sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Jared Kushner reordena o Médio-Oriente

Thierry Meyssan*

Personalidade muito contestada pelos próprios membros da Administração Trump, Jared Kushner goza da total confiança do Presidente. Ele recebeu por missão reordenar o Médio-Oriente segundo o «princípio da realidade», contra a “doxa” de cada campo. Depois de sucessos tangíveis na Arábia Saudita, agora faz face à questão israelo-árabe.

Jared Kushner é uma personalidade muito secreta sobre a qual não se sabe grande coisa. No máximo, que ele tinha uma opinião elevada sobre a Justiça e se perfilava para ser Procurador. No entanto, quando o seu pai foi detido e preso por fraude fiscal, ficou convicto de uma injustiça. Segundo ele, o seu pai havia caído numa armadilha judicial. Abandonou então os seus estudos de Direito e tentou promover a empresa familiar de promoção imobiliária. O que ele fez com êxito. Durante este período, ele construiu uma imagem a mais discreta possível de maneira a distanciar-se das acusações lançadas contra o seu pai.

O seu sogro, Donald Trump, parece atribuir-lhe confiança extrema ao ponto de o encarregar de facto de dirigir a sua campanha eleitoral. Alguns dos seus adversários manifestaram surpresa perante a sua capacidade em organizar esta campanha com meios irrisórios e ainda assim alcançar a vitória.

Desde a sua chegada à Casa Branca, o Presidente Trump fá-lo participar nas reuniões mais secretas muito embora ele não disponha da acreditação de Segurança ; uma acreditação da qual ele continua a não dispôr.

Esperando deixar um nome na História ao concretizar um feito que todos os seus predecessores evocaram sem jamais o conseguir, o Presidente Trump encarregou-o de resolver o conflito israelo-árabe e de pacificar o Médio-Oriente. É um desafio tanto mais arriscado a enfrentar quando o jovem (36 anos) se envolveu previamente ao lado de Israel apoiando financeiramente o Tsahal ( F.D.I.-ndT) e os colonatos judeus em terras palestinianas. Tendo, no entanto, Kushner uma enorme necessidade de se fazer aceitar pelo seu meio, é possível que estes donativos tenham um outro significado para além do que lhes é atribuído à primeira vista.

Nomear para estas funções uma personalidade de confiança, mas desprovida de experiência diplomática, é uma segunda parada do Presidente Trump. Considerando o falhanço dos diplomatas profissionais, este apostou numa abordagem nova para um problema antigo. Para esta missão, Jared Kushner obteve um raro privilégio : ele é o único alto-funcionário cujos encontros com personalidades políticas estrangeiras não são objeto de conferências. Ninguém o poderá, pois, inculpar pelas suas “gaffes”, nem sequer criticar a sua maneira de abordar os assuntos. Nem o próprio Secretário de Estado, uma vez que ele reporta unicamente ao Presidente.

De acordo com a opinião das personalidades que com ele se encontraram, Kushner segue os mesmos princípios que o seu sogro: 

• primeiro tomar nota da realidade mesmo que isso implique abandonar uma retórica oficial bem estabelecida ;
• em segundo lugar considerar todas as vantagens que pode tirar de acordos bilaterais anteriores ;
• e em terceiro lugar levar em conta tanto quanto se pode o Direito Internacional.

A única diferença para o seu sogro reside no seu perfeito mutismo em vez das declarações provocatórias e contraditórias que o Presidente usa para sacudir os seus interlocutores.

Durante os dez últimos meses, Jared Kushner multiplicou as suas idas e vindas ao Médio-Oriente, particularmente para os seus dois destinos predilectos : a Arábia Saudita e Israel. Nós acabamos de assistir, sem compreender, ao início da sua operação.

A Arábia Saudita

A realidade da Arábia era, do ponto de vista de Trump durante a sua campanha eleitoral:

• a acumulação de petro-dólares que são maciçamente dólares pagos pelos EUA por um petróleo que os Sauditas não produzem.
• o papel central do reino, sob o contrôlo do MI6 e da CIA, na luta contra o nacionalismo árabe e a manipulação do terrorismo islâmico.
• a sua crise de sucessão.

Os acordos bilaterais, que são os de Quincy assinados por Franklin Roosevelt em 1945, renovados por George Bush Jr. em 2005 até 2065. Muito embora jamais tenham sido publicados, numerosas personalidades que participaram na sua negociação resumiram-nos assim:

• O Rei da Arábia aceita o contrôlo dos Estados Unidos sobre o seu petróleo, enquanto que estes últimos se comprometem a proteger o Rei e por extensão a sua propriedade privada, a Arábia Saudita.
• O Rei da Arábia compromete-se a não colocar obstáculo à criação de um Estado para a população judia do antigo Império Otomano, enquanto que os Estados Unidos promovem o seu papel regional.

Jared Kushner preparou, pois, a cimeira, de 21 de Maio de 2017, que reuniu em Riade a quase totalidade dos chefes de Estado do mundo muçulmano em torno do Presidente Trump. A Arábia Saudita cortou imediatamente as pontes com os Irmãos Muçulmanos e cessou de financiar os grupos jiadistas em todo o mundo ---em todo o caso quase todos, excepto no Iémene [1]—.O reino usou da sua influência para convencer os outros Estados muçulmanos presentes. No entanto, esse sucesso teve um custo:

• O Catar recusou a nova política dos EUA. Não aceitando ter estoirado em vão 137 mil milhões (bilhões-br) de dólares [2] contra a Síria, prosseguiu o seu apoio à certos jiadistas. A Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos decidiram então, unilateralmente, o seu bloqueio. Se o Secretário de Estado, Rex Tillerson, tentou manter-se afastado desta querela, Kushner e o Presidente Trump tomaram, na ocasião, partido pela Arábia.
• Kushner comprometeu-se a ajudar o Rei Salman a regular, como ele acha, a sua sucessão no trono.

O golpe palaciano de 4 de Novembro

Jared Kushner foi à Arábia Saudita durante três dias, nos fim de Outubro. Teve longas reuniões de trabalho com o filho do Rei, o Príncipe Mohammed bin Salman (MBS), e estabeleceu com ele a lista dos membros da família real que seriam neutralizados. Não sabendo qual seria a reacção da Guarda Real, uma vez o Príncipe Muteb demitido, ele providenciou a MBS a assistência de mercenários da Academi (anterior Blackwater) para proceder às detenções. Por fim, lembrando-se da campanha mediática contra o seu pai, ele forneceu os spin doctors (peritos publicitários-ndT) para enroupar este golpe palaciano com o moralizante discurso da «luta contra a corrupção».

Ele já tinha deixado Riade quando o Primeiro-ministro libanês, Saad Hariri — filho legal de Rafic Hariri, mas filho biológico de um Príncipe Fadh [3] — foi convidado a a dirigir-se de urgência a Riade «para aí ser recebido pelo Rei Salman». O seguimento é conhecido [4] : o discurso de demissão de Hariri e a prisão ou execução de todos os príncipes suscetíveis de contestar ou de reivindicar a sucessão ao trono.

As centenas de primos de MBS que foram presos, foram colocados em residência vigiada ou detenção. Uns após os outros, eles aceitaram —muitas vezes sob tortura— a entregar as suas fortunas ao seu suserano. Este sacou, assim, mais de 800 mil milhões de dólares, segundo o Wall Street Journal [5].

Nenhuma voz se levantou, no mundo inteiro, para vir em socorro destes bilionários caídos em desgraça, que haviam feito parte, até aí, dos mais prestigiosos conselhos de administração.

Testemunhas garantem que alguns membros da família real foram hospitalizados e tratados antes de retornar à sala de interrogatório. MBS afirma ter libertado várias personalidades, entre as quais o Príncipe Mutab, ele mesmo, Turki ben Abdallah, o Dr. Ibrahim ben Abdelaziz bin Abdallah al-Assaf (antigo Ministro das Finanças saudita) e Mohammad bin Abdul Rahman al-Toubaichi (ex-Chefe do protocolo na corte).

Certamente a história ainda não acabou. Conforme com as instruções do Presidente Trump, Jared Kushner irá agora procurar recuperar para o seu país uma parte das fortunas confiscadas.

O caso Hariri

Contrariamente ao que afirma a imprensa francesa, a libertação do Primeiro-ministro libanês não deve grande coisa a Paris. É certo que o Presidente Emmanuel Macron interveio, já que Saad Hariri tem a tripla nacionalidade saudo-libanesa-francesa. É verdade que ele próprio foi a Riade, mas para acabar por lá se deixar humilhar [6] . A única acção útil veio do seu homólogo libanês, o Presidente Michel Aoun.

A França viu-se confrontada com uma realidade simples: no Direito Consular internacional, os multi-nacionais não podem dispôr de imunidade diplomática num país do qual são nacionais. Todavia, o Presidente Aoun fez bascular a situação ao não defender o homem Saad Hariri, mas sim o seu Primeiro-ministro, Saad Hariri. Não há qualquer dúvida que deter e colocar em residência vigiada o chefe do governo de um país terceiro à revelia de qualquer processo judicial é um acto de guerra; e aliás a imprensa internacional espalhava por rumores sobre um possível bombardeamento saudita do Líbano. De imediato, o Palácio de Baabda ameaçou levar o caso perante o tribunal arbitral das Nações Unidas e simultaneamente envolver o Conselho de Segurança. Ele envolveu igualmente, através do seu homólogo sírio, Bashar al-Assad, o Presidente egípcio, Abdel Fattah al-Sissi, que faz a ponte entre os pró e os anti-EUA. Foi este último quem telefonou a Jared Kushner e obteve com o seu apoio a libertação do Primeiro-ministro. E, aliás, logo que foi libertado ele dirigiu-se ao Cairo para agradecer a al-Sissi.

A questão israelo-árabe

Resta a questão israelo-palestiniana.

A crua realidade é: 

• Desde há 70 anos, Israel não parou de mordiscar os territórios dos seus vizinhos. Ocupa actualmente o Golã sírio, as quintas de Chebaa libanesas, uma enorme parte dos territórios palestinianos de 1967, entre os quais toda a Jerusalém Oriental.
• Os dirigentes da Resistência palestina foram quase todos neutralizados por Israel: muitos foram assassinados, aqueles que restam na Fatah foram amplamente corrompidos pelos seus inimigos, enquanto os do Hamas colaboraram abertamente com a Mossad para eliminar os seus rivais [7]. Para combater pelos seus direitos não restam mais que alguns pequenos grupos, como a Jiade Islâmica e a FPLP-CG. 
• É certo, os Palestinianos e ao outros povos árabes e / ou muçulmanos mantêm um senso de Justiça e militam pelo respeito dos direitos inalienáveis do povo palestino. Mas, na ausência de uma representação política credível, eles nada mais podem fazer que desfilar às dezenas de milhões no «Dia de Jerusalém».

Os acordos bilaterais, que são : 

• A realização do projecto expresso pela declaração britânica Balfour e pelos 14 pontos do Presidente Wilson ao criar Israel [8] .
• A carta endereçada ao Primeiro-ministro Ariel Sharon pelo Presidente George Bush Jr. que refuta o direito ao retorno dos refugiados palestinos e reconhece os territórios conquistados, depois de 1949, como fazendo parte integrante de Israel [9].

Os acordos multilaterais, que são: 

• As resoluções 242 [10] e 338 [11] do Conselho de Segurança das Nações Unidas e o artigo 49 da 4ª Convenção de Genebra.

Só o Presidente Trump e alguns dos seus conselheiros conhecem o cenário que Jared Kushner escreveu. Ele prosseguiu a política dos seus predecessores para reduzir a questão israelo-árabe a um simples diferendo israelo-palestino. Na linha de John Kerry, promoveu a reconciliação entre a Fatah e o Hamas, e conseguiu levá-los a assinar (mas não, nem à PFLP-GC, nem a Jiade Islâmica) um acordo, a 12 de Outubro no Cairo [12]. Ele conseguiu fazer nomear para a chefia do Hamas um amigo de infância do líder da Fatah, Mohamed Dahlan, preparando a fusão dos dois movimentos.

Além do mais, as facções palestinas mantêm sempre discursos radicalmente diferentes. Para a Fatah, Israel é uma espécie de segunda Rodésia, um Estado colonial que se auto-proclamou independente. Enquanto para o Hamas —apoiando-se em Hadiths (e não no Alcorão)—, o problema é que uma terra muçulmana não pode ser governada por não-muçulmanos.

O início dos acontecimentos acaba de se dar com o anúncio da transferência da embaixada dos EUA de Telavive para Jerusalém.

Claramente, a Casa Branca está testando a sua capacidade de passar à bruta. Com efeito, por um lado, o plano de partilha da Palestina previa efectivamente que Jerusalém Ocidental fosse a capital do Estado hebreu. Mas, por outro lado, o Conselho de Segurança condenou Israel quando, unilateralmente, fez de Jerusalém Ocidental a sua capital [13].

A estranha reunião da Organização para a Cooperação Islâmica, que acaba de se realizar em Istambul, propôs a transferência da capital do Estado palestiniano de Ramallah para Jerusalém Oriental [14]. Acontece que isso parece dificilmente concretizável e não foi efectivamente feito. Talvez não se tratasse mais do que uma bravata sonante destinada a fazer admitir esse abandono à opinião pública muçulmana.

Conclusão provisória

Os adversários do Presidente Trump tentam por todos os meios forçá-lo a desistir do seu conselheiro, Jared Kushner. No entanto este continua em campo. Ele conseguiu, de momento, pôr um fim ao apoio saudita aos grupos terroristas e resolver a questão da sucessão ao trono, cortando para tal o nó górdio, ou seja, neutralizando a família real. Podemos lamentar o método usado: pendurar idosos pelos pés e torturá-los até que eles revelassem os segredos das suas contas bancárias. No entanto, todas as outras soluções, ou pior, a ausência de solução, teriam levado a uma guerra civil. A culpa não reside em Jared Kushner, mas naqueles que aceitaram durante tanto tempo este regime bárbaro e medieval dos Saud.

Da mesma forma é, hoje em dia, extremamente injusto não o transferir a embaixada dos EUA para Jerusalém ocidental mas, sim, renunciar ao estabelecimento do governo palestino em Jerusalém Oriental. Mais uma vez, a responsabilidade não tem a ver com Jared Kushner, mas com a «comunidade internacional», e particularmente com os governos sionistas árabes, que, durante 70 anos, deixaram Israel ir mordiscando a pouco e pouco a cidade, apartamento por apartamento.

Também, enquanto desde há 70 anos os diplomatas ocidentais se concentram em multiplicar e complicar os conflitos do Médio-Oriente, Jared Kushner é o primeiro a tentar resolvê-los. O conselheiro presidencial, com a cara de anjo, é um formidável organizador.


*Thierry Meyssan - Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación (Monte Ávila Editores, 2008).

Notas:
[1] “A Arábia Saudita e os Emirados não romperam com os Irmãos Muçulmanos”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 17 de Dezembro de 2017.
[2] Número revelado pelo antigo Primeiro-ministro Xeque Hamad bin Jassim.
[3] E não de um príncipe Abdallah como eu havia escrito uma vez por engano. NdA.
[4] “Golpe Palaciano em Riade”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 7 de Novembro de 2017.
[5] “Saudis Target Up to $800 Billion in Assets”, Margherita Stancati & Summer Said, Wall Street Journal, November 8, 2017. Esta soma contradiz as asserções de MBS para quem as somas sacadas não passam os 100 mil milhões(bilhões) de dólares: “Saudi Arabia’s Arab Spring, at Last. The crown prince has big plans for his society” («Finalmente, Primavera Árabe Saudita. O Príncipe herdeiro tem grandes planos para a sua sociedade»- ndT), Thomas L. Friedman, The New York Times, November 23, 2017.
[6] “A afronta infligida ao Presidente Macron na Arábia Saudita”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 14 de Novembro de 2017.
[8] “Quem é o inimigo?”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 4 de Agosto de 2014.
[9] « Lettre de George W. Bush à Ariel Sharon », par George W. Bush, Réseau Voltaire, 14 avril 2004.
[10] « Résolution 242 du Conseil de sécurité de l’ONU », ONU (Conseil de sécurité) , Réseau Voltaire, 22 novembre 1967.
[11] « Résolution 338 du Conseil de sécurité de l’ONU », ONU (Conseil de sécurité) , Réseau Voltaire, 22 octobre 2003.
[12] “Reconciliação palestina”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 14 de Outubro de 2017.
[13] A rejeição pelo Conselho de Segurança da Lei sobre Jerusalém, em 1980, não entrou na questão de saber se Israel tinha escolhido como capital Jerusalém Ocidental ou Jerusalém na sua totalidade. Ele condenou o princípio de uma declaração unilateral, considerando que o estatuto de Jerusalém só podia ser modificado por uma negociação israelo-palestina, Cf. Resoluções 476 e 478.
[14] Esta proposição visa curto-circuitar uma proposta saudita de transferência da capital palestiniana para arrabalde de Jerusalém, Abou Dis, que está separado do resto da cidade pelo Muro de separação.

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