quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Portugal | AS PRIMEIRAS PALAVRAS

Miguel Guedes* | Jornal de Notícias | opinião

Os momentos de fronteira ou divisão são autênticas bolas de neve no que diz respeito a decisões. Num curto espaço de tempo, apanhamos a síntese pelos cabelos, arregimentamos traves-mestras e disparamos a rebolar na direção da avalancha. O tempo é imparável, feito de instantes. Num segundo um pulo de ano e poucos são os minutos que temos para desejar tudo o que se quer de bom nas primeiras palavras. As primeiras palavras são chancela, previsivelmente destino. São fogo e, frequentemente, de artifício.

Mensagens presidenciais à nação são habituais jogos lúdicos com fronteiras e votos magnânimos ao povo, atos de pouca contrição, recados cerrados para balanço. Convenientemente embrulhados em paz e amor, fazem as delícias dos captadores de mensagens subliminares, rasgadas que são as vestes. Inédito. A primeira vez de um presidente em direto fez-se na passagem para todas as televisões, ato jubilado que o ex-comentador político não deixaria passar em claro. Um presidente de todos os portugueses faz-se de sinal aberto para o pleno das televisões. Com pouco ou nenhum teleponto, sem rede ou só com a sua global rede de afetos. Nos jogos florais das primeiras palavras, um ideal comum.

A "fraternidade militante" a que Marcelo lançou mãos para traçar o lado bom da exigência humanitária na resposta civil aos incêndios é o contraponto clássico com a incompetência militante do Estado na resposta à catástrofe. Embora saibamos de cor a lenga-lenga do não-podemos-deixar-que-isto-se-repita, mesmo sabendo que a adiada reforma do território florestal é dossier para uma década e meia, a verdade é que entramos no novo ano sem perceber o que foi ou está a ser feito de significativo para evitar que a materialização do Inferno reacenda nos primeiros dias quentes de verão. E isso é criminoso por antecipação.

Outros presidentes falam em tempo diferido sobre incêndios globais. Se a palavra é arma nuclear, não pode ser indiferente a escolha síntese de Kim Jong-un para as primeiras palavras à nação norte-coreana. Enquanto assegurava aos EUA que o botão nuclear "está sempre na sua mesa", manifesta simultaneamente a vontade de permitir a participação do país nos Jogos Olímpicos de Inverno em PyeongChang (no que é entendido como uma piscadela de olho à vizinha Coreia do Sul no sentido de evitar os exercícios militares comuns programados com os EUA). O regime do ditador coreano utiliza os seus dois únicos atletas qualificados (uma dupla de esquiadores com passaporte olímpico - obtido em Oberstdorf - que compete ao som dos Beatles) para fazer diplomacia olímpica. Nos jogos florais das primeiras palavras, um ideal olímpico. Nas primeiras palavras sem flores, um pouco do nosso deserto urgente.

O autor escreve segundo a antiga ortografia

*Músico e jurista

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