terça-feira, 20 de março de 2018

100 anos de Champalimaud, o homem que pagou para se tornar santo


Uma vida inteiramente dedicada à acumulação pessoal de riqueza

Nasceu há 100 anos um dos homens que simbolizou o poder dos monopólios durante o regime fascista e que acabou reabilitado com as privatizações. O filantropo só surgiu depois da morte.

António Sommer Champalimaud nasceu a 19 de Março de 1918, filho de um descendente de fidalgos e comerciante de vinhos do Douro, e de uma neta de um barão alemão.

Na década de 1940, com a morte do pai e de um tio, assume os negócios do vinho, a urbanização da Quinta da Marinha, em Cascais, e a Empresa de Cimentos de Leiria (futura Cimpor). Mas da sua herança recebe, também, propriedades em São Tomé e Príncipe e participações em minas de cobre, em Angola. Casa com uma das filhas de Manuel de Mello, o herdeiro da CUF de Alfredo da Silva, e cimenta a sua posição na elite económica do regime fascista.

Com os frutos da herança, alarga o seu grupo económico à banca, através do Pinto & Sotto Mayor, às seguradoras Mundial e Confiança, e à Siderurgia Nacional, no Seixal. Apesar do mito, fabricado posteriormente com a ajuda preciosa do seu amigo Daniel Proença de Carvalho, de que seria um liberal e crítico do regime, o único problema com o fascismo surgiu já com Marcello Caetano, quando tentou comprar o Banco Português do Atlântico. No entanto, o negócio só foi travado quando, ainda antes de fechado o negócio, pressionou a administração do banco para que concedesse empréstimos astronómicos às empresas do seu grupo económico.

A expansão das suas posições nas colónias portuguesas foi outra das apostas, com a construção de várias fábricas de cimento em Angola e Moçambique, e o alargamento para o sector do ferro e do aço, tornando-se num dos principais homens de confiança do regime na exploração dos recursos naturais das colónias africanas. Em palavras suas, entendia a sua presença em África da mesma forma como olhava para a guerra: a luta pela manutenção do «homem português» no continente.

Após a Revolução de Abril, as suas empresas são nacionalizadas e António Champalimaud vira as suas atenções para o Brasil, onde já tinha começado a montar negócio no sector dos cimentos. Seriam o Banco Pinto & Sotto Mayor e a Cimpor, já nacionalizados, a pagar os empréstimos com que pagou a reconstituição da sua fortuna do outro lado do Atlântico.

Com Cavaco recebe indemnização, bancos e seguros

Champalimaud viria a regressar em força ao sector financeiro nacional com as privatizações promovidas pelo governo de Cavaco Silva, com o apoio do então Presidente da República Mário Soares. Mas primeiro o executivo do PSD resolve o pedido de indemnização que corria desde 1975. Em 1990, Champalimaud exigir 80 milhões de contos (900 milhões de euros, a preços de 2017).

Apesar de a primeira proposta apontar para um valor nunca superior a 200 mil contos (2,2 milhões de euros, a preços de 2017), viria a pagar 10 milhões de contos (mais de 100 milhões de euros, a preços de 2017). Também os empréstimos com que construiu as suas unidades no Brasil, pagos pelas empresas públicas, foram perdoados, no valor de mais de 15 milhões de contos.

Com os 25 milhões de contos que lhe foram entregues pelo governo de Cavaco, recuperou as suas antigas seguradoras, entretanto transformadas na Mundial-Confiança. Depois, na privatização do Pinto & Sotto Mayor, aproveitou várias condicionantes que fizeram do processo um verdadeiro «pronto-a-comprar» para Champalimaud. Entretanto, já tinha entrado no capital da Petrogal e somou o Totta & Açores e o Crédito Predial Português ao seu universo financeiro.

As suspeitas de favorecimento pelo governo do PSD a António Champalimaud levaram a Assembleia da República a investigar as privatizações das seguradoras e dos bancos através de uma comissão de inquérito. Viria a terminar sem conclusões porque o PS se absteve, em 1999, com o argumento de que a aprovação do documento seria uma provocação que levaria à venda do grupo Champalimaud aos espanhóis do Santander. O relatório foi chumbado e dias depois, Champalimaud vendeu mesmo.

A consciência social que nunca teve em vida

Quando morreu, em 2004, ostentava a distinção de homem mais rico de Portugal, sendo o único português na famigerada lista da revista Forbes. Depois de sucessivas operações, ao longo de mais de meio século, com o único objectivo de construir fortuna, guardou para depois da morte a imortalização do seu nome, sob a capa de filantropia.

Com apenas um terço do seu património, deixou em testamento a constituição de uma fundação que ostenta o nome dos seus pais, dedicada à investigação em neurociências e sobre o cancro. Para a sua presidência deixou um nome já escolhido: a ministra da Saúde do governo que lhe devolveu a fortuna em Portugal, Leonor Beleza.

Apesar do assomo filantrópico do final da sua vida, não deixou os seus herdeiros de mãos vazias. A Gestmin, criada por Manuel de Mello Champalimaud, o descendente das duas famílias icónicas do regime fascista, em 2004, aí está para o provar: tornou-se recentemente na principal accionista dos CTT. Na família, as privatizações continuam a ser um bom negócio.

Foto: António Champalimaud durante um jantar no Clube dos Empresários, em Lisboa. 25 de Julho de 1985CréditosAlfredo Cunha / Agência LUSA

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