura— a entregar as suas fortunas ao seu suserano. Este sacou, assim, mais de 800 mil milhões de dólares, segundo o Wall Street Journal [5].

Nenhuma voz se levantou, no mundo inteiro, para vir em socorro destes bilionários caídos em desgraça, que haviam feito parte, até aí, dos mais prestigiosos conselhos de administração.

Testemunhas garantem que alguns membros da família real foram hospitalizados e tratados antes de retornar à sala de interrogatório. MBS afirma ter libertado várias personalidades, entre as quais o Príncipe Mutab, ele mesmo, Turki ben Abdallah, o Dr. Ibrahim ben Abdelaziz bin Abdallah al-Assaf (antigo Ministro das Finanças saudita) e Mohammad bin Abdul Rahman al-Toubaichi (ex-Chefe do protocolo na corte).

Certamente a história ainda não acabou. Conforme com as instruções do Presidente Trump, Jared Kushner irá agora procurar recuperar para o seu país uma parte das fortunas confiscadas.

O caso Hariri

Contrariamente ao que afirma a imprensa francesa, a libertação do Primeiro-ministro libanês não deve grande coisa a Paris. É certo que o Presidente Emmanuel Macron interveio, já que Saad Hariri tem a tripla nacionalidade saudo-libanesa-francesa. É verdade que ele próprio foi a Riade, mas para acabar por lá se deixar humilhar [6] . A única acção útil veio do seu homólogo libanês, o Presidente Michel Aoun.

A França viu-se confrontada com uma realidade simples: no Direito Consular internacional, os multi-nacionais não podem dispôr de imunidade diplomática num país do qual são nacionais. Todavia, o Presidente Aoun fez bascular a situação ao não defender o homem Saad Hariri, mas sim o seu Primeiro-ministro, Saad Hariri. Não há qualquer dúvida que deter e colocar em residência vigiada o chefe do governo de um país terceiro à revelia de qualquer processo judicial é um acto de guerra; e aliás a imprensa internacional espalhava por rumores sobre um possível bombardeamento saudita do Líbano. De imediato, o Palácio de Baabda ameaçou levar o caso perante o tribunal arbitral das Nações Unidas e simultaneamente envolver o Conselho de Segurança. Ele envolveu igualmente, através do seu homólogo sírio, Bashar al-Assad, o Presidente egípcio, Abdel Fattah al-Sissi, que faz a ponte entre os pró e os anti-EUA. Foi este último quem telefonou a Jared Kushner e obteve com o seu apoio a libertação do Primeiro-ministro. E, aliás, logo que foi libertado ele dirigiu-se ao Cairo para agradecer a al-Sissi.

A questão israelo-árabe

Resta a questão israelo-palestiniana.

A crua realidade é: 

• Desde há 70 anos, Israel não parou de mordiscar os territórios dos seus vizinhos. Ocupa actualmente o Golã sírio, as quintas de Chebaa libanesas, uma enorme parte dos territórios palestinianos de 1967, entre os quais toda a Jerusalém Oriental.
• Os dirigentes da Resistência palestina foram quase todos neutralizados por Israel: muitos foram assassinados, aqueles que restam na Fatah foram amplamente corrompidos pelos seus inimigos, enquanto os do Hamas colaboraram abertamente com a Mossad para eliminar os seus rivais [7]. Para combater pelos seus direitos não restam mais que alguns pequenos grupos, como a Jiade Islâmica e a FPLP-CG. 
• É certo, os Palestinianos e ao outros povos árabes e / ou muçulmanos mantêm um senso de Justiça e militam pelo respeito dos direitos inalienáveis do povo palestino. Mas, na ausência de uma representação política credível, eles nada mais podem fazer que desfilar às dezenas de milhões no «Dia de Jerusalém».

Os acordos bilaterais, que são : 

• A realização do projecto expresso pela declaração britânica Balfour e pelos 14 pontos do Presidente Wilson ao criar Israel [8] .
• A carta endereçada ao Primeiro-ministro Ariel Sharon pelo Presidente George Bush Jr. que refuta o direito ao retorno dos refugiados palestinos e reconhece os territórios conquistados, depois de 1949, como fazendo parte integrante de Israel [9].

Os acordos multilaterais, que são: 

• As resoluções 242 [10] e 338 [11] do Conselho de Segurança das Nações Unidas e o artigo 49 da 4ª Convenção de Genebra.

Só o Presidente Trump e alguns dos seus conselheiros conhecem o cenário que Jared Kushner escreveu. Ele prosseguiu a política dos seus predecessores para reduzir a questão israelo-árabe a um simples diferendo israelo-palestino. Na linha de John Kerry, promoveu a reconciliação entre a Fatah e o Hamas, e conseguiu levá-los a assinar (mas não, nem à PFLP-GC, nem a Jiade Islâmica) um acordo, a 12 de Outubro no Cairo [12]. Ele conseguiu fazer nomear para a chefia do Hamas um amigo de infância do líder da Fatah, Mohamed Dahlan, preparando a fusão dos dois movimentos.

Além do mais, as facções palestinas mantêm sempre discursos radicalmente diferentes. Para a Fatah, Israel é uma espécie de segunda Rodésia, um Estado colonial que se auto-proclamou independente. Enquanto para o Hamas —apoiando-se em Hadiths (e não no Alcorão)—, o problema é que uma terra muçulmana não pode ser governada por não-muçulmanos.

O início dos acontecimentos acaba de se dar com o anúncio da transferência da embaixada dos EUA de Telavive para Jerusalém.

Claramente, a Casa Branca está testando a sua capacidade de passar à bruta. Com efeito, por um lado, o plano de partilha da Palestina previa efectivamente que Jerusalém Ocidental fosse a capital do Estado hebreu. Mas, por outro lado, o Conselho de Segurança condenou Israel quando, unilateralmente, fez de Jerusalém Ocidental a sua capital [13].

A estranha reunião da Organização para a Cooperação Islâmica, que acaba de se realizar em Istambul, propôs a transferência da capital do Estado palestiniano de Ramallah para Jerusalém Oriental [14]. Acontece que isso parece dificilmente concretizável e não foi efectivamente feito. Talvez não se tratasse mais do que uma bravata sonante destinada a fazer admitir esse abandono à opinião pública muçulmana.

Conclusão provisória

Os adversários do Presidente Trump tentam por todos os meios forçá-lo a desistir do seu conselheiro, Jared Kushner. No entanto este continua em campo. Ele conseguiu, de momento, pôr um fim ao apoio saudita aos grupos terroristas e resolver a questão da sucessão ao trono, cortando para tal o nó górdio, ou seja, neutralizando a família real. Podemos lamentar o método usado: pendurar idosos pelos pés e torturá-los até que eles revelassem os segredos das suas contas bancárias. No entanto, todas as outras soluções, ou pior, a ausência de solução, teriam levado a uma guerra civil. A culpa não reside em Jared Kushner, mas naqueles que aceitaram durante tanto tempo este regime bárbaro e medieval dos Saud.

Da mesma forma é, hoje em dia, extremamente injusto não o transferir a embaixada dos EUA para Jerusalém ocidental mas, sim, renunciar ao estabelecimento do governo palestino em Jerusalém Oriental. Mais uma vez, a responsabilidade não tem a ver com Jared Kushner, mas com a «comunidade internacional», e particularmente com os governos sionistas árabes, que, durante 70 anos, deixaram Israel ir mordiscando a pouco e pouco a cidade, apartamento por apartamento.

Também, enquanto desde há 70 anos os diplomatas ocidentais se concentram em multiplicar e complicar os conflitos do Médio-Oriente, Jared Kushner é o primeiro a tentar resolvê-los. O conselheiro presidencial, com a cara de anjo, é um formidável organizador.


*Thierry Meyssan - Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación (Monte Ávila Editores, 2008).

Notas:
[1] “A Arábia Saudita e os Emirados não romperam com os Irmãos Muçulmanos”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 17 de Dezembro de 2017.
[2] Número revelado pelo antigo Primeiro-ministro Xeque Hamad bin Jassim.
[3] E não de um príncipe Abdallah como eu havia escrito uma vez por engano. NdA.
[4] “Golpe Palaciano em Riade”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 7 de Novembro de 2017.
[5] “Saudis Target Up to $800 Billion in Assets”, Margherita Stancati & Summer Said, Wall Street Journal, November 8, 2017. Esta soma contradiz as asserções de MBS para quem as somas sacadas não passam os 100 mil milhões(bilhões) de dólares: “Saudi Arabia’s Arab Spring, at Last. The crown prince has big plans for his society” («Finalmente, Primavera Árabe Saudita. O Príncipe herdeiro tem grandes planos para a sua sociedade»- ndT), Thomas L. Friedman, The New York Times, November 23, 2017.
[6] “A afronta infligida ao Presidente Macron na Arábia Saudita”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 14 de Novembro de 2017.
[8] “Quem é o inimigo?”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 4 de Agosto de 2014.
[9] « Lettre de George W. Bush à Ariel Sharon », par George W. Bush, Réseau Voltaire, 14 avril 2004.
[10] « Résolution 242 du Conseil de sécurité de l’ONU », ONU (Conseil de sécurité) , Réseau Voltaire, 22 novembre 1967.
[11] « Résolution 338 du Conseil de sécurité de l’ONU », ONU (Conseil de sécurité) , Réseau Voltaire, 22 octobre 2003.
[12] “Reconciliação palestina”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 14 de Outubro de 2017.
[13] A rejeição pelo Conselho de Segurança da Lei sobre Jerusalém, em 1980, não entrou na questão de saber se Israel tinha escolhido como capital Jerusalém Ocidental ou Jerusalém na sua totalidade. Ele condenou o princípio de uma declaração unilateral, considerando que o estatuto de Jerusalém só podia ser modificado por uma negociação israelo-palestina, Cf. Resoluções 476 e 478.
[14] Esta proposição visa curto-circuitar uma proposta saudita de transferência da capital palestiniana para arrabalde de Jerusalém, Abou Dis, que está separado do resto da cidade pelo Muro de separação.

Turquia reivindica a liderança muçulmana


M K Bhadrakumar [*]

A Declaração de Istambul da Organização da Conferência Islâmica (OCI) afirmando Jerusalém Leste como a capital do estado da Palestina é um evento histórico. A iniciativa turca de reunir uma cimeira extraordinária em Istambul alcançou o seu objectivo. A cimeira foi bem participada, embora convocada com pouca antecedência.

Uma ausência notável foi a do rei Salman da Arábia Saudita. O ministro saudita para assuntos religiosos aparentemente representou o seu país. Na terça-feira, a Turquia provocou abertamente a Arábia Saudita. O ministro dos Negócios Estrangeiros Mevlut Cavusoglu disse: "Alguns países árabes mostraram respostas muito fracas (sobre Jerusalém). Parece que alguns países são muito tímidos em relação aos Estados Unidos". Ele acrescentou que a Arábia Saudita ainda tinha de dizer como participaria.

A Declaração de Istambul diz que "rejeita e condena nos mais fortes termos a decisão unilateral do presidente dos Estados Unidos da América reconhecendo Jerusalém como a assim chamada capital de Israel, o poder ocupante". Ela insta o mundo a reconhecer Jerusalém Leste como a capital ocupada do estado palestino e convida "todos os países a reconhecerem o estado da Palestina e Jerusalém Leste como a sua capital ocupada".

A OCI colocou a fasquia num nível elevado. Mas a OCI é em grande medida ineficaz e suas declarações permanecem só no papel. Haverá agora qualquer coisa diferente? Sim, poderia ser diferente. Uma é que a Declaração de Istambul numa penada desmascara a pretensão dos Estados Unidos de ser o condutor do processo de paz do Médio Oriente. O direito de acção (locus standi) de Washington como mediador acabou por ser questionado nada menos que o presidente palestino Mahmoud Abbas, o qual geralmente tem sido encarado como um serviçal (cats-paw) da inteligência dos EUA (e israelense) e da Arábia Saudita.

O facto de Abbas ter endurecido só reflecte o facto de que o terreno debaixo dos seus pés mudou. A opinião popular no Médio Oriente muçulmano tornou-se assim esmagadoramente anti-americana. Isto tem implicações geopolíticas. De modo interessante, Moscovo enviou um representante para assistir como observador a cimeira da OCI em Istambul.

Israel ultimamente estava a ganhar a confiança de que podia romper o isolamento e formar uma quase-aliança com a Arábia Saudita. Não era uma esperança realista e baseava-se na personalidade política do jovem Príncipe Coroado saudita. Mas tais esperanças devem agora ser desactivadas. Israel também pode ter de viver com a realidade de uma forte presença iraniana na Síria nos próximos anos. Claramente, Israel excedeu-se. É duvidoso que Israel ganhe alguma coisa com a decisão de Trump sobre Jerusalém. Mesmo uma relocalização da Embaixada do EUA em Tel Aviv pode levar ano – e, por tudo o que se sabe, mantida indefinidamente em suspensão por Washington por uma questão de conveniência.

O que se sabe ser ainda desconhecido é quanto ao manto da liderança no mundo islâmico. A cimeira de Istambul foi uma iniciativa pessoal do presidente Recep Erdogan. Um inquérito de opinião efectuado pela Pew descobriu que Erdogan é hoje a figura mais popular no Médio Oriente muçulmano.

Certamente Erdogan está a fazer uma determinada inflexão para reivindicar a liderança do mundo muçulmano, como costumava acontecer sob os sultões otomanos. Com a Arábia Saudita enredada numa transição difícil e com o seu futura cada vez mais incerto (mais ainda com a guerra brutal no Iémen em que está atolada), a hora da Turquia pode ter chegado. A plataforma principal de Erdogan é a sua ênfase na unidade da "Ummah". O seu toque de clarim para deixar as políticas sectárias para trás obteve grande ressonância. E aqui a Turquia e o Irão estão, também, totalmente de acordo.

Um papel de liderança será conveniente para Erdogan, pois dá-lhe "profundidade estratégica" em relação ao Ocidente, além de consolidar a sua base de poder dentro da Turquia. Por outro lado, ele pode tomar sua autoridade califal seriamente para relançar a OCI como uma ferramenta intervencionista para enfrentar questões muçulmanas por todo o mundo. Países como Myanmar ou Índia sentem a pressão.

De modo geral, um período muito transformativo está pela frente no mundo muçulmano. Trump não teria antecipado tudo isto a jusante quando abriu a caixa de Pandora. Ele não é conhecido por ser um grande estratega. A agência de notícias Anadolu apresentou um comentário incisivo sobre como o sentido de obrigação de Trump para com o lobby judeu levou-o quase totalmente para esta fatídica decisão sobre Jerusalém. Ler aqui: Trump's decision: Inside story, expected consequences . 

13/Dezembro/2017

[*] Analista político, antigo diplomata indiano.

Ver também: 

O original encontra-se em blogs.rediff.com/mkbhadrakumar/...

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ 

UE | A estratégia do federalismo clandestino

Durante o ano de 2017, com epicentros em dois momentos que ultrapassaram as esferas meramente propagandística e doutrinária, a União Europeia reforçou de maneira sub-reptícia, à revelia dos cidadãos, o posicionamento no caminho do federalismo.

José Goulão*

Numa simulada fuga para a frente através da qual pretendem responder, como uma panaceia para todos os males, ao trauma do Brexit, à deterioração da credibilidade interna, à teimosia da crise em banho-maria e à insignificância da influência nos assuntos internacionais, as instituições europeias continuam a definir metas sem solidificar as transições.

Arrastando-se num aparente fatalismo suicida, a União Europeia persiste em repetir erros sem olhar para as misérias que preenchem a sua história, nem delas retirar lições e ilacções. Sem necessitarmos de embrenhar-nos nas patranhas míticas dos «pais fundadores», que verdadeiramente correspondiam ao objectivo de transformar a Europa numa réplica capitalista decalcada dos Estados Unidos da América - e de que o federalismo de hoje traduz um seguidismo reajustado aos dogmas neoliberais -, basta-nos recuar duas décadas e meia para identificar situações de deriva oportunista que só poderiam degenerar no caos presente - o qual, portanto, não é obra do acaso. As transformações que arrastaram os povos europeus para os efeitos perversos e antidemocratas do Tratado de Maastricht; os mecanismos ditatoriais disfarçados nas linhas e entrelinhas do Tratado de Lisboa; a imposição da moeda única no topo dos «critérios de convergência» movidos por intenções escravocratas; os alargamentos determinados por ambições neocoloniais, que não hesitaram sequer na destruição terrorista e sangrenta da Jugoslávia e em servir-se do restauracionismo fascista, trouxeram a União Europeia primeiro até à famigerada «crise» e depois ao descalabro presente, que vinha já no ventre daquela.

Este quadro de anarquia, confusão e crise, porém, apenas contradiz o discurso oficial e propagandístico da União, que não os verdadeiros objectivos da sua existência e da sua prática; por sua vez escondidos dos cidadãos mediante uma estratégia não oficialmente assumida, logo clandestina.

«O caminho que continua a balizar-se em direcção ao verdadeiro e único objectivo (...) é o da instauração do federalismo.»

O caminho que continua a balizar-se em direcção ao verdadeiro e único objectivo, a instauração plena da anarquia económica e financeira correspondente à definição, sem sofismas, do conceito de «livre mercado», é o da instauração do federalismo.

É verdade que a palavra não se lê e ouve amiúde; tão-pouco é possível detectá-la nas declarações e documentos oficiais da eurocracia. Nunca admitir a existência de objectivos federalistas na estratégia em desenvolvimento é uma regra de ouro tacitamente respeitada por responsáveis encartados da União. A propaganda de tal objectivo continua a ser apenas um adorno semântico das inflamadas arengas «europeístas» pregadas por elites bem-pensantes, em correlação impossível com princípios como a salvaguarda dos direitos humanos, a plenitude da democracia e a fraternidade entre os povos. E assim, por ínvios caminhos, iremos encontrar o federalismo como suprassumo do «europeísmo» libertador, irmanados no berço da mais desumana escravocracia e ao longo de um percurso onde se escondem da opinião pública os reais objectivos, as verdades e os desfechos que possam ensombrar o belo discurso democrata e humanista cultivado pela União Europeia.

Que não se acusem, porém, os dirigentes europeus de estarem envolvidos nesta mistificação. Eles não seguem nem assumem o federalismo: apenas enunciam medidas que possam supostamente consolidar a União Europeia, transmitir-lhe um dinamismo económico e financeiro competitivo com outros blocos mundiais e assegurar-lhe um papel determinante nos mecanismos de tomada de decisões de âmbito global. Se essas medidas correspondem a passos federalistas consumados, já não é um problema deles. Coincidências sempre houve; e políticas de factos consumados também.

A mais elaborada dessas coincidências recentes - e que poderá ficar para a história como o momento em que a União Europeia deu novo passo no caminho do federalismo, ainda e sempre de maneira encapotada, foi o discurso sobre o estado da União proferido pelo presidente da Comissão Europeia em Setembro de 2017. Tratou-se de um documento invulgarmente doutrinário para os hábitos dos eurocratas, com orientações estratégicas na perspectiva de 2025, uma espécie de novo grande salto em frente sem inquietações de maior com o que para trás ficou desconjuntado, afinal quase tudo.

Jean-Claude Juncker não proferiu uma única vez as palavras «federalismo» ou «federalista». Logo a seguir, porém, não faltaram palavras saudando entusiasticamente o seu discurso «sólido», «inteligente» e, sobretudo, «astuto», elogios esses soltados das bandas e correntes mais fervorosamente «europeístas», logo federalistas.

«Vale isto por dizer que os "europeístas" impenitentes (...) não vêem qualquer inconveniente em que a federalização se processe por cima e contra os povos».

Como na altura se disse, o presidente da Comissão não tinha condições nem estatuto para assumir isoladamente uma comunicação com este conteúdo, que só pode resultar de congeminações conciliares de personalidades, entidades e círculos mais ou menos encobertos que põem e dispõem na e da União Europeia.

Como é próprio do funcionamento da União, o tipo de proclamação feita por Juncker e as correspondentes reacções oficiais, oficiosas ou amestradas já não permitem interpretá-la como uma fonte de sugestões ou propostas. Transporta um conteúdo dogmático impondo medidas cuja aplicação poderá ser, a prazo, mais ou menos polémica, porém, indiscutível, inquestionável e à prova de qualquer eventual obstáculo que surja fazendo funcionar o que resta de democracia.

Não é por acaso que o adjectivo «astuto» tenha sido aplicado ao discurso de Juncker e logo por uma personalidade como Francisco Assis, europeísta e federalista fervoroso, militante acima de qualquer suspeita do partido único conhecido como «bloco central» ou «arco da governação».

Recorda-se que entre as medidas a impor citadas por Juncker estão, por exemplo, a criação do cargo de ministro europeu da Economia e Finanças. E também de um «Serviço Europeu de Inteligência», isto é, uma superpolícia política e de espionagem continental alegadamente subordinada ao pretexto canónico: o combate ao terrorismo, fenómeno ambivalente pelo qual também são reconhecidamente responsáveis algumas potências europeias e da NATO envolvidas nas guerras de agressão conduzidas pelos Estados Unidos.

Dois meses depois da homilia de Juncker, em Novembro, 23 membros da União Europeia assinaram a Pesco, sigla anglo-saxónica para Cooperação Permanente Estruturada ou, muito simplesmente, a «Europa da Defesa». Na prática, um subproduto federalista europeu da NATO, a subordinação de uma união militar de âmbito continental à doutrina agressiva do Pentágono. A aplicação do termo «Defesa» a esta estrutura, no mesmo léxico em que a NATO diz cumprir apenas uma doutrina «defensiva», nunca ofensiva, expõe a articulação das duas entidades ou a «complementaridade» da Pesco em relação à Aliança Atlântica, como explicou o secretário geral atlantista, Jens Stoltenberg, durante o acto de assinatura da «Europa da Defesa», em pleno Conselho de Ministros dos Negócios Estrangeiros da União. O governo português não figura entre os signatários originais da Pesco - restando agora saber quanto tempo dura este assomo de dignidade e independência nacional, ou se é disso que se trata.

Existindo já uma espécie de ministro dos Negócios Estrangeiros da União Europeia - o Alto Representante da UE para a Política Externa e de Segurança -, uma moeda única, um banco central e uma união bancária; passando a existir um Ministério da Economia e Finanças da União, uma estrutura de «Defesa» e uma polícia de espionagem federalizada, constata-se que a construção da Europa federal já vai avançada, e logo nas áreas neoliberais mais estratégicas: políticas monetária, económica e financeira; políticas externa, de defesa, de segurança e de espionagem.

«No ano de 2017, em plena Europa dita da democracia e das liberdades, deram-se mais alguns passos decisivos no sentido da liquidação da democracia e da erradicação das liberdades.»

Pode deduzir-se que o resto virá por acréscimo; o mais importante está feito, contemplando precisamente as estruturas económicas, monetárias e financeiras unificadas, protegidas por ampla cobertura nas áreas da segurança interna, repressão e espionagem, política externa, expansão e rapina, através da polícia e do exército federais, sendo este um braço da NATO.

Vale isto por dizer que os «europeístas» impenitentes, incluindo os românticos e mais progressistas que ninguém, projectando-se no paraíso de uma «Europa de povos federados», não vêem qualquer inconveniente em que a federalização se processe por cima e contra os povos, pelos imperadores da economia, os magnatas da especulação e respectivos protectores encarregados da repressão de índole ditatorial, da espionagem, das guerras e do expansionismo. E que tudo assim continue até à federalização total, mecanismo da exploração absoluta e global dos povos como estado supremo do «mercado livre», o capitalismo sem leis nem regras; talvez fiscalizado apenas pelos nossos bem conhecidos reguladores de faz-de-conta.

De que modo foram auscultados os cidadãos europeus sobre estas transformações profundas que se reflectem, como nenhumas outras, nas suas vidas quotidianas e implicam a perda de parcelas fulcrais da nacionalidade, soberania, privacidade, liberdade e intervenção democrática? Tanto quanto foram auscultados na adesão à União, à moeda única, à união bancária, à perda da autonomia orçamental, ao Tratado de Maastricht, ao Tratado de Lisboa, etc., etc. Isto é, nada. No paraíso da democracia representativa, que assim se apresenta a todo o mundo, nem que para isso seja necessário multiplicar guerras de agressão e violar desde os direitos humanos ao direito internacional, a vontade dos cidadãos não conta para nada.

No ano de 2017, em plena Europa dita da democracia e das liberdades, deram-se mais alguns passos decisivos no sentido da liquidação da democracia e da erradicação das liberdades. Em nome da «libertação do mercado», que se dará como plenamente satisfeito - e livre - numa sociedade escravocrata federal, enfeitada por um lote sortido de direitos formais para todos os gostos e proveito de poucos.

*AbrilAbril em  Pravda.ru

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