Na entrevista TSF/DN, o
presidente do Supremo Tribunal de Justiça, sem se pronunciar sobre a polémica
que envolve o juiz Neto Moura, sublinha que os juízes devem ter muito cuidado
com o que escrevem.
Anselmo Crespo e Paulo Tavares |
TSF/DN
António Henriques Gaspar está a
entrar no último ano do seu mandato à frente do Supremo Tribunal de Justiça.
Nesta entrevista à TSF e ao Diário de Notícias fala dos grupos de pressão que,
nas redes sociais, tentam condicionar as decisões dos juízes. Dá o exemplo de
grupos feministas que têm comentado decisões da Justiça, admite que é uma
reação legítima, mas diz-se preocupado com os efeitos na perceção que os
cidadãos têm do funcionamento da Justiça.
António Henriques Gaspar, na
abertura do ano judicial, na quinta-feira, disse que é necessário evitar a
"política criminal à flor da pele", condicionada por pressões que têm
assinatura. Pode partilhar connosco de quem é essa assinatura?
De vários grupos, de vários
grupos. Quando disse "à flor da pele" não me referia apenas ao nível
nacional, referia-me também às instituições europeias e à política criminal
que, ultimamente, começa a ser também objeto da política europeia e da União
Europeia. E, aí, temos alguns problemas porque nem sempre se respeitam as
idiossincrasias nacionais e, por outro lado, há uma maior capacidade de
intervenção de alguns setores que têm maior acesso ao espaço público ou que
procuram ter maior acesso a esse espaço, e portanto podem e têm-no feito
colocar como necessidade premente a intervenção penal, desequilibrando as
situações. Eu não digo que não tenha de haver, relativamente a determinadas
matérias, uma política penal e uma política criminal cuidadas, o que eu digo é
que pode haver alguns desequilíbrios em relação à proporcionalidade, no modo
como os grupos atuam, pois são muito ativos entre nós, por exemplo em alguns
aspetos.
Mas pode concretizar?
Nos media, nas redes sociais. Por
exemplo aquilo que eu vou dizer é muito incorreto politicamente, a questão da
violência doméstica. A violência doméstica é um problema que nós sentimos e
que, como já disse uma vez, todos nós abraçamos como causa, agora misturar
coisas que são muito diferentes é sempre um risco, pelos condicionamentos ambientais
que isso pode causar. Nomeadamente, quando através de um nome ou embrulhado num
nome se integram ou podem ser integradas muitas realidades.
Está a falar do processo que
envolveu o juiz Neto de Moura?
Não estou a falar em caso nenhum
concreto, estou a exprimir uma opinião que é aquilo que eu sinto nas análises
que tenho feito relativamente a esta matéria. Quis apenas deixar um alerta, por
vezes são-nos apresentadas questões aparentemente novas, com nomes novos, em
que não se acrescenta nada a tudo aquilo que já temos na nossa lei e que já
temos equilibradamente na nossa lei. Pode-se eventualmente, confundido sob um
nome que é apenas um nome, ter realidades muito diversas que implicam soluções
diversas e para as quais determinado tipo de intervenção no espaço público pode
requerer soluções idênticas, e não o são nem podem ser, porque há questões de
proporcionalidade, como digo.
Essas pressões e essa forma de
introduzir algum desnível no sistema trabalham mais ao nível da produção
legislativa ou chega mesmo a afetar a produção de decisão por parte dos juízes?
Não chega a afetar mal de nós se
o fizesse a decisão por parte dos juízes, agora afeta muito a perceção externa
que se pode ter sobre a decisão dos juízes. Não sei se fui completamente claro
no que acabei de dizer: afeta porque os juízes julgam segundo as provas, julgam
segundo os elementos que têm, julgam segundo a leitura que fazem da
interpretação da lei, julgam segundo os critérios de valores que são valores
proporcionais, e, por vezes, isso não é compreendido. Vejam, nomeadamente,
alguns grupos que são pró-ativos nas chamadas redes sociais e que nunca aceitam
a decisão do juiz, porque a decisão do juiz não é tão pesada como eles
exigiriam que fosse e, aí, os juízes têm de respeitar a proporcionalidade. Por
isso é que eu disse na quinta-feira também no discurso que os juízes têm de ter
a coragem de enfrentar as multidões, ou as novas multidões que não estão já na
rua.
Para ser mais claro para as
pessoas: eu não percebi se não quer concretizar que grupos são esses, ou dar
algum exemplo.
São vários, são vários. Eu não
queria identificar.
Mas estamos a falar, por exemplo,
de movimentos ou de grupos feministas que se pronunciam a propósito deste caso
concreto de violência doméstica e que vêm para as redes sociais expressar
opiniões sobre decisões judiciais?
Alguns são, alguns são. Têm todo
o direito de o fazer, não estou a contestar isso de modo nenhum. Estou é a
dizer que esse tipo de intervenção, absolutamente legítimo, pode fazer criar a
perceção de uma justiça que não responda, não digo às exigências judiciais, mas
às exigências desses grupos e, aí, o juiz tem de intervir para atuar com o seu
sentido de justiça, com o sentido de equilíbrio em relação, também, a outras
situações que são igualmente graves.
Admite que é um exercício muito
difícil nesse estado de coisas, conforme as descreve e que nós conhecemos bem,
o juiz estar absolutamente imune àquela que é a perceção popular de um
determinado caso?
Eu sei que é difícil, mas tem de
estar, é seu dever estar.
Vamos falar do reverso da medalha
até porque já falou dele a propósito do caso que envolveu o juiz Neto de Moura
, a esse propósito o senhor disse que a manifestação de crenças pessoais e de
estados de alma ou as formulações de linguagem de subjetividade excessiva não
são com certeza prestáveis como argumentação e não contribuem para a qualidade
da jurisprudência. Casos como este que envolveu o juiz Neto de Moura
descredibilizam de alguma forma a justiça portuguesa?
Não falemos de casos. Eu não
posso falar em casos, nem posso partir de casos.
Mas a justiça sai
descredibilizada?
Eu não posso partir de casos
porque, como compreenderá, se há alguém que tem de dar o exemplo de não se
pronunciar sobre casos concretos sou eu.
Agora, o que eu tenho dito é uma
minha preocupação de sempre e, portanto, verá que essas minhas declarações não
são de agora, já são de há muito tempo, de há muitos anos. Eu preocupo-me com a
linguagem judiciária, a linguagem das decisões, partindo sempre de uma ideia
que também já disse em público: uma sentença não é um trabalho de autor, é um
documento da República. Por isso, é preciso ter muito cuidado porque quem
produz uma sentença está a produzir essa sentença e a escrevê-la em nome do povo,
portanto, o que eu digo sempre é que tudo o que não seja materialmente
fundamentação, seja outra expressão que não tenha sentido, evidentemente que
pode estar, mas não é bom que esteja pois pode causar algum ruído e alguma
perturbação nas perceções externas. Foi só isso que eu disse, mas não é de
agora, não me estou a referir a nenhum caso concreto, é uma minha preocupação
de sempre, já há mais de cinco ou seis anos que insisto sempre nessa matéria e
quero pensar, e tenho alguns elementos para isso, que hoje em dia há muito mais
atenção, muito mais cuidado com as expressões inúteis na linguagem das
decisões, tendo sempre presente este dever: uma decisão judicial não é uma peça
de autor, é um documento da República.
Voltando à questão das redes
sociais e desses grupos de pressão que diz atuarem de forma muito ativa nas
redes, não o preocupa o outro lado da moeda, não o preocupa que muitos juízes e
agentes da justiça também estejam presentes nessas redes com opinião publicada
e que até tenhamos nos últimos tempos juízes a dar longas entrevistas a falar
de casos concretos?
A minha resposta a essa questão,
que é interessantíssima, já resulta do que eu disse até agora. Os juízes têm
liberdade de expressão, como é evidente, devem intervir também no espaço público,
mas com todo o cuidado e toda a atenção, nunca falando de casos concretos,
porque isso é um dever estatutário, o não falar de casos concretos, a não ser
alguns comentários científicos assinados em revistas, mas não é dessa
perspetiva que estamos aqui a falar.
Têm liberdade de expressão, devem
exercê-la e, como disse devem intervir no espaço público, mas cada um sabe
quais são os limites da sua intervenção; limites por um lado estatutários e,
por outro, limites que são fundamentais e que eu vi nalguns comentários à
cerimónia de quinta-feira que não tinham sido completamente percebidos, que
constituem o dever que há de criar condições de imparcialidade e o dever que há
de não ter atitudes, nomeadamente no emitir determinado tipo de opiniões, que
depois possam fazer os interessados, isto é, os cidadãos, pensar que há algum
prejuízo ou preconceito que afete a imparcialidade. Não a imparcialidade
subjetiva do juiz, isso não quer minimamente dizer que os juízes não tenham um
sentido muito forte do seu dever de imparcialidade, mas são as aparências, que
eu na quinta-feira vi que não foi lida com a interpretação com que deve ser
lida e como é das construções, por exemplo do Tribunal Europeu dos Direitos
Humanos a propósito do conceito de independência subjetiva; é do ponto de vista
externo, isto é, se se emite determinado tipo de opiniões é preciso cuidado,
não porque não tenha o direito, mas porque tem também o dever de não criar uma
perturbação que possa fazer pensar os cidadãos, não é que haja, é que possa parecer
que haja algum preconceito.
Isto para mim é fundamental e
posso dizer, da minha experiência, que os magistrados, e os juízes em
particular, estão muito, muito conscientes desse seu dever e o cumprem com todo
o rigor.
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