domingo, 21 de janeiro de 2018

Polémica Neto Moura: "Uma sentença não é um trabalho de autor" - presidente do Supremo Tribunal de Justiça


Na entrevista TSF/DN, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, sem se pronunciar sobre a polémica que envolve o juiz Neto Moura, sublinha que os juízes devem ter muito cuidado com o que escrevem.

Anselmo Crespo e Paulo Tavares | TSF/DN

António Henriques Gaspar está a entrar no último ano do seu mandato à frente do Supremo Tribunal de Justiça. Nesta entrevista à TSF e ao Diário de Notícias fala dos grupos de pressão que, nas redes sociais, tentam condicionar as decisões dos juízes. Dá o exemplo de grupos feministas que têm comentado decisões da Justiça, admite que é uma reação legítima, mas diz-se preocupado com os efeitos na perceção que os cidadãos têm do funcionamento da Justiça.

António Henriques Gaspar, na abertura do ano judicial, na quinta-feira, disse que é necessário evitar a "política criminal à flor da pele", condicionada por pressões que têm assinatura. Pode partilhar connosco de quem é essa assinatura?

De vários grupos, de vários grupos. Quando disse "à flor da pele" não me referia apenas ao nível nacional, referia-me também às instituições europeias e à política criminal que, ultimamente, começa a ser também objeto da política europeia e da União Europeia. E, aí, temos alguns problemas porque nem sempre se respeitam as idiossincrasias nacionais e, por outro lado, há uma maior capacidade de intervenção de alguns setores que têm maior acesso ao espaço público ou que procuram ter maior acesso a esse espaço, e portanto podem e têm-no feito colocar como necessidade premente a intervenção penal, desequilibrando as situações. Eu não digo que não tenha de haver, relativamente a determinadas matérias, uma política penal e uma política criminal cuidadas, o que eu digo é que pode haver alguns desequilíbrios em relação à proporcionalidade, no modo como os grupos atuam, pois são muito ativos entre nós, por exemplo em alguns aspetos.

Mas pode concretizar?

Nos media, nas redes sociais. Por exemplo aquilo que eu vou dizer é muito incorreto politicamente, a questão da violência doméstica. A violência doméstica é um problema que nós sentimos e que, como já disse uma vez, todos nós abraçamos como causa, agora misturar coisas que são muito diferentes é sempre um risco, pelos condicionamentos ambientais que isso pode causar. Nomeadamente, quando através de um nome ou embrulhado num nome se integram ou podem ser integradas muitas realidades.

Está a falar do processo que envolveu o juiz Neto de Moura?

Não estou a falar em caso nenhum concreto, estou a exprimir uma opinião que é aquilo que eu sinto nas análises que tenho feito relativamente a esta matéria. Quis apenas deixar um alerta, por vezes são-nos apresentadas questões aparentemente novas, com nomes novos, em que não se acrescenta nada a tudo aquilo que já temos na nossa lei e que já temos equilibradamente na nossa lei. Pode-se eventualmente, confundido sob um nome que é apenas um nome, ter realidades muito diversas que implicam soluções diversas e para as quais determinado tipo de intervenção no espaço público pode requerer soluções idênticas, e não o são nem podem ser, porque há questões de proporcionalidade, como digo.

Essas pressões e essa forma de introduzir algum desnível no sistema trabalham mais ao nível da produção legislativa ou chega mesmo a afetar a produção de decisão por parte dos juízes?

Não chega a afetar mal de nós se o fizesse a decisão por parte dos juízes, agora afeta muito a perceção externa que se pode ter sobre a decisão dos juízes. Não sei se fui completamente claro no que acabei de dizer: afeta porque os juízes julgam segundo as provas, julgam segundo os elementos que têm, julgam segundo a leitura que fazem da interpretação da lei, julgam segundo os critérios de valores que são valores proporcionais, e, por vezes, isso não é compreendido. Vejam, nomeadamente, alguns grupos que são pró-ativos nas chamadas redes sociais e que nunca aceitam a decisão do juiz, porque a decisão do juiz não é tão pesada como eles exigiriam que fosse e, aí, os juízes têm de respeitar a proporcionalidade. Por isso é que eu disse na quinta-feira também no discurso que os juízes têm de ter a coragem de enfrentar as multidões, ou as novas multidões que não estão já na rua.

Para ser mais claro para as pessoas: eu não percebi se não quer concretizar que grupos são esses, ou dar algum exemplo.

São vários, são vários. Eu não queria identificar.

Mas estamos a falar, por exemplo, de movimentos ou de grupos feministas que se pronunciam a propósito deste caso concreto de violência doméstica e que vêm para as redes sociais expressar opiniões sobre decisões judiciais?

Alguns são, alguns são. Têm todo o direito de o fazer, não estou a contestar isso de modo nenhum. Estou é a dizer que esse tipo de intervenção, absolutamente legítimo, pode fazer criar a perceção de uma justiça que não responda, não digo às exigências judiciais, mas às exigências desses grupos e, aí, o juiz tem de intervir para atuar com o seu sentido de justiça, com o sentido de equilíbrio em relação, também, a outras situações que são igualmente graves.

Admite que é um exercício muito difícil nesse estado de coisas, conforme as descreve e que nós conhecemos bem, o juiz estar absolutamente imune àquela que é a perceção popular de um determinado caso?

Eu sei que é difícil, mas tem de estar, é seu dever estar.

Vamos falar do reverso da medalha até porque já falou dele a propósito do caso que envolveu o juiz Neto de Moura , a esse propósito o senhor disse que a manifestação de crenças pessoais e de estados de alma ou as formulações de linguagem de subjetividade excessiva não são com certeza prestáveis como argumentação e não contribuem para a qualidade da jurisprudência. Casos como este que envolveu o juiz Neto de Moura descredibilizam de alguma forma a justiça portuguesa?

Não falemos de casos. Eu não posso falar em casos, nem posso partir de casos.

Mas a justiça sai descredibilizada?

Eu não posso partir de casos porque, como compreenderá, se há alguém que tem de dar o exemplo de não se pronunciar sobre casos concretos sou eu.

Agora, o que eu tenho dito é uma minha preocupação de sempre e, portanto, verá que essas minhas declarações não são de agora, já são de há muito tempo, de há muitos anos. Eu preocupo-me com a linguagem judiciária, a linguagem das decisões, partindo sempre de uma ideia que também já disse em público: uma sentença não é um trabalho de autor, é um documento da República. Por isso, é preciso ter muito cuidado porque quem produz uma sentença está a produzir essa sentença e a escrevê-la em nome do povo, portanto, o que eu digo sempre é que tudo o que não seja materialmente fundamentação, seja outra expressão que não tenha sentido, evidentemente que pode estar, mas não é bom que esteja pois pode causar algum ruído e alguma perturbação nas perceções externas. Foi só isso que eu disse, mas não é de agora, não me estou a referir a nenhum caso concreto, é uma minha preocupação de sempre, já há mais de cinco ou seis anos que insisto sempre nessa matéria e quero pensar, e tenho alguns elementos para isso, que hoje em dia há muito mais atenção, muito mais cuidado com as expressões inúteis na linguagem das decisões, tendo sempre presente este dever: uma decisão judicial não é uma peça de autor, é um documento da República.

Voltando à questão das redes sociais e desses grupos de pressão que diz atuarem de forma muito ativa nas redes, não o preocupa o outro lado da moeda, não o preocupa que muitos juízes e agentes da justiça também estejam presentes nessas redes com opinião publicada e que até tenhamos nos últimos tempos juízes a dar longas entrevistas a falar de casos concretos?

A minha resposta a essa questão, que é interessantíssima, já resulta do que eu disse até agora. Os juízes têm liberdade de expressão, como é evidente, devem intervir também no espaço público, mas com todo o cuidado e toda a atenção, nunca falando de casos concretos, porque isso é um dever estatutário, o não falar de casos concretos, a não ser alguns comentários científicos assinados em revistas, mas não é dessa perspetiva que estamos aqui a falar.

Têm liberdade de expressão, devem exercê-la e, como disse devem intervir no espaço público, mas cada um sabe quais são os limites da sua intervenção; limites por um lado estatutários e, por outro, limites que são fundamentais e que eu vi nalguns comentários à cerimónia de quinta-feira que não tinham sido completamente percebidos, que constituem o dever que há de criar condições de imparcialidade e o dever que há de não ter atitudes, nomeadamente no emitir determinado tipo de opiniões, que depois possam fazer os interessados, isto é, os cidadãos, pensar que há algum prejuízo ou preconceito que afete a imparcialidade. Não a imparcialidade subjetiva do juiz, isso não quer minimamente dizer que os juízes não tenham um sentido muito forte do seu dever de imparcialidade, mas são as aparências, que eu na quinta-feira vi que não foi lida com a interpretação com que deve ser lida e como é das construções, por exemplo do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos a propósito do conceito de independência subjetiva; é do ponto de vista externo, isto é, se se emite determinado tipo de opiniões é preciso cuidado, não porque não tenha o direito, mas porque tem também o dever de não criar uma perturbação que possa fazer pensar os cidadãos, não é que haja, é que possa parecer que haja algum preconceito.

Isto para mim é fundamental e posso dizer, da minha experiência, que os magistrados, e os juízes em particular, estão muito, muito conscientes desse seu dever e o cumprem com todo o rigor.

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