“Ajuda” de bilionários e
corporações à África inclui contrabando maldito: desrespeito aos direitos
sociais, apoio a ditadores e, em especial, destruição das chances de
desenvolvimento autônomo
T. Rivers | Outras Palavras
| Tradução: Camila Teicher
Filantropos como Howard
Buffett são os queridinhos dos jornalistas e do universo das ONG – mas
será que estão mesmo ajudando a África?
Em 2015, em uma viagem a trabalho
com a Fundação Mídia Internacional das Mulheres (IWMF, em
inglês) na República Democrática do Congo, um jornalista local me
disse: “é difícil ir a qualquer lugar no leste deste país sem dar de cara com
um projeto de Howard Buffett”.
De fato, tendo investido numa
gama de iniciativas, entre elas usinas de energia hidrelétrica, desenvolvimento
de rodovias e ecoturismo, Howard Buffett está consideravelmente envolvido com o
leste do Congo. O fotógrafo, agricultor, xerife, ex-diretor da Coca-Cola
Company e filho do terceiro homem mais rico do mundo já despejou milhões na
região.
O projeto hidrelétrico foi a
primeira fase de um programa de investimentos elaborado em conjunto pela
autoridade congolesa responsável por parques nacionais (ICCN) e a Fundação
Virunga, uma instituição de caridade britânica. Em 2015, Buffett teria prometido
mais US$39 milhões para mais duas usinas de energia e a Fundação Virunga
planeja financiar mais usinas, hotéis e projetos de infraestrutura no entorno
do parque ao longo dos próximos anos. Numa entrevista à Reuters, o diretor do
parque, Emmanuel de Merode, afirmou que essas iniciativas, especialmente as
usinas de energia, criarão oportunidades de emprego para as comunidades
vizinhas.
E os investimentos de Buffett não
param por aí: em 2015, sua fundação alegou estar fazendo uma injeção em toda a
fronteira de Ruanda de
US$500 milhões ao longo de dez anos para “transformar” a agricultura do país
“em um setor mais produtivo, de alto valor, orientado ao mercado”. Até agora, a
fundação se concentrou em projetos de segurança alimentar, com 67,5% das
contribuições de 2015 dirigidos ao financiamento desse setor.
Esses investimentos parecem
louváveis. Quem poderia se opor a melhorar a segurança alimentar da zona rural
de Ruanda ou à construção de usinas hidrelétricas na região Kivu do Congo, onde
a infraestrutura básica é limitada e somente cerca de 3% da população têm
eletricidade? Que outra forma de apoiar a região seria melhor do que financiar
usinas de energia e evitar que as pessoas derrubem árvores para produzir carvão
vegetal?
Para responder essas perguntas,
primeiro devemos perguntar: quem é exatamente Howard Buffett?
A filantropia capitalista e seus
pontos de insatisfação
Howard Buffett, assim como Bill Gates,
pertence a um clube exclusivo de “filantropos capitalistas”, que investem suas
riquezas na solução dos principais problemas do mundo em setores como saúde e
agricultura. A declaração de missão da Fundação Howard Buffett explica que seus
investimentos “catalisam mudanças transformadoras, particularmente para as
populações mais empobrecidas e marginalizadas do mundo”.
Embora os filantropos digam que
estão ajudando os impotentes, Jens Martens [diretor-gerente do Global
Policy Forum] e Karoline Seitz documentaram como as doações à caridade
beneficiam também os ricos. Executivos abastados criaram as primeiras fundações
americanas no início do século XX para se proteger dos impostos, construir seu
prestígio e ganhar espaço nos assuntos globais. Desde então, passaram a ocupar
uma posição cada vez mais dominante no desenvolvimento econômico, influenciando
governos e organizações internacionais.
Os filantropos capitalistas
operam no nexo entre caridade, capitalismo e desenvolvimento. Como
escreve Behrooz Morvaridi, são “comprometidos política e
ideologicamente com uma perspectiva de mercado”. Ao investir vastas quantias na
solução de problemas históricos complexos, expandindo o setor privado, e em
correções técnicas, reforçam a ideia de que o capitalismo não é a causa e sim a
solução para os dramas do mundo. Tomando as palavras do historiador Mikkel
Thorup, a filantropia capitalista obscurece o conflito entre ricos e pobres,
afirmando que, na verdade, “os ricos são os melhores e, possivelmente, os
únicos amigos dos pobres”.
Entretanto, os problemas que os
filantropos capitalistas alegam estar resolvendo têm raízes no mesmo sistema
econômico que permite a geração de tanta riqueza. Martens e Seitz mostram
que as doações à caridade representam “o outro lado da moeda da crescente
desigualdade entre ricos e pobres”: desvelam uma correlação direta entre
“aumento da acumulação de riquezas, medidas fiscais regressivas e financiamento
para atividades filantrópicas”.
No livro Não basta dizer não, Naomi Klein escreve
que, ao longo dos últimos 20 anos, os liberais da elite têm “recorrido aos
bilionários para resolver os problemas” anteriormente abordados “com ações
coletivas e um setor público forte”. De fato, as soluções propostas pelos
filantropos capitalistas em áreas como saúde, educação e agricultura corroem os
gastos do setor público e desviam o olhar para longe das causas estruturais da
pobreza. Na agricultura, uma das barreiras estruturais são os acordos de livre
comércio, que eliminam as tarifas de importação e permitem que os países ricos
comprem produtos com baixo custo, assim como a corrida global por terras
agrícolas, que, em 2016, traduziu-se em quase quinhentos acordos, afetando
trinta milhões de hectares de terra.
Buffett criticou a imposição do
modelo norte-americano de agricultura industrial na África com o respaldo de
outros filantropos, como Bill Gates. No entanto, seus investimentos no leste do
Congo e em Ruanda foram pensados para dar suporte a sistemas orientados ao
mercado. Ele colaborou com o Partners for Seed in Africa (PASA) e com
o Program for Africa’s Seed Systems (PASS), que apoiam as empresas
privadas que vendem sementes híbridas e fertilizantes a agricultores, um
processo que já foi criticado por enfraquecer as práticas tradicionais dos
agricultores de guardar, compartilhar e trocar sementes, promovendo assim a
biodiversidade. Ambos os programas são parte da controversa Aliança pela
Revolução Verde na África, criticada por pequenos produtores e criadores de
gado de diferentes países do continente por promover o grande negócio e “usar a
propriedade intelectual para estabelecer o controle corporativo das sementes”.
Junto com Gates, Buffett investiu
US$ 47 milhões em um projeto em parceria com a Monsanto para
desenvolver variedades de milho mais eficientes em água para pequenos
agricultores. Os críticos argumentam que a agrogigante está tentando passar a
posse da “criação de milho, produção de sementes e comercialização… para o
setor privado”, manipulando assim “os pequenos produtores para que adotem
variedades de milho híbrido e seus fertilizantes sintéticos e pesticidas
correspondentes”, beneficiando as empresas agroquímicas e de sementes.
Sem levar em conta a ironia de
ter uma pessoa que atuou no conselho administrativo da Coca-Cola (que financiou
pesquisas para mascarar seus perigosos efeitos para a saúde) decidindo como os
agricultores africanos devem produzir alimentos, vale lembrar que Buffett
também atuou no conselho administrativo da gigante alimentícia Conagra
Foods, que já enfrentou acusações de violação de códigos trabalhistas e
ambientais.
A preservação é a outra principal
prioridade de Buffett. Alguns descreveram o Parque Nacional de Virunga –
queridinho da mídia que mantém uma parceria com a Fundação Buffett – como um
“estado dentro de um estado”: embora proteja a biodiversidade da região da caça
furtiva e da exploração de petróleo, despojou os habitantes originais da área de
suas terras e seus guardas paramilitares treinados teriam maltratado as
comunidades indígenas nos arredores do parque.
A tão falada usina hidrelétrica
do parque também tem gerado controvérsias significativas; alguns se queixam de
que o preço da eletricidade vinda da usina aumentou absurdamente de US$5 a
US$50 para uso doméstico básico. Tais alegações foram negadas pelo Save
Virunga, grupo que defende o parque.
Buffett também financiou
negociações de paz entre o grupo
militar rebelde M23 e o governo congolês em Uganda –
um nível de intromissão que revela quanta influência os filantropos exercem nas
resoluções políticas. Quando um relatório do Grupo de Especialistas da ONU
revelou que o governo de Ruanda estava apoiando o M23, Buffett argumentou
contra a suspensão de sua ajuda ao país. Apesar de se descrever como uma
“entidade apolítica”, sua fundação publicou um relatório que colocava em dúvida
as conclusões do Grupo de Especialistas e questionava sua credibilidade.
David Rieff ressalta
como o projeto filantrocapitalista é “irredutivelmente não democrático”, se não
“antidemocrático”. Em sua análise sobre Bill e Melinda Gates, ele nota que não
há controle sobre o que podem fazer, a não ser “seus próprios recursos e
desejos”. Joanne Barkan destaca os problemas das fundações
filantrópicas privadas: “elas intervêm na vida pública mas não se
responsabilizam pelo público; são governadas de forma privada, porém
subsidiadas publicamente pela isenção fiscal” e “reforçam o problema da
plutocracia – o exercício do poder derivado da riqueza”.
O fato de que Howard Buffett
possa investir tão livremente no Congo é produto do passado colonial devastador
do país, assim como de sua atual subjugação ao sistema neoliberal. A economia
do Congo foi assolada por 32 anos de cleptocracia de Mobutu (apoiada pelo
ocidente), políticas de ajustes estruturais impostas pelo Banco Mundial,
extrativismo praticado por empresas mineradoras transnacionais e pela elite
política congolesa e uma guerra que tirou a vida de milhões de pessoas.
Buffett argumenta que seus
investimentos são necessários “porque ninguém mais está interessado em
fazê-lo”. Entretanto, há inúmeros cidadãos congoleses que prefeririam ver o
setor público fortalecido ao invés de investimentos privados em serviços.
Muitos se uniram ao movimento social Lucha (“Lutte pour le changement”), que
vem exigindo do governo o fornecimento de serviços básicos no leste do Congo,
como água encanada e infraestrutura adequada. Em sua luta por ver as necessidades
materiais do congoleses atendidas e garantir que possam participar nas decisões
políticas, muitos de seus membros já sofreram repressão ou foram presos.
O poder da narrativa
A Fundação Howard G. Buffett
apresenta seu trabalho cuidadosamente. Artigos da região publicados em agências
de notícias respeitáveis, como Guardian e Al Jazeera, receberam
o apoio da Fundação Mídia Internacional das Mulheres (IWMF, em inglês), que, em
troca, recebeu fundos de Buffett. Sua fundação contribui diretamente com a Iniciativa
de Reportagem dos Grandes Lagos Africanos da organização, que apoia as
jornalistas que trabalham no Congo, Sudão do Sul, Ruanda, Tanzânia, Uganda e
República Centro-Africana em assuntos relacionados a “empoderamento,
democracia, segurança alimentar e preservação”.
Este parece ser um projeto muito
necessário: em um momento em que os meios de comunicação enfrentam déficits
orçamentários cada vez maiores, a IWMF concede bolsas generosas a jornalistas
sem dinheiro. Eu mesma sou grata pelo apoio que recebi do programa Grandes
Lagos Africanos para cobrir o leste do Congo, porém me senti desconfortável ao
tomar conhecimento de quem financia a organização.
A IWMF ressalta que não
influencia as reportagens de suas bolsistas; em uma entrevista, disseram que acham
“inaceitável que um financiador influencie o conteúdo editorial das reportagens
que facilitam”. Entretanto, suas áreas de foco preferenciais, particularmente
segurança alimentar e preservação, são escolhidas em parceira com a Fundação
Howard G. Buffett.
Ironicamente, o investimento de
Buffett na IWMF existe paralelamente a seu apoio à ditadura que dizimou a
imprensa local. Conforme documentado por Anjan
Sundaram em Bad News, o presidente de Ruanda, Paul Kagame, matou,
torturou, exilou e prendeu jornalistas em todo o país. O Comitê para a Proteção
dos Jornalistas registra que 17 profissionais foram mortos em Ruanda desde
1992. Ainda assim, Buffett afirmou que o país é “o mais progressista do
continente” e, como muitos doadores ocidentais, mantém uma relação próxima com
seu líder.
Até o momento, nenhum dos artigos
da IWMF publicados diretamente de Ruanda oferecem uma perspectiva crítica
acerca do regime Kagame. Jennifer Hyman, a diretora de comunicações da
organização, afirmou que seu apoio a jornalistas estrangeiros trabalhando em Ruanda
não foi contraditório, considerando o mandato da organização de promover a
liberdade de imprensa, e que a organização conduz treinamento para os
jornalistas locais nos países onde trabalham. Ainda assim, embora a organização
tenha condenado abertamente o tratamento dado a jornalistas na Colômbia,
Bahrein e Azerbaijão, Hyman não foi capaz de afirmar a posição da IWMF em
relação ao tratamento de Ruanda a seus próprios jornalistas.
Um olhar mais atento aos
financiadores da IWMF oferece mais explicações. Em seu website, entre os
doadores de 2013 estão incluídas empresas multinacionais como a gigante
farmacêutica Pfizer, que enfrenta processos trabalhistas, de direitos humanos e
de crime ambiental, incluindo o uso de crianças nigerianas para testar um medicamento
para meningite que causou a mortes de sete; Walmart – conhecido por suas
práticas trabalhistas de exploração – também fez uma contribuição, assim como a
Dole Food Commpany, acusada de impor condições desumanas de trabalho e expor
trabalhadores rurais nicaraguenses a um pesticida proibido; as gigantes do
petróleo Occidental Petroleum e Chevron, além da filha de Donald Trump, Ivanka,
também aparecem na lista.
A IWMF esclareceu que nessa lista
não estão os principais doadores da organização, exceto por Chevron, Bank of
America e a Fundação Buffett. Em resposta a perguntas sobre a aparente
contradição em aceitar o apoio dessas entidades enquanto enfatiza questões
relativas a empoderamento e democracia na região dos Grandes Lagos, Hyman disse
que a missão da organização é “liberar o potencial das jornalistas como
defensoras da liberdade de imprensa… aceitamos o apoio de corporações,
fundações e indivíduos que acreditam nessa missão”.
Nas palavras de Morvaridi, as
organizações, incluindo a mídia, promovem as prioridades dos “filantropos
capitalistas de elite” e, portanto, “contribuem para a construção da agenda
política apoiada por eles”. A IWMF conseguiu remodelar as narrativas da mídia
convencional na região dos Grandes Lagos, diversificando a gama de histórias
que emergem dessa área e influenciando a opinião internacional. Apesar disso,
em parceria com a Fundação Howard G. Buffett, também legitimou as atividades de
Buffett e seu apoio ao governo de Ruanda.
Revelações recentes dos Paradise
Papers demonstram até que ponto vastas quantias de riqueza estão sendo
desviadas de países como o Congo. Cabe aos jornalistas questionar o dinheiro
que entra no país vindo da classe bilionária filantrocapitalista, de homens
como Howard Buffett, cuja visão de desenvolvimento regional – privatização como
caminho para o crescimento – enfraquece a luta contínua dos congoleses comuns
para moldar seu próprio futuro.
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